O orçamento pastilha elástica
O Orçamento para 2017 é uma chiclete e a doçura não tem nada que ver com isso
Quando se mastiga, perde depressa o açúcar, mas fica mais elástico e capaz de esticar até aos limites dos partidos ou se ajustar a qualquer cavidade – até à do défice público. A Lei que o Governo negociou com os parceiros da maioria parlamentar ajusta-se à liturgia da esquerda no fim da sobretaxa ou nos aumentos das pensões, mas a direita não tem razões de queixa na troca de 1% do imposto de selo sobre os imóveis milionários pelos 0.3% do “imposto Mortágua”. O Orçamento que o Bloco defende com timidez e o PSD ataca com veemência nega aumentos a milhares de pensionistas de baixos rendimentos mas, lá para o final do ano, concederá aos assalariados mais ricos um generoso alívio fiscal via extinção da sobretaxa - o que sempre serve para mostrar o seu ecumenismo e para afundar a perigosa ideia de que em São Bento está um governo contra os ricos. A proposta devolve rendimentos aos portugueses, mas sobrecarrega-os com taxas e multas. Vale tudo para mascarar a austeridade e ficar bem Bruxelas. Ainda há por aí alguém que fale num “virar de página”?
Nunca no Portugal recente houve um orçamento tão pantomineiro como o de 2017 e nesta designação não se expressa apenas censura. Há nas suas alíneas tantas contradições, tanta oposição entre boas e más medidas, entre propostas inteligentes, sensatas e de esquerda e outras patetas, demagógicas e também de esquerda que, no final do dia, é caso para se dizer que o orçamento não é bom nem mau, antes pelo contrário. O documento é uma obra que combina extorsão (a receita cresce 4.1% e sobe para 44.1% do PIB), com sensibilidade social, com propostas amigas das empresas (redução de IRC no interior ou benefícios fiscais para aumentos de capital) ao mesmo tempo que devolve rendimentos, esquece camadas sociais especialmente frágeis e penaliza investimentos em áreas sensíveis como o turismo residencial. Se o Governo se esforça por manter promessas eleitorais ou acordos negociados com os parceiros, fá-lo através de fórmula política inovadora: a do conta-gotas. Uma pinga em Janeiro com a taxa de inflação, outra lá para o Verão até aos dez euros, outra lá para o Inverno com o desmantelamento final da sobretaxa do IRS.
Pode parecer fácil. Para o PSD ou para o CDS parece até pior – uma mentira ou um “embuste” e por aí fora. Mas não é. Vários analistas olham para o orçamento como mais uma prova acabada do génio político de António Costa. E é impossível não estar de acordo. Não tanto pelo carácter desalmado, chiclete, de um orçamento que é tudo e coisa nenhuma ao mesmo tempo. Mas pelo facto de, finalmente, ter amarrado o Bloco e o PCP ao compromisso europeu. Por os ter obrigado a perceber que não se fazem omeletes sem ovos. Toda a ginástica conceptual do orçamento se explica em função dessa prioridade do Governo: toma lá dez euros para as pensões e deixa-me em paz a aumentar o excedente primário em 0.6% do PIB; entretenham-se lá com o aumento da tarifa social da água que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças têm de ir a correr a Bruxelas dizer que o défice vai ficar em 1.6%. Costa tornou-se um sedutor que depois manipula as conquistas. Ele é o rei e senhor da coligação. O homem com poder de contar os ovos para determinar o tamanho, o sabor e o grau de fritura da omelete.
Domar as feras (onde está a Frenprof e a CGTP?) e chamá-las para o espaço do consenso democrático, liberal e europeu que é a matriz do PS é para António Costa uma tarefa cada vez mais fácil. Porque ainda anda por aí um bicho papão que torna palatável a obsessão do défice e legítima a “submissão” (na gíria do PCP) a Bruxelas: o passado recente. Ou, melhor, Passos Coelho. “O OE prossegue o caminho de reposição de direitos e rendimentos iniciado há um ano com a derrota do Governo PSD/CDS e da sua política de exploração e empobrecimento”, justificava o deputado Paulo Sá, do PCP; “A direita agrediu o país durante quatro anos com um mantra sobre a suposta inevitabilidade de empobrecermos” e este orçamento riscado pelas “forças da maioria política que viabiliza o Governo” começaram a “transformar a esperança em futuro”, nota José Manuel Pureza, do Bloco. Não se vê como pode um país e uma economia sobrecarregada de impostos encarar o futuro. Não se entende como se baixam impostos a quem tem casas que valem mais de um milhão de euros e não se aumentam algumas pensões mínimas. Não se compreende como se abdica de 350 milhões de euros de IVA na restauração e não se consegue encontrar cabimento orçamental para recrutar auxiliares para as escolas. Mas, pronto, antes isso que o regresso da direita.
O problema maior do orçamento não é por isso o que ele é. É mais o que ele não é. É uma lei ditada pelo instinto de sobrevivência política, não é um plano com ideias para o futuro. É uma construção casuística, incoerente e frágil, não é um plano de ataque aos problemas essenciais do país. É um remendo nas dificuldades de algumas camadas frágeis da sociedade, mas não é capaz de atrair investimento, de responder ao drama de milhares de desempregados de longa duração ou dos jovens. Como nos tempos de Sócrates ou de Passos, António Costa tergiversa em relação ao problema essencial: o de puxar por uma economia e uma sociedade incapaz de pagar tanta despesa pública. Enquanto houver um contribuinte para colectar impostos ou um utente para pagar taxas (e, já agora, o BCE a segurar a dívida pública), jamais haverá orçamentos exigentes e voltados para o futuro. Enquanto houver um governo minoritário que sobrevive com o apoio de partidos que não subscrevem o essencial do seu programa, não haverá lugar para outra política que não a da pastilha elástica. Com orçamentos destes, só dá para navegar à bolina. Estamos a iludir-nos com a ideia de que empobrecer lenta mas inexoravelmente é bom.
O mal maior deste orçamento está por isso no contexto e na ilusão de que basta um pouco de ginástica fiscal para o mudar. Por isso ele estica para abraçar a liturgia do Bloco e do PCP, para sintonizar a esquerda utópica que acredita na redistribuição mesmo quando nada há para redistribuir e a exigência dos mercados e de Bruxelas. Não é um orçamento nem mais nem menos rigoroso do que os anteriores – é apenas mais inventivo e mirabolante. É, essencialmente, um orçamento que olha para o Estado como uma entidade esmoler e para o país como um alvo ideal para a caça de multas e taxas. Daqui a um ano, havemos de olhar para trás, reparar na nota de vinte, ou menos, que nos devolveram e lamentar mais um ano perdido. Podemos conseguir aplacar a ira de Bruxelas (e esse compromisso é de elogiar), mas haveremos de reparar que estivemos a assobiar para o lado enquanto alimentávamos um monstro que no final de 2017 será mais caro e muito mais difícil de vergar. Ou ainda acreditam que o Pai Natal nos salva do défice e da dívida?