Criatividade acessível e outras comidas brutas

Em miúdo, João Pupo Lameiras ligava à mãe e perguntava ‘O que é que posso adiantar para o jantar?’. Hoje, o chef brinca em várias cozinhas.

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João esteve para ser engenheiro civil Adriano Miranda

“Aos 12 anos todos cozinhávamos, não?” João Pupo Lameiras está convencido que sim. Ele sim. Sentava-se no sofá a ver o José Carlos Capote — “só havia o José Carlos Capote” — e depois entretinha-se a brincar com os restos, improvisando como se estivesse no “Ready Steady Cook” da BBC, com vontade de fazer algo delicioso com um orçamento de cinco libras. “Ligava à minha mãe e perguntava ‘O que é que posso adiantar para o jantar?’”, recorda o chef, que tirou o primeiro curso de culinária aos 14 anos, em Leiria, e que hoje brinca em várias cozinhas.

Esteve para ser engenheiro civil. Concluiu o curso na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, mas não se inscreveu na Ordem. “Em rigor não sou engenheiro”, sorri João. “Achava que a cozinha não era vida para ninguém.” Diz quem passa a vida dentro da cozinha — do Bacalhau, na Ribeira do Porto, do RO, na Baixa portuense, ou de qualquer um dos quatro restaurantes onde actualmente presta serviço de consultoria (Mundo, LSD, Casa de Pasto da Palmeira e Casa de Pasto das Carvalheiras). A dúvida pairou na sua cabeça durante algum tempo. Trabalhar em Engenharia e “ter uma vida mais normal” ou fazer o que sempre quis fazer. Entretanto, fez quatro estágios: no restaurante Terraço, de Luís Baena, no lisboeta Tivoli, no japonês Góshò, no Horta dos Reis, em Vila Nova de Gaia, e no Taberna 2780, em Oeiras. “A ideia era tirar a teima”, refere. “Durante uma conversa em que estava a discutir isso mesmo, ligaram-me para abrir um restaurante. Era o dono do Horta dos Reis, que depois foi meu sócio no Palmeira e no LSD. Eu não sabia muita coisa. Somados, tinha três meses e meio de estágios. Estava mesmo a decidir trabalhar em Engenharia. Foi uma coincidência engraçada. O convite aconteceu em Agosto e o restaurante abriu ainda nesse ano, dois ou três meses depois.”

Para além de um badalado “cevadotto” de presunto pata negra com queijo da Serra — cozinhar cevada como um risotto não é uma invenção sua, mas chegou a acreditar que sim, e isso terá que contar para alguma coisa —, o que João Lameiras trouxe à cozinha foi alguma ingenuidade, assume. “Se calhar ainda tenho alguma. Eu toco guitarra e senti que, quando comecei a saber mais, quando comecei a ter aulas de jazz, fazia temas menos bonitos do que quando sabia menos. A música começa de uma forma descomprometida. E vai-se perdendo. Na cozinha tinha essa ingenuidade — por não conhecer muito bem o mundo. E isso era fresco, era bom. Agora acho que sou menos ingénuo. À medida que se vai aprendendo, perde-se um bocadinho a ingenuidade.” Foi procurando essa simplicidade nas suas viagens, no momento em que decidiu conhecer o mundo. Trouxe a confusão e os cheiros da Tailândia, onde passou a lua-de-mel (“Mudou completamente o tipo de comida que estava a fazer”), trouxe do Japão directamente para o RO o ramen (“fomos ver a comida e comer muito ramen”, diz João, que está “a ficar com a China na cabeça”) — e o ramen tem sido a receita que se ajusta perfeitamente à ideia de conforto que sempre desejou. “Ao sair do trabalho, muitas vezes pensava ‘Não me apetece nada, só me apetece um caldinho confortável com uma massa’. O ramen é comida tradicional, uma herança que permite aculturações. Vale tudo, vale muita coisa. É uma comida que permite brincar um bocadinho, sem ajavardar muito”, explica o chef, sentado numa das mesas ainda vazias, ao lado do quadro do cão de quimono, uma pintura feita à medida por Sofia Torres.

João Pupo Lameiras, dois filhos e um a caminho, diz-se uma “pessoa relativamente familiar” e com “cultura de família”. “Em casa da minha avó havia o bucho feito no cozido e imensos enchidos. Aos 93 anos, ela ainda vai ao seu enchido.” O chef tem imensas ideias do “cheiro enjoativo da morcela”, de coisas que gostava muito (como o bacalhau de fricassé ou de carne assada pela manhã), daquilo que comeu nos seis meses de Erasmus na Eslovénia, do mapa que traçou para “varrer tudo” em Nova Iorque. “A minha viagem é em grande parte programada à volta dos restaurantes onde vou. E invisto bem nisso. Vou a sítios que sei que me vão ser úteis. De coisas muito simples a coisas muito complicadas. Em Nova Iorque anotei tudo. Tinha um mapa. E depois tento enquadrar lá no meio os museus e os jardins...”

João faz “criatividade acessível” numa cidade que está “um bocadinho saturada”, onde todos os dias abrem “muitas coisas” e onde as pessoas tentam circular por entre trolleys de viagem, selfies e estabelecimentos comerciais com letreiros com estrangeirismos, neologismos e outros ismos e eiras. “As pessoas experimentam, experimentam e às vezes escolhem aquele para ser o spot, mas a maior parte das vezes não chegam a escolher. Aqui no RO temos a sorte de ter muitos habitués, o que é fixe.”

Faz torresmos no Bacalhau. Faz presa de porco, chutney de tomate e nori, foie gras e arroz frito no Mundo. Faz batata e bife com molho de bacon na Casa de Pasto das Carvalheiras. Faz rabanadas de pão-de-ló e vinho do Porto. Faz figo das Rendufas, gelado de azeite e queijo da Serra. Faz terrina de fígados de galinha e tártaro de pato. Faz bimis com maionese de miso e lima no RO. Faz ramen para os dias quentes e ramen para os dias frios. Há um elogio que se destaca na sua recheada conta de Instagram: “És um bruto!”

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Adriano Miranda
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