Xavier Giannoli: “A beleza da fé é essa decisão apesar da dúvida”

A Aparição tem um insólito par: um repórter de guerra que persegue os factos exteriores e uma vidente que se encerra na sua interioridade. Uma vibrante aliança entre a fé e a dúvida. Que acorda no filme o mistério.

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Singular “casal” este: um repórter de guerra e uma vidente. Não é excessivo elogiar a forma como A Aparição, de Xavier Giannoli, os constitui como “par” — é preciso entender isto, do “par”, sem expectativas fáceis. Isto é: A Aparição recebe de um só gesto um homem que corre atrás dos factos, para ele a única verdade, sem possibilidades de versões, e a rapariga que se encerra no mistério de ter sido visitada pela Virgem. Ele é Jacques Mayano (Vincent Lindon) e Anna (Galatéa Bellugi) vai ser uma “aparição”.

Jacques foi contactado pela Comissão de Inquérito Canónico do Vaticano (sequências rodadas nos locais de Habemus Papam, o filme de Nanni Moretti) para investigar a verdade ou a falsidade de Anna. Quando alguém no início de A Aparição (a partir de dia 11 em distribuição comercial), diz: “Anna está entre nós” — apresentando a vidente às centenas que a querem ver e tocar —, o estremecimento dessa sequência dá conta de uma nova experiência para Jacques: o invisível. Uma nova dimensão, um refúgio, um consolo, abre-se às negociações que as solitárias personagens de Lindon estabelecem com a violência do mundo e da realidade, colocando um céptico mais próximo da fé, do desejo de crença, em comparação com o cinismo dos “homens da Igreja”. Não é só a Jacques que Anna aparece: pela graça de Galatéa Bellugi, pela sua “presença” tão física e disponível e ao mesmo tempo tão indecifrável, Anna passa a estar entre nós, espectadores.

Por isso, e pela sensualidade de um percurso por sombras à espera de uma luz (como nos filmes do cinema americano “da paranóia” dos anos 70 em que as personagens eram ultrapassadas, quando não mesmo devoradas, pelo que investigavam), este filme-inquérito dilui muitas das armadilhas do filme de tese e de ideias — o cinéma plaidoyer que, de André Cayatte a Bertrand Tavernier, foi cultivado pelo cinema francês “do meio”, tradição em que Giannoli se insere, que o fez já ser capaz de charme (Quand J’étais chanteur, 2006), que não evitou que fosse museológico (Marguerite, 2015), e que, com a colaboração do argumentista Jacques Fieschi, colaborador de Claude Sautet nos filmes finais, revigora com uma vibrante aliança entre a fé e a dúvida. Acordando no filme um mistério.

Alguém diz no filme: “Não sou crente, mas algo se passa...” Todo o filme está contido nessa frase. É crente?
Sim, tive educação cristã, fiz o catecismo. Dou um passo em frente em relação à personagem do filme, que é alguém mais céptico do que eu. Lembro-me, quando era escuteiro, de ter ido a Lourdes aos 10 anos e de ter sentido que não estava num lugar onde talvez se tivesse passado alguma coisa — estava num lugar onde evidentemente acontecera alguma coisa. Cresci numa família cristã, o meu pai é praticante, servi à missa. Sou praticante? A minha forma de ser praticante é através do pensamento. Sou habitado pelo questionamento, da fé, da importância dos valores cristãos. O meu problema é com a solução católica, mas isso não tem que ver com a fé cristã.

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A Aparição recebe de um só gesto um homem que corre atrás dos factos, para ele a única verdade, e a rapariga que se encerra no mistério de ter sido visitada pela Virgem © 2018 NORD-OUEST FILMS

Mas, tendo dito isto, sinto um tumulto. Lembro-me de em criança o meu confessor dizer: “Xavier, não esqueças que os olhos do Senhor estão sobre ti.” Na verdade, vivia essa frase como uma ameaça, como se me vigiassem. Mas hoje, e sobretudo depois de ter feito A Aparição, entendo a frase ao contrário: como uma mãe que tem os olhos sobre mim e que me protege. Passei da sensação de ameaça para algo como: “Não te inquietes, os olhos do Senhor protegem-te.” Na verdade, fiz o filme para isso.

É verdade que a personagem de Vincent Lindon é habitada pelo cepticismo. Mas sendo ele um jornalista que quer saber de factos, sentimo-lo próximo da fé, da necessidade de crença, ao contrário dos homens da Igreja, mais cínicos sobre o que se passa.
Sabe como expliquei aos meus actores como eram ou como viviam os homens da comissão de inquérito? “Imaginem que são críticos de cinema, que vão de festival em festival, conversam: ‘Acredito no filme do Paul Thomas Anderson.’ ‘Eu não, aborreci-me’... Ao mesmo tempo são pessoas que têm fé no cinema.” Quando ouviram isso, os meus actores disseram: “Já compreendemos.”

Não queria fazer um filme que fizesse proselitismo, mas também não queria fazer um filme que gozasse. Queria encontrar um olhar justo. Evidentemente que há uma emoção religiosa, encarnada pela jovem vidente, mas ao mesmo tempo há um questionamento pela razão. Numa época em que tanto se fala de fanatismo e histeria religiosa, há aquela mulher que diz: “A fé é uma decisão livre e esclarecida.” Achei importante dizer isso hoje.

Há idólatras no filme, o tipo que vende ícones. Ao mesmo tempo os bispos têm palavras sábias e críticas sobre a Igreja: “Estamos longe do homem descalço que pregava aos pobres.” Quis filmar padres que não são iluminados, que são pessoas que têm uma relação com a fé que me interessa. Todas as pessoas têm a sua hipótese no filme. Há quem viva a fé em estado de exaltação, há quem a viva em reclusão, há quem, ao ir atrás de um mistério, acorde em si o mistério, como a personagem de Lindon.

... e dessa forma o filme faz coabitar os mundos de personagens que estariam afastadas. Com o mesmo gesto, A Aparição está com Lindon, o jornalista céptico, e com Galatéa Bellugi, a vidente...
... porque tenho os dois em mim.

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O realizador Xavier Giannoli diz que lhe interessa que um filme procure vestígios de humanidade em cada personagem Franco Origlia/Getty Images

Começamos do lado de Lindon, olhamos para a vidente e perguntamos: “Vamos descobrir o que ela anda a fabricar”...
... será que é uma mentirosa?...

... nunca sentimos que mente. Estamos também com ela.
É a minha relação com as personagens. Talvez isso venha da minha educação cristã: interessam-me as razões de toda a gente. Interessa-me que o filme procure vestígios de humanidade em cada personagem. Não julgo. Não quero ser ingénuo, mas não quero gozar.

Essas duas personagens estão em mim. Há uma parte de mim que vai em direcção a um desejo de recolhimento, que dá importância à oração, à interioridade, que olha para o céu, simplesmente. E há uma parte que duvida, que resiste. E os dois dialogam. Antes pensava que esse diálogo era uma coisa má, porque me sentia incapaz de fazer uma escolha, mas é isso, a contradição, que humaniza. Hoje sei, depois de falar muito sobre o filme, que essas personagens expõem a contradição que me habita.

O filme foi escrito para Vincent  Lindon. Escrever para o actor significa o quê?
Conhecia-o. E isso basta para fazer um filme. Pelo que conhecia dele, da sua vida social, sabia que ele afirma um desejo de honestidade. Tem um olhar crítico sobre a mentira política, sobre a mentira social, sobre a hipocrisia. Tem uma moral de actor — mesmo quando lhe oferecem muito dinheiro, se não gosta dos valores da personagem, não faz o filme. E, sobretudo, é alguém do princípio da verdade, não suporta que lhe mintam, que o aldrabem. Não é um intelectual, não se perde em discursos, é um tipo franco, concreto, directo, mesmo quando toma a palavra. Encarnava uma exigência de verdade. Era perfeito para o papel. Uma coisa interessante que ele me disse: “Tenho vontade de acreditar nas pessoas que acreditam.”

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© 2018 NORD-OUEST FILMS

E essa vontade habita a personagem.
Sim, não é um cínico. Não é a história de um homem a quem esta rapariga vai abrir os olhos. Pelo contrário, ela vai fechar-lhe os olhos, vai fazê-lo descobrir um universo interior e a beleza do mistério. A vida dele é esclarecer mistérios, é encontrar factos e provas, mas pela primeira vez encontra-se com alguém que, em vez de lhe revelar, um mistério mostra-lhe o seu limite: sendo jornalista, homem de factos, vai sentir a beleza de uma questão para a qual não há resposta.

Lindon participou na escrita do filme?
Falávamos, enquanto eu escrevia. Dava-me prazer vê-lo, vê-lo mexer-se — um prazer de cineasta. Falava-lhe dos meandros da personagem. Ele dava opiniões. Mas ele é assim, também esteve presente na montagem. Não há actor em França tão envolvido num papel como ele. Já esteve com ele?

Sim, por causa de A Lei do Mercado...
É uma pessoa devorada por tiques. Mas quando se diz “acção...”

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Uma vidente (Galatéa Bellugi) que vive em recolhimento o seu mistério

... eles desaparecem...
Imagina a intensidade do que se passa quando começa a interpretar? Isso significa que há algo de incrivelmente profundo que acontece. Não sei o que é. Permanece um mistério.

Há em Vincent Lindon, pelo seu corpo, pela sua maneira de estar, qualquer coisa de sensual e carnal. A sensação de que não lhe podemos mentir. Ele está do lado da procura da verdade, no seu jogo de actor e na sua relação com os outros.

Como um actor assim imagino que era difícil encontrar uma actriz...
Foi a maior emoção da minha vida de realizador quando me deram um disco com os castings das actrizes.

Vincent e eu decidimos que se não encontrássemos a rapariga não haveria filme. Estávamos em pânico. Deram-me o disco, não gosto nada das apresentações, “bom dia, chamo-me...”, passei à cena. Era aquela em que a personagem conta a aparição. Parecia material de arquivo. Mostrei a Vincent. Nem discutimos, o que foi inquietante, porque ela “apareceu” rapidamente, no primeiro mês de casting, quando eu tinha previsto seis meses... Nesse primeiro mês ela veio ao escritório fazer o casting e foi-se embora. Lembro-me de a ter visto passar por lá. Mas foi quando vi a cena... não tive dúvida, foi um dom do céu.

Mas é isso o que se passa na primeira sequência em que ela aparece...
Queria que se sentisse que ela estava a ser ultrapassada por tudo. Isso era fundamental para a personagem ser comovente. Poderíamos crer ser a tomada de um benefício social em mãos, ela como estrela, mas ela não quer isso. A partir do momento em que sente a engrenagem nos bastidores, regressa a si própria e à sinceridade da sua fé. Não está confortável com os idólatras, há uma pureza a não querer ser comprometida. Quando filmávamos essa cena, foi impressionante: 350 figurantes. Vimos documentários sobre aparições, sobre Fátima por exemplo, e havia um enorme fervor nas pessoas. Queríamos que isso passasse.

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Há uma coisa especial nesta actriz: ela guarda para si o seu próprio mistério. Não suporto os actores que contam a sua vida, as suas histórias de cama, onde vão em férias, o barco que alugam... O actor deve guardar o seu mistério, deve existir só nas personagens. Vincent também é assim. E ela... não sei nada dela.

Tinha de ser alguém desconhecido. E evidente. Ela tinha as duas qualidades. Além disso, é uma actriz genial, porque não sei mesmo se é actriz. Não sei o que interpretava. Para mim ela foi a personagem. Em momento algum a vi fabricar. Ela vinha, fazia, ficava bem, “obrigado Galatea, até amanhã”, e partia.

Foi mesmo uma aparição para si e para Vincent Lindon...
... Sim, sim. Não tinha a mesma cumplicidade com ela. Nunca jantei ou almocei com ela.

De propósito?
Sim, passava o dia a pensar nela, a enquadrá-la e a filmá-la, a olhar para ela, a procurar cinema na sua presença, mas não tive outro contacto com ela. Não sei se é crente ou não. Se gosta de rapazes ou de raparigas. Não quero saber. É uma das questões do filme: prefiro o pudor e o segredo à familiaridade e à transparência. Ela tem algo de secreto e de impenetrável. É um cliché do cinema essa coisa de o realizador fazer de Pigmalião com as jovens actrizes. Não sou assim, não tive uma relação de sedução com ela, nem ela comigo. Penso que gostamos um do outro. Mas partilhamos um segredo, essa personagem, e não queríamos falar disso.

Há uma sequência de quatro minutos com ela. O meu montador dizia: “É longa de mais.” “Não”, respondi, “vamos aguentar o mais tempo possível.” Era fascinante. Ela contava qualquer coisa e era como se estivéssemos a ver essa qualquer coisa. Era um efeito de mise-en-scène que me interessava: ela conta que estava a andar, que via luzes, que pensava que era o sol sobre as rochas, descreve e “vemos”.

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Se lhe perguntasse qual o género do filme...
... é um filme de inquérito.

Mas a partir de certa altura, quer ser outra coisa.
Sim, o filme espera outra coisa. O realizador e argumentista espera perder-se. É o que espera a minha personagem, que a investigação lhe escape. Dizia a mim próprio que esperava que este homem fosse ultrapassado pelo seu inquérito. Várias vezes os meus filmes contam histórias de personagens ultrapassadas pelas situações que criam, como em À L’Origine [2009]. Gosto dessa sensação como espectador.

Por isso pensei num certo cinema americano dos anos 70, em que as personagens são desviadas dos inquéritos a que se propunham e tocadas por aquilo que queriam investigar ou expor.
São essas as minhas referências.

Há, para além disso, O Exorcista. O livro de William Peter Blatty e o filme de William Friedkin tiveram grande influência: aquela jovem habitada não se sabe por quem ou pelo quê, que se chama Regan [personagem interpretada por Linda Blair]. Todas as cenas em que a personagem feminina do meu filme é levada ao hospital vêm de O Exorcista: a ciência e todos aqueles padres a tentarem entender e a serem ultrapassados pelo mistério dessa rapariga. O momento mais misterioso e místico de O Exorcista é antes de o diabo se manifestar.

Tudo isto começou por um acaso. Num jornal contava-se que o papa Francisco não dava o seu ponto de vista sobre as aparições em Medjugorje, na ex-Jugoslávia, a que vão todos os anos centenas de milhares de peregrinos. Foi então nomeada uma comissão de inquérito canónica — a primeira vez que vi essa designação. Descobri que era formada por bispos, médicos, para reconhecerem um facto sobrenatural ou para desmascararem uma impostura. Esse confronto entre um inquérito policial e um grande mistério corresponde a forças que lutam em mim: um desejo de adesão, porque é a minha cultura e educação, a um mistério e ao mesmo tempo qualquer coisa de céptico. Encomendei livros, entre os quais Faussaires de Dieu de Joachim Bouflet, que se vê no filme, em que ele enumera as falsas aparições, e ainda Medjugorje ou La fabrication du surnaturel, em que é muito crítico. Telefonei-lhe, por acaso ele habitava perto de mim, e disse-me logo que se trata de um universo muito secreto, que não podia dar-me documentos, tinha um dever de reserva — o que me deu mais vontade de mergulhar... —, dizendo-me ainda que a Igreja preferia passar ao lado de um milagre do que reconhecer uma impostura. Ao dizer isso é como se reconhecesse que há fenómenos verdadeiros: ou seja, sábio e crítico, ao mesmo tempo reconhecendo que há qualquer coisa. Um dia, estava em Lisboa e fui a Fátima. Depois fui a Lourdes. E pensei: em vez de fazer como Jean-Pierre Mocky em Le Miraculé (1987), gozando, vou fazer com aquilo que sou: alguém que reconhece que talvez se possa passar qualquer coisa, mas que tem dificuldades na adesão.

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Shanna Besson

Precisou da Igreja para o inquérito do filme?
Não, tive necessidade da Igreja para falar com padres sobre essas questões. Percebi que as aparições dividem muito a Igreja, que não há idolatria, que tem uma relação distante... Falei com padres, crentes, fiéis. A um padre disse-lhe: “Você é mais forte do que eu, no momento da morte acreditará na vida eterna.” Ele olhou-me como um miúdo: “No momento de morrer direi: ‘Espero não me ter enganado.’” Essa frase perturbou-me. A beleza da fé é essa decisão, apesar da dúvida. Em momentos de fanatismo parece que não somos livres de acreditar. O que me choca no islão é não haver direito a renunciar a ser muçulmano. Uma religião que nos condena à morte, se decidimos sair dela... Pelo contrário, não quis reduzir o questionamento religioso à caricatura. Não sou reaccionário, não sou conservador, não sou de direita, e, no entanto, coloco-me questões.

[O escritor] Michel Houellebecq fala muito de cristianismo nos seus livros e numa entrevista disse algo que para mim é uma bomba: se o cristianismo fosse uma religião de Estado em França, não haveria problemas de assimilação dos muçulmanos. Há uma histeria laica em França. Mas há algo a fazer e o meu filme é sobre isso: respeitar a laicidade, mas admitir que é possível o mistério. Espantam-me os debates na TV francesa em que os intelectuais dizem chocados que há raízes cristãs no país. Chocados, porque, segundo eles, está aí a razão por os muçulmanos não serem bem aceites no país. Ora, é o contrário: é por causa disso que os muçulmanos devem encontrar o seu lugar.

O que quis explicar no filme é que há muita gente que vive o questionamento no segredo dos seus corações, de forma pudica e secreta, não de forma política e guerrilheira. O bruá mediático leva os debates à caricatura. A crença e a fé são uma matéria de tal modo sensível, tão contaditória e tão humana, que tinha necessidade de fazer um filme que se reapropriasse do lado íntimo dessas questões e que não fizesse com isso uma questão política e social que terminasse em insultos. Por isso comecei com uma imagem de televisão e com a morte de um fotógrafo: é um “fechemos os olhos”. O filme começa assim com a televisão e com o Daesh, a actualidade, e termina no deserto com um desejo de eternidade.

Falando com Bertrand Tavenier...
... o meu protector, o meu padrinho...

... sobre Jacques Becker e outros, falando de um cinema sobre pessoas e para as pessoas — um cinema desaparecido. Ele dizia: “Não desapareceu, há exemplos em França, por exemplo...” E disse o seu nome.
Não compreendo a oposição entre cinema de autor e cinema de público. Os grandes cineastas que me fascinam nunca colocaram essa questão. Antes de tudo, o cinema é uma arte impura. O que gosto em Apocalypse Now é que é um filme de um louco obsessivo [Francis Coppola] e ao mesmo tempo uma ópera grande público. O que gosto em Taxi Driver é que é a obra de um homem alimentado por uma cultura elitista — Scorsese fala de cineastas como Bresson — e simultaneamente quer ser uma grande obra popular. Isso é uma questão política: o povo torna-se forçosamente vulgar quando se fala de arte? Mas nesse caso Mozart não é popular? Victor Hugo não é popular? Francis Coppola não é popular? Fala-me de Becker, podia falar-me de Claude Sautet [Jacques Fieschi, um dos argumentistas de A Aparição, escreveu os argumentos dos três filmes finais de Sautet]... Tenho fotos do meu pai, que era um jornalista de um meio burguês, e, ao ver filmes de Sautet, parece que estão a contar a vida dos meus pais.

Um dia numa emissão de televisão perguntaram-me que cineastas tinha sido importantes. Respondi: Le Feu Follet [1963] de Louis Malle, que em adolescente via e revia de seguida. Disseram-me: “Bem, não é politicamente correcto falar de Louis Malle, é filho de um milionário, e depois há Lacombe Lucien [1974, história de um camponês que se torna delator para a Gestapo na França ocupada]...” Contrapus: “Também sou da burguesia...”, silêncio, e continuei: “E preferirei sempre filmar um burguês inquieto do que um proletário que se quer vingar.” Insistiram, e estava ali uma jornalista de esquerda, Laura Adler: “Como pode dizer isso? A inquietude burguesa é sempre o tema do cinema francês.” Respondi: “Se um burguês inquieto não vos agrada, vamos pegar em Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Drieu de la Rochelle, Stendhall e façamos uma grande fogueira.”

A única coisa que interessa, ao lado do debate de classes, é o debate existencial. É isso a literatura e é isso o cinema. Tenho a sensação de que DeNiro em Taxi Driver é o irmão de Maurice Ronet de Le Feu Follet. A solidão nas cidades: é isso que me toca. Mas hoje a angústia existencial já não é comercial.

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