Resposta do Parlamento aos vetos mostra um “Bloco Central de palácios”
Assembleia da República tem fugido a afrontar o Presidente da República quando este devolve leis. Estará esta relação moderada entre os vários poderes a ser gerida a pensar nas legislativas de 2019?
Foram vários os suspiros de alívio na terça-feira ao fim da tarde quando a eutanásia foi chumbada no Parlamento: no PSD por não ficar com o ónus de ajudar a passar uma lei que é mal recebida no seu eleitorado; no Governo (e no PS) por não ter de lidar com o embaraço de ver a lei no seu currículo histórico; no Bloco porque mantém uma bandeira diferenciadora (e já vai tendo cada vez menos); e na Presidência da República porque Marcelo não tem de tomar a decisão difícil (pelo menos para já) de vetar ou enviar o diploma para o Tribunal Constitucional. “Tacticamente foi bom para todos”, resume o politólogo Pedro Adão e Silva, investigador do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.
A eutanásia era um tema que se adivinhava um sério candidato a tornar-se um engulho na relação entre o Presidente da República e o Parlamento, admite também António Costa Pinto, coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “No que toca a questões morais e de valores que remetem para a religiosidade e catolicismo”, Marcelo é mais inclinado a vetar, considera o investigador. Que acrescenta que o facto de “o partido mais à esquerda do espectro político, o PCP, também ter votado contra” a lei abonaria a favor de um veto de Marcelo, mostrando que o Presidente “não estava acantonado” à direita.
Porém, tal como prometeram os partidos, haverá tempo para voltar a falar da eutanásia dentro de ano e meio. Para já, olhando para o histórico dos vetos presidenciais em pouco mais de dois anos, a conclusão a tirar sobre o caminho dos sete diplomas que devolveu à Assembleia da República e dos dois decretos que remeteu de novo para o Governo é clara para os dois politólogos. E é resumida numa imagem por Pedro Adão e Silva: “Há um Bloco Central de palácios”, que inclui um triângulo entre o Palácio de S. Bento (Parlamento), o Palacete de S. Bento (a residência-oficial do primeiro-ministro, nas traseiras da Assembleia da República) e o Palácio de Belém. E que “compensa a aliança política à esquerda”, como uma espécie de “contrapeso” político que evita que os socialistas descaiam para a esquerda, e que tem em António Costa um “verdadeiro equilibrista”.
No caso dos dois decretos do Governo vetados, o estatuto dos militares da GNR foi alterado pelo Conselho de Ministros logo dois dias depois do veto, acomodando as alterações exactas que o Presidente propunha; este promulgou-o nessa mesma tarde e anunciou de imediato a sua assinatura.
O do fim do sigilo bancário para contas acima dos 50 mil euros foi recusado por Marcelo quando estava há meio ano em Belém. Foi então guardado na gaveta pelo Governo, que não quis afrontar o Presidente apesar da insistência, por exemplo, do Bloco de Esquerda que propunha esse princípio. Mas, há três semanas, depois de Catarina Martins ter desafiado António Costa para voltar ao assunto, foi Marcelo quem imediatamente abriu a porta: nesse dia apressou-se a colocar uma nota no site da Presidência lembrando que vetara o diploma por causa da situação “grave” que a banca atravessava em 2016, dando a entender que esse período está ultrapassado e que o cenário é agora favorável. A curto prazo o assunto voltará, portanto, ao Parlamento, pela mão do Bloco e, talvez, pela do Governo.
O seu primeiro veto a um decreto da Assembleia da República foi em Junho de 2016, sobre a gestação de substituição, quando Marcelo estava em Belém há três meses: pediu uma maior salvaguarda dos direitos e deveres tanto da gestante como dos pais e da criança. O Bloco trabalhou propostas, uma vintena de deputados do PSD voltaram a ajudar a esquerda a aprovar o diploma e apenas meia hora depois de aprovada a nova versão no Parlamento o Presidente já anunciava que iria promulgar o novo texto quando lhe chegasse às mãos. Entretanto, o Governo regulamentou o assunto, os processos começaram a ser aprovados, mas o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade de algumas normas, fazendo cair novamente o cutelo sobre a lei. E até aqui Marcelo tomou, de certa forma, o lado da Assembleia da República, ao comentar que o tribunal ido “sobretudo buscar matéria anterior, reviu na sua jurisprudência para apreciar matéria que vinha do começo do século”.
O Parlamento ainda não afrontou Marcelo. Nos outros casos de vetos – STCP e Metro do Porto, Carris, financiamento partidário e assinatura de projectos de arquitectura por engenheiros – os deputados procuraram sempre fazer qualquer alteração aos diplomas que receberam na volta do correio, mesmo que muitas vezes tenham ficado muito aquém do pretendido pelo Presidente. Foi o caso da Carris, do financiamento dos partidos e da questão dos engenheiros. Mas mostraram-se pelo menos abertos a mudar alguma coisa.
Só falta perceber o que irão fazer no caso da Uber, embora PS e PSD estejam já em negociações para perceber por onde poderão retocar o diploma. E também no caso da mudança de nome e género no registo civil, em que o Bloco e o PS estão a tentar contornar o pedido de Marcelo de um documento médico com a inclusão de testemunhas para retirar a carga patológica do processo. Mas há aqui também a possibilidade de o PCP poder mudar o sentido de voto de abstenção para a favor caso os dois partidos consigam convencer os comunistas das garantias de possibilidade de verificação da anterior identidade da pessoa que num momento mudou estes seus dados.
Nem sequer há um padrão claro de esquerda/direita nos diplomas vetados por Marcelo, consideram os dois politólogos. Até porque há temas dos dois espectros e argumentação do Presidente que nuns casos pende para a direita e noutros pende para a esquerda. No caso da Uber o Presidente teve uma posição mais à esquerda ao exigir um regime mais equilibrado e regulamentado; no das chamadas barrigas de aluguer e da identidade de género encostou a um lado mais conservador.
Estão os deputados a ter uma atitude submissa em relação a Marcelo? António Costa Pinto prefere dizer que estes se tentam “adaptar” às suas vontades. Pedro Adão e Silva vinca que “não é do interesse” da maioria de esquerda nem do PSD “afrontar” o Presidente porque este tende a “expressar opiniões que são maioritárias na sociedade portuguesa”.
Costa Pinto considera que há aqui tacticismo: todos sabem que Marcelo é “o líder mais popular”, pelo que uma “relação moderada com Marcelo dá votos nas urnas”. A margem de manobra à esquerda “não é grande: não parece, mas o Governo do PS é minoritário… Ao contrário do que disse Pedro Nuno Santos no congresso, o interesse do PS é mesmo ser partido dominante e o eixo do sistema partidário português.” O preço? “Continuar a gerir esta relação até às legislativas.”