A partir do momento em que o nome de uma tendência é um adjectivo, a sua definição irá com certeza variar consoante a interpretação de cada um. É esse o caso da roupa modesta – ou modest dressing, como tem sido descrita pela imprensa estrangeira especializada –, que tem dominado passerelles e catálogos de moda nos últimos anos. Apesar da sua inerente subjectividade, pode ilustrar-se com alguns exemplos: saias mais compridas, golas altas, tops sobre T-shirts, silhuetas mais soltas, em geral, que se afastam do corpo.
A editora de moda do New York Times, Vanessa Friedman, descreve modest dressing como a tendência marcante da última década. Outros meios de comunicação também sinalizaram o fenómeno. É visível nos desfiles de marcas como Calvin Klein, Ce´line e Valentino – que no ano passado apresentou uma colecção que a muitos fez lembrar as roupas usadas pelas personagens da adaptação de sucesso do livro de Margaret Atwood, Handmaid’s Tale. Está nas colecções das mais diversas marcas, onde há várias estações dominam as saias midi e calças largas. Também se observa nas ruas, em pessoas a sobrepor vestidos a t-shirts ou a usar vestidos mais curtos com calças. E está online, nas comunidades de modest dressers que entretanto se juntaram no Instagram, Youtube, e outras redes sociais.
Ghizlan Guenez lançou em Março de 2017 o The Modist, uma loja online de marcas de luxo — como JW Anderson, Lanvin, Erdem e Preen — com uma estética modesta. Essencialmente, a Farfetch da roupa modesta. Quando lhe é pedida uma definição desta tendência, chuta logo para canto. “É um espectro muito grande e diferentes pessoas entram nele”, explica ao P2, por email. O único factor comum ao cliente do The Modist, indica ainda, prende-se com a abordagem “fashion forward” (vanguardista).
Guenez reconhece modest dressing como uma macro tendência que tem aparecido ao longo das últimas estações, mas ressalva que a “modéstia existe há tanto tempo quanto as mulheres”. A viragem para uma estética mais modesta, argumenta, deve-se em parte à abordagem mais feminina e menos “sexualizada” com que as marcas, publicações e outras entidades têm retratado a mulher.
Para Phoebe Philo, a criadora de Céline, citada pelo New York Times, este tipo de roupa “rejeita as restrições do male gaze” (o olhar masculino sobre a mulher). Ou seja, “já não têm a ver com o que os homens querem”, mas com “o que as mulheres querem”.
Está em linha com as mulheres que nos últimos anos têm desafiado a noção de que, ao contrário dos homens, devem remover o pêlo em certas partes do corpo. Ou, como escreve a comentadora Zoe Williams no Guardian, com o retorno na “linha visível de cuecas”. “As adolescentes mais modestas e inseguras odiavam tangas, ao mesmo tempo que sentiam enorme pressão para as vestir”, argumenta.
Há quem fundamente este movimento na direcção da modéstia a uma contra-reacção à cultura das redes sociais, em que uma parte tão grande das nossas vidas está constantemente exposta. Para outros é simplesmente uma forma de fugir ao padrão. “A roupa justa é a norma ao mesmo tempo que o acto de tapar o corpo tem uma certa originalidade para as jovens”, comenta ao Guardian Alexandra Shulman, que esteve 25 anos à frente da Vogue britânica, até sair no ano passado.
O cruzamento entre tendência e religião
A tendência da roupa modesta tem tudo e nada a ver com a religião. Se, por um lado, se tem manifestado em geral em colecções de moda desde o luxo à fast fashion, há também marcas que têm começado a dar resposta à procura de camadas mais religiosas, com peças e linhas direcionadas para este consumidor. A H&M, DKNY e Carolina Herrera, por exemplo, lançaram na altura do ramadão pequenas colecções de roupa “modesta”. Já a Dolce & Gabbana criou uma linha de hijabs e abayas.
Estas acções são também uma oportunidade para as marcas divulgarem uma imagem de diversidade. Nem todas têm sucesso: enquanto a japosesa Uniqlo viu a linha criada em parceria com Hana Tajima, uma designer muçulmana de origem britânica e japonesa, ser muito bem recebida, a H&M sofreu inúmeras críticas por se limitar a reproduzir estilos de países muçulmanos. “O que muita marcas não compreendem é que nós queremos todas as tendências do mundo da moda neste momento, simplesmente queremos a versão modesta destas”, explica ao P2 Aqeelah Harron Ally, uma youtuber e bloguer de moda e beleza com cerca de 17 mil subscritores no canal de Youtube (Fashion Breed).
A marca The Frock NYC , criada em 2010 por duas irmãs australianas de origem judaica, tem na sua fundação um lado religioso, apesar de o estilo ser semelhante ao de marcas como a COS (do grupo H&M). De acordo com as regras da vertente religiosa mais ortodoxa que praticam, as mulheres casadas devem usar mangas até aos cotovelos e peças que caiam abaixo dos joelhos, por exemplo. As duas irmãs têm uma história parecida com a das cunhadas Mimi e Mushky, que fundaram a Mimu Maxi, também com base em Nova Iorque, em Brooklyn.
“Sentimos que havia falta de roupa disponível. Sempre nos vestimos de uma forma modesta mas também sempre tivemos interesse pela moda e nunca quisemos abdicar de um lado ou de outro”, conta Simi Polonsky ao P2. Não que existisse já um número de lojas especializadas para públicos de certas religiões, como a mórmon ou a judaica, continua, mas em grande parte dos casos vendiam roupas antiquadas. A outra opção que as pessoas tinham era, então, procurar peças noutras lojas e fazer algumas alterações para colmatar qualquer falha a nível de comprimento ou transparência. “É fácil para nós encontrar roupa porque somos especializadas nisso, mas é difícil para muitas outras mulheres”, comenta Polonsky.
No que toca à tendência da roupa modesta, a questão da escolha individual é um ponto de reflexão, pois pode ser uma condição imposta sobre a mulher; uma escolha de acordo com a sua religião ou cultura; ou, simplesmente, uma questão de estilo da própria. “A modéstia nem sempre é um estilo manifesto ou óbvio”, lembra Aqeelah Harron Ally. “Acho que as mulheres vão tapar-se quando quiserem tapar-se. E isso vai transparecer como um conjunto normal de roupa”, atira.