Somos todos Lodge 49, uma comédia que é um drama sobre a vida normal
Dívidas, surf e as cicatrizes da crise e carros a cair aos bocados. Quando se perde tudo mas não o riso, o que resta senão a vontade de pertencer a um clube, uma Maçonaria à irmãos Coen? Esta segunda-feira, no AMC, chega a resposta.
Aquele momento em que uma pessoa chega a casa, serve um copo de vinho, deita mais vinho para o lava-loiças e depois lhe pega fogo: Lodge 49 é isto. Mas também é uma t-shirt desbotada, os cobradores a bater à porta, os dispensários de erva, um detector de metal na praia e carros a cair aos bocados. No último trecho do Verão vem uma dramedy – um drama que é também uma comédia, ou uma comédia dramática – e que não é sobre nada de especial. Ou seja, é sobre a vida normal, o heroísmo do dia-a-dia e a ânsia de pertencer a qualquer coisa quando se perdeu muita coisa. Como uma casa penhorada pela crise ou a cabeça com dívidas acumuladas.
Quando se vê Lodge 49, que se estreia dia 10 às 22h50 no AMC, e seguindo a tendência que nos põe à procura de uma gaveta onde enfiar o que de novo nos chega e o que de velho nos lembra, lá vêm as referências: O Grande Lebowski e os seus preguiçosos encantadores, a crise de 2008 e os efeitos que tem até hoje na classe média e nos mais pobres, o tom despreocupado de safari pelas vidas americanas de High Maintenance, mas também um travo a filme indie e uma dose intencional de Thomas Pynchon (o autor, o estreante televisivo Jim Gavin, quis piscar o olho a O Leilão do Lote 49).
“Não temos de viver assim. Tem de haver outra maneira”, diz a certa altura Wyatt Russell – que, diga-se num aparte tão necessário quanto desnecessário, é filho de Goldie Hawn e Kurt Russell – sob o cabelo loiro sujo de Dud, ou Sean Dudley, surfista fora de água. Ele é o centro da história e depois há a sua irmã gémea Liz (Sonya Cassidy), Ernie Fontaine (Brent Jennings) e outros adoráveis losers que orbitam em torno da sociedade “tipo Maçonaria” (mas numa versão irmãos Coen) que é a Ancient and Benevolent Order of the Lynx. Sem pai, sem dinheiro, sem casa e sem o pé para poder voltar ao surf, Dud só quer pertencer a qualquer coisa e é alegria apesar da tristeza.
Esta é “a série mais estranha na TV”, diz a Vice, e “a série mais descontraída na TV para o bem e para o mal”, avisa o Uproxx. É também, vista do seu primeiro episódio, encantadora na sua indolência e tem a força nas suas personagens.
Jim Gavin escreveu um livro de sucesso e tentou escrever uma proposta de um episódio-piloto que servisse de amostra para os seus dotes e daí retirar um contrato futuro num trabalho de outrem. Paul Giamatti gostou tanto que levou o que viria a ser Lodge 49, a amostra que se tornou no pano todo, ao AMC. Adora a ideia de pertença a clubes e organizações, irmandades onde de repente se veste um manto e uma faixa e se é rei por um dia. E também sabe as dores de ver a casa de família penhorada depois da crise, e de lá ir “viver” depois de vazia. “Há qualquer coisa naqueles tempos, naquelas tardes vazias, no temor tisnado pelo sol, aquela sensação de um passado e de um futuro perdido… Acho que muitas pessoas sentiram isso naqueles anos, e ainda sentem”, diz Gavin sobre a crise de 2008 seus efeitos à Vice. “Uma catástrofe em câmara lenta.”
Na Lodge 49 não há Dunkin’ Donuts nem Hooters. Há a singela loja Donuts e o Shamroxx, um pub irlandês focado no físico das empregadas que é assumidamente “a terceira ou quarta cadeia de restaurantes mais popular da América”. O mediano é a norma, como na vida real em que nem todos são extraordinários e nem todas as séries são sobre zombies, professores que dão em traficantes ou raparigas que combatem monstros das profundezas.
Na televisão em que tudo tem um truque, a série que o AMC transmite agora – nos EUA a série foi integralmente disponibilizada online e está a passar também semanalmente – faz o que lhe compete, fala muito de dinheiro e das consequências do que foi a recessão da última década, mas sem fazer dela a sua moeda. Para a frente haverá alquimia, embustes e sobretudo mais Dud, Liz e companhia. Gente entre corvos que não deixam dormir e betinhos que perguntam, ao comprar erva: “aceita bitcoin?”.