Primavera silenciosa
Estaremos nós a caminhar para uma Primavera silenciosa depois destas tempestades invernosas dos últimos dias?
A Primavera Silenciosa é uma obra clássica de 1962, onde a bióloga americana Rachel Carson alertou para o efeito nefasto do insecticida DDT e de outros pesticidas no ambiente, em geral, e na saúde humana, em particular. As suas obras, e em particular este emblemático livro, despertaram uma consciência ambiental global e a base do movimento que levou à regulamentação, fiscalização e utilização dos pesticidas. Trinta anos mais tarde, John Richard Krebs, biólogo inglês, lançou, na revista científica Nature, outro alerta para o que intitulou a segunda Primavera silenciosa. Neste caso, referia-se sobretudo à perda de diversidade biológica, particularmente da paisagem inglesa, em resultado da intensificação e extensificação da agricultura com monoculturas. E em Portugal? Trinta anos após este último grito inglês de alerta, estaremos nós a caminhar para uma Primavera silenciosa depois destas tempestades invernosas dos últimos dias? Os alertas são frequentes e constantes, tanto nos jornais como nas redes sociais. Mas o autismo mantém-se: a sociedade urbana, apesar de estar sensível, considera que o problema não é seu; a sociedade rural transmite estes mesmos alertas, faz o que pode, mas o seu sustento fala mais alto; os governantes alicerçam-se em números, índices de economia e de satisfação do povo, e no cumprimento de regras, nacionais e europeias. As paisagens portuguesas estão feridas. Feridas com diferente gravidade, mas que urge sarar e tratar profundamente.
Nas zonas ardidas do ano passado, o solo tem sido erosionado, particularmente depois destas sucessivas tempestades, arrastando pedras e sedimento para os rios, que ficam com águas turvas e lodosas. Noutras, as acácias, os fetos, as háqueas, ou mesmo os rebentos de eucalipto estão já a proliferar sem controlo. Proporcionalmente, são poucas as áreas onde tem havido alguma intervenção e mesmo nessas, depois destas chuvadas, veremos qual o resultado do esforço de inúmeras associações que procuraram plantar flora autóctone. É certo que apenas 2% do território florestal nacional é estatal, mas se existem leis para cortar tudo a eito para se cumprir regras de limpeza das matas, estradas e aldeias, não se percebe porque só a partir de Junho deste ano os planos regionais de ordenamento florestal (PROF) terão de estar concluídos. Fez já um ano que as propostas de lei para a reforma florestal foram esboçadas.
Antes que a obrigatoriedade dos PROFs surja, estão a ser replantados eucaliptos e pinheiros em zonas onde antes existiam e que poderão dar algum lucro imediato a quem ficou sem nada. Com o país rural que temos nada disto poderá ser criticável. Crítica é a situação devida a anos de desinteresse do mercado pelos terrenos e produção florestal, de baixos incentivos para a criação de conhecimento na área da floresta, de falta de lugares para profissionais florestais. Só ao fim de nove meses após o primeiro grande incêndio foram aprovados os parques de ressecção de madeira queimada. Existe já uma comissão instaladora da Agência de Gestão Integrada dos Fogos Rurais mas, apesar do seu presidente afirmar que de nada serve um plano de gestão de fogos se a paisagem não mudar, tarda a instalação de uma comissão especializada em florestas e ordenamento do território, embora já exista uma petição para a sua formalização.
Numa altura em que é clara a alteração climática, onde Portugal está cada vez mais sujeito à aridez iminente, terá de se saber seleccionar a paisagem que se pretende obter para o futuro. E é neste caso que se deve ter em conta as espécies a plantar, o seu genótipo, a sua capacidade de adaptação. É neste modelo que terá de haver uma grande partilha de responsabilidades, cabendo aos biólogos um papel de relevo pelo seu conhecimento básico das espécies vegetais e da visão integrada do ambiente para apoiar a produção e posterior plantação da nova paisagem. Apesar do ICNF (Instituto da Conservação da Natureza e Florestas) ter a responsabilidade de certificar as plantas de produção e o acompanhamento de plantações, o território afectado e a replantar é vasto e pouco controlável. Durante anos, a quantidade de pedidos de plantas florestais, outras que não eucalipto ou pinheiro, foi reduzidíssima pelo que a sua produção em viveiro deverá ficar muito aquém dos possíveis pedidos deste ano. Há alguma preocupação neste sentido? Se não existir nos viveiros nacionais pode-se sempre adquirir na vizinha Espanha, porque lá os viveiros asseguram diversidade e quantidade de plantas arbóreas e arbustivas. Houve ou há incentivos para plantar outras espécies? Existe algum banco de dados de diversidade genética das diferentes populações de carvalhos, faias, amieiros, presentes em território nacional? Estão identificadas as populações mais resistentes à seca, à susceptibilidade de resposta a pragas e doenças? Aparentemente estas são questões sem incentivos financeiros ou com cabimento nos programas europeus, por serem demasiado regionais e locais. E Portugal não compreende que se não forem criados esses investimentos ninguém mais o fará. Também neste campo somos diferentes dos restantes países europeus.
A sul, a paisagem também está diferente. As monoculturas são outras e não são denunciadas, apesar de serem tão monótonas e prejudiciais, ao solo e à biodiversidade global, como os eucaliptais ou pinhais da zona centro. As oliveiras, as amendoeiras, até a vinha, substituíram grande parte dos campos de rotações cerealíferas. Plantas do pomar de sequeiro, característico do Mediterrâneo, oliveiras, figueiras, amendoeiras e alfarrobeiras, estão a ser cultivadas de forma intensiva com rega do Alqueva. Numa altura em que o país enfrenta um perigo eminente de seca extrema, faz sentido continuar a subsidiar agricultura de regadio, transformando e uniformizando paisagens? Mesmo as zonas estepárias, fora do controlo da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), estão a diminuir e com elas o habitat de espécies emblemáticas. Faz isto sentido? Quando chegar a Portugal a praga que já assola os olivais italianos e alguns espanhóis, nessa altura pedem-se subsídios de calamidade, de prejuízos agrícolas.
A Primavera está a chegar e em muitas zonas do nosso país será silenciosa. As plantas não se ouvem e os animais não têm lugar porque o habitat não é o seu. É este o grito que diferentes cientistas têm vindo a dar. Mas, infelizmente, só será entendível quando todos nós e mesmo os turistas se sentirem frustrados porque já não encontram os sons e os cheiros característicos duma paisagem mediterrânica.