Uma semana com Apichatpong Weerasethakul na cidade
Monta Fever Room, que vai ser um dos espectáculos do ano, apresenta sessões dos seus filmes em sala, prepara com André Príncipe um livro e com Joaquim Sapinho uma instalação, Liquid Skin, no MAAT. Apichatpong Weerasethakul está em Lisboa.
São estes os trabalhos de Apichatpong Weerasethakul, cineasta tailandês, Palma de Ouro em Cannes com O Tio Boonmee que se Recorda das Suas Vidas Anteriores, em Lisboa: monta Fever Room, a sua estreia em palco (Lisboa, depois de Graz, Bruxelas e Paris, vai ver este "híbrido", como ele próprio diz, de performance, cinema e artes visuais, que é um tour de force da programação do Temps d'Images); apresenta sessões dos seus filmes em sala, uma retrospectiva no Ideal; prepara com André Príncipe um livro; monta com Joaquim Sapinho a instalação Liquid Skin no MAAT. Apichatpong Weerasethakul está em Lisboa.
Dia 30, no Teatro São Luiz, no segundo e último dia de Fever Room – há três sessões diárias, 15h, 17h, 22h, a 29 e 30 –, Susana Sousa Dias e André Príncipe juntam-se a ele para uma conversa, às 18h30, a seguir a uma das apresentações. O cinema do tailandês parece vir a ameaçar saltar para o lado de cá, para tratar do espectador. Fever Room dá esse salto: é em plena sala de teatro que, nós, espectadores, nos descobrimos cinema. É um dos espectáculos do ano (entrevista com Weerasethakul no Ípsilon de sexta-feira).
Porquê Susana Sousa Dias e André Príncipe a falar com ele? Porque os percursos artísticos ensaiados no(s) trabalho(s) de cada um, argumenta David Cabecinha, director artístico do Temps d’Images, os aproxima dos caminhos de Apichatpong. “Susana Sousa Dias estudou cinema e fez mestrado e doutoramento em Belas Artes, apresentou vídeo-enstalações no próprio Temps d’Images, é investigadora de cinema” – é a realizadora de Natureza Morta (2005) e 48 (2010). “André Príncipe, sendo um fotógrafo, já fez uma série de projectos em cinema” – entre os quais, Campo de Flamingos sem Flamingos (2013). Acrescentará mais tarde o próprio Príncipe com bonomia: “Acho que me convidaram também porque souberam que eu estava a trabalhar com ele [Apichatpong]. Arte e cinema? Sei lá o que isso é, mas tudo bem, algo irá sair [na conversa com Apichatpong no Ideal]”.
Um dos trabalhos do tailandês em Lisboa será então dar corpo a uma comunicação com o português que até aqui tem sido alimentada a Skype. Weerasethakul e Príncipe estão a concretizar um livro. “Tem a ver com uma série de livros, como o Casa de Lava, do Pedro Costa [edição da Pierre von Kleist de Príncipe], é a mesma lógica: livros pensados por um realizador mas que não se referem exclusivamente à imagética dos filmes. São livros de cineastas que têm uma relação com o real próxima da do fotógrafo, cineastas que filmam como se fossem fotógrafos, com uma equipa de poucas pessoas, próximos do real, uma câmara” – menciona também o chinês Wang Bing, mas a comunicação entre ambos está ainda numa fase muito inicial.
“O Apichatpoing tem uns cadernos com livros de notas enquanto jovem realizador. Ao reler esses cadernos ele encontrou uma pessoa trabalhadora, ingénua, obcecada... o livro será um confronto com essa pessoa que ele já não é.” André tem carta branca para se aproximar de Apichatpong durante o processo de montagem de Fever Room, peça de exigente aparato tecnológico. Esse será o alvo central mas haverá espaço para um diálogo filmado entre os dois. “Será um grande desconhecido... Esta peça tem a ver com questões fundamentais, o início do contar histórias, o que é fazer imagens... Na pior das hipóteses, pelo menos ficará o registo de um making of clássico”.
A partir de quinta-feira, dia 27, e até 2 de Novembro, decorre a semana Apichatpong no cinema Ideal. O cineasta programou sete sessões, às 19h45: uma selecção de algumas das suas curtas (dia 27, um conjunto apresentado pelo próprio) e longas-metragens (dia 28 irá apresentar a sua Palma de Ouro, O Tio Boonmee que se lembra das suas vidas passadas, seguindo-se Cemitério do Esplendor, a 29, Mekong Hotel + A Letter do Uncle Boonmee, a 30); e três dos seus filmes favoritos, escolha feita a partir de uma lista das estreias do catálogo da Midas: Like someone in love, de Abbas Kiarostami (31), Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán (1 de Novembro), Post Tenebras Lux, de Carlos Reygadas (2).
Eventualmente Apichatpong sairá de Lisboa. Mas por pouco tempo. Regressará para acompanhar a montagem de Liquid Skin, a instalação concebida com Joquim Sapinho para o Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia - especificamente, para a Sala das Caldeiras do Museu da Electricidade - e para uma conversa pública entre os dois, a 9 de Novembro, às 11h, com o curador Alexandre Melo.
A “conversa”, na verdade, dura há mais de um ano, conta Sapinho. Entre viagens do português à Tailândia, à casa de Apichatpong em Chiang Mai, e à descoberta em Lisboa de Deste lado da Ressurreição, filme de Joaquim, por parte de Weerasethakul, que terá ficado “perturbado”, foi-se cimentando uma “aproximação” de “universo de artistas”: “o território dos mortos e dos vivos, ele anda por aí, eu também”, sintetiza Joaquim. East meets West, os monges franciscanos em Joaquim, o karma e a reencarnação em Apichatpong. “O MAAT quis fazer uma coisa nova na Sala das Caldeiras, por causa das memórias daquele sítio. Há a coincidência de sermos cineastas interessados na arte contemporânea. A concretização do projecto foi feita pelo Alexandre Melo”. Joaquim contribuirá com imagens de um filme que ele revela andar a filmar desde 1997, desde Corte de Cabelo (a sua estreia na longa-metragem), e que tem acompanhado todos os seus filmes: um filme sobre a sua família, “sobre a intimidade”.
Diários Suspensos foi decorrendo sem o realizador o fechar na sala se montagem, embora a passagem do tempo se encarregasse de deixar marcas (“todos os raccords temporais têm dez anos”), até chegar a um ponto culminante que foi a morte do pai, que Sapinho filmou, por alturas de Deste Lado da Ressurreição. Apichatpong também filmou a morte do pai. A partir desta coincidência, o projecto tomou forma, embora, sorri Sapinho, a preocupação e obsessão do tailandês com a estrutura o(s) tenha impedido de se replicarem. Pelo que o português conta, o espectador que percorra Liquid Skin vai começar por ser estimulado pela apropriação que Sapinho fez das fornalhas do Museu da Electricidade, a fábrica de onde um dia veio a energia: hospital, luz fluorescente, o pai, imagens projectadas nas máquinas mas como se saíssem delas, como se fossem a sua pele, a sua sensualidade (liquid skin, chama-se). “Como ali a luz saiu das máquinas, eu vou devolver as minhas imagens à luz”. Ainda estamos no mundo dos vivos. Com as imagens de Apichatpong passaremos ao mundo dos mortos: ecrãs, imagens a preto e branco. “Como se estivéssemos do lado de lá.”
E depois, uma “bola de fogo” projectada no chão que envolverá o espectador, a fazer dele, como em Fever Room, a matéria de que o filme é feito. Está em construção um livro de 260 páginas em que se articulam um making of da exposição, com portfólio fotográfico comentado sobre Liquid Skin como site-specific e ensaio de Alexandre Melo; dois “Livros de Artista”, um de Apichatpong outro de Sapinho, a partir de fotografias originais, que funcionarão como um díptico, tal como as peças na exposição; um ensaio filosófico de Marie-José Mondzain sobre a exposição e a obra dos dois artistas.