Marcelo: “Este é o meu estilo, com este Governo ou com outro”
Com a polarização dos hemisférios esquerda-direita, coube ao Presidente preencher o lugar do meio, o que faz ao seu estilo e com prazer. Há um ano a ocupar sozinho o centro político, Marcelo Rebelo de Sousa conta ao PÚBLICO o que vê desde esse observatório único que é Belém.
Em Abril de 2016, há mês e meio em funções, numa estufa hidropónica no Alentejo, o Presidente da República apanhou morangos e conduziu o carrinho da colheita. O carrinho fugia para a esquerda e ele avisava, a rir, que a sua função era conduzir estritamente ao centro. E há um ano que Marcelo Rebelo de Sousa é o único protagonista a ocupar esse lugar político onde antes se ganhavam eleições. O PS da "geringonça" que aguça a curiosidade dos europeus não tem grande margem para negociações com o centro-direita e o PSD de Passos Coelho e da coligação com o CDS acentuou uma marca liberal sobre a social-democracia.
O Presidente da República tem tido, por isso e porque não há nenhuma maioria absoluta, uma conjuntura favorável ao estilo de Presidência que quer fazer: ele é o moderador, o árbitro, o omnipresente, o incansável. Intervém sempre que há um problema e quando não há também. Aparece ao lado do Governo quando há uma vitória e não dispensa a presença de ministros nas suas deslocações pelo país, e perante a Europa vai acalmando os ânimos sobre a “geringonça”. A direita não gosta, mas Marcelo garante que será este o seu estilo, com este Governo ou com qualquer outro. E depois há o estilo único no contacto com as pessoas.
Desta vez vamos com ele percorrer os caminhos políticos do presente e do futuro. O dia começa na Moita, numa manhã cinzenta, chuvosa e fria. Quando se trata de pessoas, e sobretudo de crianças, o Presidente parece perder a noção do tempo. Visita sem pressa a Escola Técnica Profissional da Moita e o colégio Corte Real, uma cooperativa de ensino para os mais pequenitos que funciona dentro do campus da Escola e aproveita os seus recursos humanos.
Entregam-lhe os desenhos feitos pelos meninos de 3-4 anos a propósito da sua visita e ele pega neles, chama pelos autores um a um e cumprimenta-os: aos rapazes, aperta a mão,sacudindo-lhes o braço, senão o corpo todo; às meninas dá beijinhos, levanta-as do chão – excepto àquela que, apanhando-o distraído, lhe dá uma palmada no traseiro, fazendo-o rir. Já é hora do almoço e Marcelo passa para o refeitório. Dá a sopa a uns, incita os outros a uma corrida a ver quem termina primeiro, demora-se nas ternuras com os miúdos e nas selfies com as educadoras e auxiliares.
Segue-se a Escola Profissional propriamente dita e a pressa também é nenhuma: são já 13h30 e vai com meia hora de atraso para o almoço no recém-inaugurado restaurante de aplicação Oficina, onde os alunos dos cursos profissionais de cozinha prepararam o almoço. Vichissoise para entrada – e ninguém se riu –, risoto de cogumelos com carne, dezenas de selfies, de beijinhos e larachas. Quando acaba são 15h30 – a visita atrasa-se uma hora e vai fazer escorregar todo o programa do dia.
Entramos no carro com o Presidente e, de imediato, ele e o ajudante de campo fazem ajustes na agenda: o número da venda da revista Cais nas ruas de Belém será adiado. O dia não está propício e já não há tempo. Há meia-hora que um embaixador o espera no Palácio de Belém e a comitiva da Cais também já lá está.
Nós não. O trânsito na Ponte 25 de Abril ainda é intenso e o Presidente reclama com o motorista por não lhe ter dado ouvidos e feito o desvio pela Ponte Vasco da Gama. Marcelo não quer pirilampos, batedores de mota nem altas velocidades. Mesmo a matrícula presidencial só é usada em casos especiais. Felizmente foram escassos os minutos de espera na fila da Via Verde, o motorista sabia.
“Hoje nem quero imaginar quantas pessoas vou cumprimentar. Até aqui contei 500, depois deixei de contar, e selfies foram mais de 200”, desabafa Marcelo, confessando sentir-se um pouco cansado, em parte por causa do tempo, em parte por antecipação do dia. O programa era uma loucura, daqueles que vê logo que não é possível cumprir e mesmo assim tenta.
Depois do embaixador e da Cais, ainda haveria de dar posse ao Comité Olímpico Português no CCB, oferecer um concerto de Carlos do Carmo aos responsáveis das Instituições Particulares de Solidariedade Social no antigo Museu dos Coches e, por fim, inaugurar a exposição de fotografia de Alfredo Cunha, na Cordoaria Nacional. A hora marcada eram as 19h, chegou já às 20h30. Um atraso que levou à desmobilização de muita gente, inclusive do presidente da Câmara de Lisboa, por motivos familiares. Dali partiria para o Porto de carro, já que no dia seguinte o programa começava de manhã com as cerimónias do 16.º aniversário da queda da ponte de Entre-os-Rios. Uff!
No carro com Marcelo
Mas agora ainda vamos no carro, da Moita para Belém, e há oportunidade para uma conversa descontraída. Perguntamos se, decorrido um ano, não parece termos regredido em relação à crispação que havia quando tomou posse. Marcelo não concorda: “Há dois planos, a sociedade e os políticos. Na sociedade, a tensão era muito grande, tinha havido eleições há pouco tempo, os eleitorados estavam divididos, quem apoiava um lado estava contra o outro, era uma divisão na sociedade, essa está ultrapassada e isso é irreversível. As pessoas estão com confiança, com boa disposição, com espírito positivo”.
Na parte política, nunca esteve bem. "Eu nunca tive estado de graça nesse sentido, porque uma parte do centro-direita ansiava pela dissolução, primeiro, e esperava a queda do Governo por razões financeiras ou económicas internas mas determinantes de intervenções externas, depois; e a esquerda olhava com reservas de peso um Presidente de direita. E ainda hoje há quem, de um lado e de outro, assim pense. O que em nada condiciona um Presidente que avançou como avançou como candidato e age em consciência com total independência".
A subida de tom do discurso político está muito ligada à proximidade das autárquicas. Mas hoje, Marcelo considera que as autárquicas já não deverão ser uma mudança de ciclo político. Porque acredita que o PSD vai ter bons resultados e mais câmaras pelo país, à excepção das áreas metropolitanas. Se assim for, será um resultado que não deixa em questão o líder, que assim poderá chegar tranquilo ao congresso do início do próximo ano.
Esta radicalização verbal tem também a ver com a sedimentação da "geringonça": para os partidos da esquerda, Passos Coelho é um seguro de vida, pois cada vez que há uma radicalização eles unem-se. Pelo lado do líder do PSD, o discurso subiu de tom por força de alguma pressão interna e também porque percebeu que o fortalece internamente, o que vai dar jeito, se no congresso Rui Rio lhe disputar a liderança.
No último ano, a direita deixou de ser um bloco. O PSD tem pressa em voltar ao poder e parece acreditar que isso pode acontecer ainda este ano. Já o CDS parece pensar mais no médio prazo, precisa de tempo para a líder se afirmar e melhor negociar com o PSD a seguir.
As ofensivas eram expectáveis, tanto de um lado como de outro. Depois da polémica da CGD, que se arrasta há meses (e continua), com o ministro das Finanças ao centro, os problemas levantados – as transferências escondidas para offshores, noticiadas pelo PÚBLICO, e a reportagem da SIC sobre o Banco de Portugal e o fim do BES – colocam em causa a direita. A esquerda aproveita a posição de união e força em que se encontra para desgastar os adversários. O PSD poderá contra-atacar quando for conhecida a acusação a José Sócrates, à qual tentará colar o PS.
Entretanto ao centro, Marcelo reforça a sua popularidade, muito graças ao estilo de Presidência próxima das pessoas. E o apoio popular é importante para dar espaço de manobra ao Presidente. Cada vez que tem de intervir, mesmo quando os comentadores discordam ou os dirigentes partidários não gostam, ficam a falar sozinhos porque a generalidade da opinião pública está com ele.
O semipresidencialismo luso agrada ao constituinte e constitucionalista Marcelo, que sacode as críticas por exacerbar os seus poderes. Um exercício de memória simples permite encontrar nos seus antecessores momentos muito mais interventivos e disruptivos logo no primeiro mandato. Marcelo ainda não passou a fase da doçura e promete manter-se assim. “Não vou alterar o estilo, o estilo é este. Uma coisa é exercer o poder, outra é imiscuir-me na vida da oposição ou andar a atacar o Governo”. Por isso, quando tem algum reparo a fazer prefere fazê-lo no site, na promulgação das leis, ou fazê-lo pela positiva, deixando que se perceba dos seus discursos.
E a Europa à deriva, os cenários de Juncker, a declaração de Roma que se arrisca a ser vazia? Os cenários vêm facilitar a tarefa de definição de rumo, isso é pedagógico e clarificador considera Marcelo. Que se afirma, como o Governo, a favor de “na declaração de Roma haver uma referência à União Económica e Monetária, uma posição comum sobre migrações e refugiados, sobre a maior ligação entre a UE e a Aliança Atlântica e boas relações com os EUA, sobre o facto de as negociações com o Reino Unido deverem ser as mais rápidas possível e deverem criar uma linha compreensiva de parte a parte”. Quanto às diferentes velocidades, pensa que “é manter o esquema das cooperações reforçadas: estão aí, abertas. O euro o que é, senão isso?”
Que figuras o inspiram politicamente hoje em dia? “Há duas figuras na Europa: a chanceler Angela Merkel e o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, que são verdadeiramente liderantes. Podemos concordar ou não com eles, mas têm peso, têm uma linha política para o futuro da Europa e são em conjunto muito importantes, mesmo quando não estão de acordo”. Confiante no futuro da Europa, Marcelo segue para o resto do seu preenchido dia. Que só há-de acabar no Porto, já noite dentro.