Cinema português protesta em Berlim contra novo decreto-lei
O diálogo de 11 associações com a tutela está esgotado, mas outras entidades aceitam um "sistema que, não sendo perfeito, é o mais transparente". Secretário de Estado diz que não se esgotaram as oportunidades de debater com o sector.
Há anos polémica, a constituição dos júris que decidem os apoios públicos ao cinema e do audiovisual não foi alterada com a revisão da regulamentação da Lei do Cinema operada pelo Governo. Por considerar que "há conflitos de interesse" e risco de "falta de diversidade", um grupo de produtores, exibidores, festivais, realizadores e sindicatos anunciou esta terça-feira que tem um parecer jurídico que põe em causa a futura lei e que vai boicotar um evento que assinalará, com o secretário de Estado da Cultura em Berlim, a representação "impressionante" do cinema português na Berlinale. Outras associações do sector, porém, querem apenas "ultrapassar este impasse" e aceitam um "sistema que, não sendo perfeito, é o mais transparente".
Além destas medidas, o grupo pediu já uma audiência ao primeiro-ministro e prepara um "protesto internacional" que encetará no Festival de Berlim para denunciar "o perigo que representa para o cinema português este decreto-lei" – sob a forma de um texto e de uma recolha de assinaturas, precisou Luís Urbano, produtor e responsável da Associação de Produtores de Cinema Independente, na manhã desta terça-feira numa conferência de imprensa no Cinema São Jorge, em Lisboa. O diálogo com a tutela parece estar esgotado, após um encontro recente com o secretário de Estado da Cultura.
Representantes de 11 associações do sector reuniram-se esta terça-feira para voltar a alertar – na sequência de uma carta aberta à tutela enquanto esta discutia a alteração ao decreto-lei em causa e de outras tomadas de posição públicas – para os riscos que consideram que a potencial formulação do documento pode trazer. Em causa estão o poder e a constituição da Secção Especializada de Cinema e do Audiovisual (SECA) do Conselho Nacional de Cultura na escolha dos júris que depois avaliam a atribuição dos apoios públicos à produção, exibição e distribuição pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA).
"É uma questão de princípio", esclarece Cíntia Gil, directora do DocLisboa – ao invés de dar ao Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) o seu poder regulatório do sector, a tutela prefere "criar uma arena onde dá assento a um mundo de associações e pessoas que combatem – e os mais fortes ganham".
Ainda por aprovar em Conselho de Ministros após um processo de consulta ao sector em 2016, o novo decreto-lei “pretende perpetuar e piorar uma situação em que os mais directamente interessados nos resultados desses concursos não só angariem nomes” como avaliem as escolhas da direcção do ICA, dizem as 11 entidades numa nota enviada aos jornalistas.
A situação pode gerar “um caos sem precedentes” no instituto, defendem a Associação Portuguesa de Realizadores, a Associação de Produtores de Cinema Independente, a Associação pelo Documentário, a Agência da Curta-Metragem, o Portugal Film, o Indie Lisboa, o DocLisboa, Festival Internacional de Documentário, o Curtas de Vila do Conde, o Sindicato dos Músicos, Profissionais do Espectáculo e do Audiovisual (Cena), o Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e do Audiovisual e o Sindicato dos Técnicos do Espectáculo.
No parecer jurídico sobre a alteração ao decreto-lei assinado pelos advogados Margarida Vaz e João Afonso Parente, da Baptista, Monteverde & Associados, pode ler-se que não existe "ilegalidade" mas que é identificada na alteração das competências da SECA "uma forma de branquear um vício de usurpação de poder e um vício de incompetência, uma vez que a SECA não tem competências decisórias, mas sim, consultivas". No documento, distribuído aos jornalistas, constam ainda considerações sobre "o perigo" de "os concursos violarem os princípios da legalidade, da justiça, da transparência ou da imparcialidade".
Assim, "a SECA não é competente para o poder" que exercerá sob o novo decreto-lei, que Urbano diz esperar que ainda seja reversível – é "um enorme equívoco", "o decreto-lei de 2013 e o esvaziamento de competências do ICA", ao qual gostariam de ver atribuídos mais poderes do que o de "meramente distribuidor de dinheiros".
Sobre a recusa do convite para um jantar tendo o embaixador português na Alemanha como anfitrião e com Miguel Honrado presente para assinalar a "impressiva presença portuguesa em Berlim", o mesmo produtor explica: "Não podemos, em consciência com a nossa posição, partilhar os méritos" do feito com "o actual secretário de Estado, que tem uma posição absolutamente contrária". Foi sob a alçada do secretário de Estado Miguel Honrado que se realizou a revisão do decreto-lei n.º 124/2013, tendo o responsável dito ao PÚBLICO pouco depois da consulta pública que queria encetar “um novo paradigma de cooperação com o sector”.
A "verdadeira diversidade do cinema português" que nesta Berlinale se cristaliza é o que fica em risco no futuro, defendem os 11 signatários do actual protesto. Isabel Machado, da Apordoc, assinalou que muitos dos presentes têm assento na SECA – que formalmente é um órgão consultivo e que se perfila agora como deliberativo, crêem – e o rejeitam. Ao ICA, não reconhecem "sentido de Estado", diz Urbano. Ponderam ainda uma petição pública a entregar na Assembleia da República para que o caso seja discutido no Parlamento.
Diálogo ainda não se esgotou, diz secretário de Estado
"Incomodado" com o anunciado boicote à recepção em Berlim, o secretário de Estado Miguel Honrado garantiu ao PÚBLICO que continua "aberto ao diálogo com todas as estruturas" e que da sua parte "não se esgotaram as oportunidades de debater o decreto-lei". Lembra, ainda, que apenas 11 das 60 associações representativas do sector se manifestaram contra o artigo em causa, o que demonstra o sucesso do envolvimento dos agentes num processo de revisão que, reitera, "foi bastante participado".
Miguel Honrado recusa ainda reduzir "à questão dos júris" todo o trabalho em torno do decreto-lei. E argumenta, em defesa da solução encontrada, que "a SECA não é um organismo espúrio" – "integra o Conselho Nacional da Cultura, que por sua vez integra o Ministério" – e que em todo o caso a composição do júri é uma incumbência do ICA, que cabe depois ao próprio secretário de Estado homologar. De resto, diz ainda, estas atribuições da SECA "não são novidade", e o que o novo decreto-lei vem fazer é justamente "reforçar" a presença "dos beneficiários do financiamento" nesse organismo ao qual compete indicar jurados para os diversos concursos a abrir pelo ICA.
Quanto às acusações de esvaziamento do ICA, o secretário de Estado considera-as injustificadas: "O ICA sai até com poderes reforçados no que diz respeito à composição dos júris."
Sector dividido
Os subscritores destas queixas reconhecem que a situação em torno da SECA trouxe ao sector “uma conflitualidade nunca antes vista”, dividindo opiniões de associações e profissionais do cinema e do audiovisual. A tutela chegou a admitir devolver ao ICA a selecção de jurados para os concursos após consulta à SECA, mas a versão final do documento não deu seguimento a essa possibilidade. Algo que Luís Urbano lembrou na conferência de imprensa com estranheza, justificando a necessidade de recorrer ao primeiro-ministro e a intenção de enviar também um texto subscrito por figuras do sector a António Costa e ao Presidente da República.
De fora deste protesto estão associações também representativas do sector como a Associação de Produtores de Cinema e Audiovisual (APCA), a Associação de Realizadores de Cinema e Audiovisual (ARCA) ou a Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos (APAD) por exemplo. Pandora Cunha Telles, presidente da APCA, disse ao PÚBLICO que o resultado da auscultação ao sector terá dado à tutela bases para entender que boa parte dos profissionais aceitou que "este sistema, não sendo perfeito, é o mais transparente" no que toca à eleição de jurados. Referindo a concordância da APAD e da ARCA com esta posição, diz que o que urge é "ultrapassar este impasse" visto que há ainda concursos por abrir. O realizador António-Pedro Vasconcelos, presidente da ARCA, diz-se em desacordo com a revisão "cosmética" do decreto-lei, mas também em "total desacordo" com a tomada de posição das 11 associações.
As curtas de Salomé Lamas, João Salaviza, Diogo Costa Amarante e Gabriel Abrantes foram seleccionadas para competição oficial do 67.º Festival de Berlim, que começa quinta-feira, assim como o novo filme de Teresa Villaverde, Colo. Lamas e Costa Amarante estiveram no palco do São Jorge, com os colegas João Pedro Rodrigues, Claudia Varejão, Margarida Gil ou o exibidor e produtor Pedro Borges na plateia. Filipa César está também em Berlim, mas na secção Fórum (fora de competição), num total de seis filmes portugueses e duas co-produções luso-brasileiras.
O ICA e a Secretaria de Estado da Cultura disseram nos últimos meses ter a intenção de abrir os cerca de 24 concursos de apoio de 2017 até Março, sendo que o prazo regulamentar para a sua calendarização já foi ultrapassado em Outubro.
Com Inês Nadais
Notícia actualizada às 19h16, incluindo declarações do secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado