Ouro sobre azul
Um empedernido não gosta de casas azuis com geometria instável. Não é pela vulgaridade porque não é o caso; é pela bizarria.
Antes do mar, da terra e céu que tudo cobre,
Não tinha mais que um rosto a Natureza:
Este era Caos, massa indigesta, rude,
E consistente num só peso inerte.
Das coisas não bem juntas as discordes,
Priscas sementes em montão jaziam;
O Sol não dava claridade ao mundo,
Nem crescendo outra vez se reparavam
As pontas de marfim da Lua
(…)
Ovídio (42ª.C-17d.C.), Metamorfoses, trad. de Bocage, ed. Hedra, S. Paulo, 2006
Para muitas almas piedosas ou empedernidamente danadas, acumulam-se as coisas em tempos e lugares onde se escapam aquelas razões firmes que tudo explicavam, que para tudo encontravam sentidos e nexos para um mundo ordenado segundo funcionalidades e simultaneidades relativamente simples ou, na falta, por artes e ocorrências prodigiosas, fantásticas, milagres.
Embotados, furiosos ou indiferentes perante a vertigem da mudança, outros se defendem esconjurando os demónios de hoje, convocando utopias retrospectivas e fiapos de mundos perfeitos que houve. A realidade é-lhes insuportável. Ora melancólicos, ora destilando ácidos, possuem certezas inabaláveis e reagem violentamente à vulgaridade. São assim porque desse modo se distinguem na tribo exclusiva do juízo culto a que pertencem, anos a fio de polimento e néctares, metafísica, elevação mental, teoria e prática do bom gosto e teologia aplicada. Praticam intensamente o olhar discricionário e regulador; pregam e julgam em alta voz quando necessário e em momentos especiais, a espaços, padecem de alergias e recatam-se em poses estudadas. Existem linhagens e raças puras; é para elas que toda a outra fauna vulgar existe, como um fundo necessário para que as verdadeiras figuras se recortem com nitidez.
Outros há que apenas absorvem peças soltas do que vai na aragem, escolhendo uma ou outra coisa pela surpresa do enunciado, pelo timbre ou pela ocasião. Não é que não tenham capacidades - todos temos algumas; é mais por uma certa elasticidade na forma de estar, de navegar pelo lado mais prático e mais genericamente empático. Para esses, o máximo da contrariedade está muito para além dos limites toleráveis nos registos sobre-agudos. A realidade é o que é e, de certeza, amanhã haverá diferenças e primícias. Pratica-se o relativismo, aprecia-se a geometria variável ou a opinião dominante. Existem teorias para tudo: ouro sobre azul é um clássico imbatível que dispensa teorias de óptica; a geometria das séries simplificadas adapta-se a tudo; uma imperfeição, um buraco ou um desnível mal resolvido são apenas acasos que acontecem. Qualquer coisa se pode combinar com qualquer outra, obedecendo à regra de ouro do princípio existencial da biodiversidade: uns comem os outros com razoável probabilidade de escolha, mas não se sabe se o todo funcionaria melhor ou pior com menos de metade ou com o dobro das partes.
Há outras formas de abordar estes assuntos. Um empedernido não gosta de casas azuis com geometria instável. Não é pela vulgaridade porque não é o caso; é pela bizarria; é porque a composição não é simétrica, ou porque os telhados são desnivelados ou porque sobram ou faltam janelas e portas. A uniformidade da cor irrita-o ainda mais porque dá unidade a quem, precisamente, ela falta. Os blocos de apartamentos são vulgares e monótonos - arquitectura genérica com certo rigor cromático, mas completamente insípida. Na combinação das vulgaridades, está tudo fora do sítio: fossem ao menos as casas todas azuis e sem mais grau de desnivelamento; em vez de rua estreita e rua larga a desaguarem num largo empenado, estivesse lá uma quadrícula rigorosa, métricas controladas e volumes alinhados. Ganhava-se em homogeneidade o que se perde em arritmia. A repetição e a simetria evitam o desengolir.
Mais descontraído, o outro aprecia a composição surpreendente dos volumes azuis da casa, o ritmo, a evolução faseada, o toldo branco na última porta, a obra em aberto, três tímidos degraus dissolvidos na calçada, a porta com quadradinhos pretos. O automóvel amarelo é como um adereço exótico, uma incrustação cromática, vibrante, o detalhe que faz toda a diferença. Variável como é nos juízos, põe-se a calcular o número de janelas e varandas escavadas no plano das fachadas. Conclui pela generosidade desses espaços simultaneamente dentro e fora; imaginou-os a transbordar de plantas em cascata e grandes pássaros sarapintados. Reparou no céu a enevoar-se, na rua de sentido único, na inutilidade da antena de televisão. Achou este lugar sossegado, bem orientado ao Sol, generoso nas suas larguezas. Em vez da casa, por não saber se uma, duas ou três, escolheu a possibilidade de morar no último piso recuado de um dos blocos e imaginou um cata-vento, um grande galo vermelho montado na antena a sintonizar o vento. Quando já ia bastante afastado, lembrou-se que não vira nenhum candeeiro, ou um, talvez.
Que coisa diversa é a forma como os humanos habitam e tão contraditórios são os julgamentos que os próprios fazem de si, pensou. Pois não seria melhor serem abelhas ou formigas, cérebros minúsculos a fazerem colmeias e formigueiros? Tudo igual, tudo repetido por tempos infinitos num mundo despótico governado por rainhas com ideias fixas que presidem a exércitos de insectos incansáveis, disciplinados, vida breve e rendimento máximo.
Deve ser escuro à noite, disse em voz muito baixa.