O tempo passou depressa pelo Fórum do Futuro
Na última semana houve salas esgotadas para ouvir a escritora Margaret Atwood ou o arquitecto Toyo Ito, interrogando o nosso mundo hoje, a partir de elementos da Antiguidade clássica. O Fórum do Futuro, no Porto, termina este sábado.
Aconteceu em quase todas as sessões. Às tantas, o apresentador ou moderador, encarregado de contextualizar a vida e obra do convidado, declarava que o mesmo “dispensava apresentações”, como se afinal esvaziasse a sua utilidade ali, provocando sorrisos. Mas o sentimento geral foi esse. Os palestrantes eram de nomeada. E o público era conhecedor.
Tem sido assim desde domingo, dia em que se iniciou o Fórum do Futuro, no Porto, com salas esgotadas, assistências atentas e participativas, gerando um ambiente tranquilo e ao mesmo tempo entusiasta, em torno de inúmeras palestras e performances protagonizadas por agentes de várias partes do mundo, de diferentes disciplinas, entre pensadores, artistas ou cientistas, que responderam ao desafio de pensar como a Antiguidade se manifesta nas ideias, na cultura e na arte dos nossos dias.
“Estamos muito satisfeitos pelo nível da participação do público, com muitas sessões totalmente repletas, e pelo espaço de encontro e de troca de ideias em que o programa se transformou”, afirma em jeito de balanço o director e curador da iniciativa, Guilherme Blanc, destacando que as palestras ao final da tarde – uma novidade este ano – se revelaram um êxito, “sendo direccionadas para um público mais jovem, muitos deles estudantes de artes e não só, ou para artistas”, enquanto as sessões nocturnas tocaram um público mais transversal e menos especializado.
O acontecimento termina este sábado, numa sessão a ter início pelas 21h30 no grande auditório do Rivoli, organizada em três actos em torno do tema das “ruínas” e da reconstrução da história, do Ocidente ao Oriente. É o ensaísta e romancista indiano Pankaj Mishra, autor de Tempo de Raiva – Uma História do Presente (Temas e Debates), que está guardado para o final, com moderação do escritor e produtor de cinema inglês Gareth Evans, reflectindo sobre a necessidade de rever a nossa compreensão do mundo e reexaminar as narrativas que lhe estão subjacentes, dado que a história do Ocidente, fundada na Antiguidade Clássica, tem esquecido os arquétipos de outras sociedades ou civilizações.
Será um momento questionador que aglutinará alguns eixos principais que têm estado em debate. Por um lado constatar que em alturas de crise ou de impasse – seja do ponto de vista sociopolítico ou cultural – o Ocidente tende a regressar às suas estruturas basilares, ao que é perene, ao que lhe atribui sentido desde sempre. A Antiguidade sempre esteve viva. Mas dir-se-ia que em alturas de desagregação essa consciência torna-se nítida.
Construção de outros itinerários
No Porto existiram inúmeras demonstrações disso mesmo. Na quinta-feira ao final da tarde, no pequeno auditório do Rivoli, a dupla americana Mary Reid Kelley e Patrick Kelley tratou de expor que a sua prática artística profundamente contemporânea (filmes que cruzam o vídeo, poesia, pintura e performance) é afinal balizada por representações clássicas, como Dioniso, símbolo de caos e loucura, um facto constatável quando exibiram um divertido filme que recria o tema do Minotauro.
O mesmo se poderia dizer da obra da escritora canadiana Margaret Atwood, recebida de forma entusiástica na noite de quinta-feira, no grande auditório do Rivoli, mostrando que é uma excelente comunicadora, discorrendo sobre a sua vida e obra – cerca de 60 livros de ficção, poesia e ensaio, muitos prémios e adaptações para TV – a partir de ilustrações suas, projectadas no ecrã, onde ficou patente o papel dos mitos, lendas e contos de fadas na sua obra e na leitura do mundo actual.
Mas o Fórum não quis apenas mostrar como a Antiguidade Clássica se manifesta hoje. Quis também olhar para o cânone ocidental, enquanto modelo de construção do mundo, de forma crítica. Não por simples reavaliação do passado, mas porque é cada vez mais nítido que uma Europa em crise, ou um pensamento Ocidental desgastado, só se enriquecerá aceitando entendimentos e experiências socioculturais diferentes da sua, tendo em vista a construção de outros itinerários.
Já se percebeu. O passado, a memória, só interessaram por estes dias, no Porto, numa perspectiva de futuro. Na quinta-feira, no auditório de Serralves, um dos artistas franceses mais conhecidos dos nossos dias, Christian Boltanski, começava a sua comunicação dizendo que iria falar do passado, o que era estranho porque o mote ali era o futuro. Na verdade, como pouco antes enunciara o curador Ricardo Nicolau, na obra de Boltanski são uma e a mesma coisa. Nos seus trabalhos – fotografia, pintura, escultura ou instalação – interroga-se as narrativas históricas, o que deixam de fora ou a sua verdade, numa lógica onde o passado (a experiência), o presente (a acção), e o futuro (a expectativa), não se sucedem apenas diacronicamente, mas também sincronicamente.
“Vi uma exposição dele em Guimarães, em 2012, onde usava roupas que circulavam pelo espaço, quase como se fosse uma coreografia, e desde aí fui conhecendo a sua obra e ficando cada vez mais curioso”, diz-nos Ricardo Rosário, designer, presente na sessão de Serralves, “e vê-lo aqui a falar sobre estas questões, a morte, a vida, a memória, a maneira como ele nos faz participar em histórias reais, é uma oportunidade única.”
Se na Antiguidade a possibilidade de transmitir, através da escrita, uma memória para o futuro, transformou a noção de tempo, o mesmo parece estar a acontecer agora com a Internet. Em vez de uma história com um percurso preciso e contínuo, temos regressos, descontinuidades, recuperações e convivências. Tudo muito rápido. E no entanto será que as nossas visões sobre o amor e o erotismo se terão transformado assim tanto desde que Platão escreveu O Banquete? Isso mesmo espelharam a escritora inglesa Marina Warner e a espanhola Beatriz Colomina, desenhando um longo percurso desde a Grécia clássica às redes sociais.
Conclusões? “Fiquei com a ideia que o discurso romantizado sobre o amor não mudou assim tanto quando julgamos”, ri-se no final da sessão, Mafalda Florival, 34 anos, arquitecta, “mas fiquei a pensar quando uma das comunicadoras disse que durante séculos as representações femininas foram dominadas pelo olhar masculino. Ou seja, as mulheres não produziam as suas próprias imagens, limitavam-se a ser retratadas, e que agora, em parte por causa das redes sociais as mulheres passaram a auto-representar-se. Nunca tinha pensado nisso, pelo menos dessa forma.”
Fazer pensar. Eis um dos desafios do Fórum. Claro que haverá sempre quem vá à procura de confirmações. Mas existe também quem deseje o espanto. Ser atordoado. É difícil não o ser pelo artista plástico libanês Walid Raad, nome que se confunde com o de Atlas Group, que começa por falar da escola de artes (Cooper Union School of Art) em Nova Iorque, onde lecciona, para interrogar o neoliberalismo actual e terminar por questionar a relação entre Ocidente e Oriente a partir das artes.
Pelo meio fala do seu trabalho artístico mais reconhecível, a ressuscitação da guerra civil no Líbano através de fotografias, vídeo ou textos, sempre na tensão entre a realidade e a ficção, focando-se nos acontecimentos traumáticos – que provocam uma cisão ou um corte, mas através dos quais se está sempre a voltar através da memória. O tempo, outra vez. “O trauma diz-nos que temos de abandonar uma noção cronológica do tempo”, dirá às tantas. “O passado já foi ou estamos a vivê-lo agora?”
O libanês é um excelente comunicador. A sua apresentação tem algo de performativo. Traduz complexidade com eficácia. Horas antes, na quarta-feira, o arquitecto japonês Toyo Ito, vencedor do Pritzker em 2013, havia tido uma experiência muito diversa. O Rivoli lotou para o ouvir, mas o facto de se expressar em japonês – com tradução simultânea, nem sempre feliz, para português, através dos auriculares – não facilitou a mensagem.
Durante o dia havia visitado Siza Vieira e também a Casa da Música. Ali focou-se em passar a ideia de que os novos espaços públicos devem recuperar a ligação entre seres humanos e natureza, mostrando-se ao mesmo tempo preocupado pela evolução urbana de Tóquio, que irá acolher os jogos olímpicos de 2020. “A cidade está a transformar-se numa enorme grelha de arranha-céus indiferenciados”, afirmou, discorrendo sobre a responsabilidade social da arquitectura, patente num dos seus projectos mais conhecido, Home for All, que serviu milhares de desalojados em consequência do terramoto de 2011. Em simultâneo mostrou edifícios públicos que tem vindo a desenhar e que recuperam elementos clássicos, tentativa de nos reaproximar de contextos naturais.
“Só se escreve sobre o nosso tempo”
Para os muitos estudantes de arquitectura que o foram ver, Toyo Ito é uma celebridade, algo constatável pelos muitos pedidos de fotografia que aconteceram no final. Mas a estrela maior dos últimos dias do Fórum foi Margaret Atwood, quase 79 anos, autora de A História de Uma Serva (Bertrand), no original The Handmaid’s Tale, o livro de universo distópico de 1985 convertido em série de TV em 2017, como se traduzisse o autoritarismo ou a misoginia da América pós-Trump ou do Brasil de Bolsonaro. Minutos antes, jantando entre os participantes do evento, era apenas alguém a partilhar as suas impressões sobre o Porto e as viagens que vai realizando pelo mundo. Ali, em palco, é a mesma pessoa e simultaneamente outra. Tem consciência do efeito que produz. É divertida, provocadora por vezes, quase sempre pertinente.
Fala da sua infância – “queria ser pintora”, diz, ao mesmo tempo que mostra as suas ilustrações. Recorda os pais – a mãe, emancipada, longe de qualquer papel feminino subjugado, e o pai, um aventureiro – ou o irmão mais velho, que lhe contava histórias e desenhava heróis mitológicos, criando-lhe o gosto pela ilustração e pelas mitologias, que nunca mais largou, e que ainda hoje diz serem a base da sua actividade como escritora “muito visual”. Na adolescência adveio o gosto por clássicos, como a Ilíada e Odisseia, e pela ficção científica. A partir daí nunca mais teve dúvidas de que queria escrever livros, “mas com uma narradora feminina, porque todos os que lia eram narrados por homens”, diz, acrescentando que independentemente do contexto, “só se escreve sobre o nosso tempo”.
Margaret Atwood tem razão segundo a noção de tempo cronológico. Pode-se imaginar séculos passados, mas não estamos lá, e também não sabemos o que vai ser o futuro. Mas o tempo, como as conferências não deixaram de evidenciar, pode ser múltiplo, dinâmico e heterogéneo. Não há esquemas únicos. Nesse sentido podem-se projectar novas formas de viver o tempo que temos para viver. Também por isso, pela relevância das matérias de reflexão que vai propondo, cinco anos depois, o Fórum do Futuro revela-se aposta ganha, dispensando apresentações.