Conselho Nacional de Ética chumba proposta do BE sobre mudança de sexo
BE quer separar águas e eliminar a exigência de diagnóstico médico para alterar o sexo e o nome nos documentos. PAN apresentou um projecto semelhante e o Governo prepara outro. “Será o menor capaz de decidir?”, questionam os conselheiros sobre a diminuição da idade legal para mudar o registo civil.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida é contra o fim da exigência de um parecer médico para mudar o nome e o sexo que consta dos documentos de identificação, como é proposto pelo Bloco de Esquerda. Também é contra possibilidade dessa alteração ser feita antes dos 18 anos contra a vontade dos pais.
Actualmente, exige-se que quem quer alterar o género e o nome próprio nos documentos tenha 18 anos, faça um requerimento numa conservatória, apresente “um relatório que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género”. O BE quer eliminar o diagnóstico médico e baixar a idade mínima. O PAN apresentou um projecto semelhante e o Governo prepara outro que vai no mesmo sentido.
“O registo civil é um acto público”, “deve ter por base critérios universais”, defende o conselho no parecer, não vinculativo (as propostas de alteração da Lei da Identidade de Género podem vir a ser aprovadas na mesma). “O estabelecimento de uma liberdade absoluta do registo de género de cada pessoa tornaria impossível um reconhecimento público da identidade”, alega.
O desacordo é de princípio. “Sem pôr em causa o direito que cada pessoa tem a ser aquilo que é, o que inclui, naturalmente, a livre manifestação da sua identidade e expressão de género, não se afigura aceitável, à luz das leges artis médicas, que o exercício de tal direito possa resultar de uma mera manifestação de vontade da pessoa”, lê-se no parecer.
Os conselheiros citam o “Trans Rights Europe Index 2016”, de Maio de 2016, segundo o qual é possível fazer “a mudança do nome e do sexo em 41 Estados da Europa”. “Em 24 desses Estados (13 dos quais integrados na UE) a mudança de sexo está condicionada à realização de cirurgia invasiva. Em 36 dos 41 Estados é exigido o diagnóstico de perturbação mental”, referem.
No parecer, de 25 páginas, lembram que, na Europa, a “eliminação da exigência de diagnóstico de perturbação mental foi alcançada na Dinamarca (Maio de 2014), em Malta (Abril de 2015), na Suécia, na Irlanda (Julho de 2015) e na Noruega (Julho de 2016)”. E que aquela corrente vai ao encontro de recomendações de diversas organizações internacionais, como a Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia.
Os médicos também não ignoram que vários Estados “permitem aos menores o reconhecimento legal da identidade de género”. Nem que há “Estados onde existem marcadores legais de género neutro (Malta, por exemplo)”. “A Nova Zelândia, a Austrália e a Índia permitem um terceiro género”, apontam. “Desde Novembro de 2013, a Alemanha possibilita que o registo do sexo de um recém-nascido fique em branco, caso o sexo não seja determinável”, indicam ainda.
Parece-lhes evidente que a autodeterminação de género – “reconhecida através de procedimentos administrativos sem imposição de avaliação psiquiátrica e intervenção cirúrgica de reatribuição do sexo – é cada vez mais proclamada entre defensores dos direitos humanos”. E que, aí, o paradigma é a Argentina, onde a identidade de género é considerada um direito fundamental.
Na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, o diagnóstico de transexualidade entra na lista de Perturbações da Identidade Sexual. Esta classificação, porém, está a ser revista e prevê-se que passe da saúde mental para a saúde sexual. No Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria, já só consta a Disforia de Género.
Os médicos reconhecem também que a World Professional Association for Transgender Health, uma referência mundial nesta matéria, distingue a variabilidade de género da disforia de género. Uma “refere-se ao grau em que a identidade, o papel ou a expressão de género difere das normas culturais prescritas para pessoas de um determinado sexo”. A outra “resulta do desconforto ou mal-estar causado pela incongruência entre a identidade de género de uma pessoa e o sexo que lhe foi atribuído”. Ora, “apenas algumas pessoas com variabilidade de género experimentam disforia de género”.
Mesmo assim , o conselho entende que não há “fundamentação bastante para prescindir da disforia de género”, logo, do diagnóstico. “A par da transexualidade dita primária, existem manifestações transexuais secundárias relacionadas com quadros intersexuais (hermafroditismo, pseudo-hermafroditismo e diversas síndromes genéticas) ou com perturbações de natureza psicótica (p. ex., o koro e a paranóia de metamorfose sexual), nos quais a autodeterminação está coarctada”, alega ainda. “Quem distingue uns de outros?”, questiona.
“Será o menor capaz de decidir?”
Julga ainda que separar o procedimento legal do médico, abrir a possibilidade de avançar para a alteração do registo sem um diagnóstico pode levar a “frustração e falsas expectativas.” Ou seja, acham que se abre o risco de a pessoa fazer a mudança no registo e, depois, não obter os relatórios médicos necessários para aceder aos tratamentos. É que os médicos estão “vinculados a normas e protocolos de intervenção reconhecidos pela comunidade científica internacional”.
Baixar a idade legal para os 16 anos também suscita dúvidas. “Será o menor capaz de decidir?”, questionam. Emerge uma responsabilidade parental. Ora, a proposta do BE prevê a possibilidade de um menor de idade requerer a alteração de nome no registo à revelia dos pais.
José Soeiro, um dos deputados do Bloco de Esquerda que estiveram na origem da proposta, discorda do parecer. Começa por lamentar que os conselheiros não aceitem a distinção entre sexo e género. Reitera que uma pessoa transgénero não precisa que um terceiro ateste que ela é o que ela é. A proposta abre a porta à possibilidade de um menor intentar uma acção contra os pais que não consintam na mudança de registo civil porque “a lei prevê que o passa fazer em relação a direitos fundamentais e a identidade de género é um”.
Parece-lhe haver alguma confusão. “A proposta não mexe nos protocolos clínicos”, sublinha. “Diz que o SNS garante o acesso a intervenções cirúrgicas e/ou a tratamentos farmacológicos destinados a fazer corresponder o corpo com a identidade de género", sublinha. "O acesso aos cuidados de saúde é uma opção. As pessoas trans não têm de recorrer a cuidados que não queiram, mas aqueles de que precisam devem ser-lhes garantidos. Para isso, não é preciso diagnóstico de patologia mental. A gravidez não é uma doença, mas as grávidas têm acesso ao SNS", remata.