Não sabemos que sabemos quem ele é: Rocky
Um pequeno filme subiu ao ringue de Veneza sem alardes mas com nobreza. Fora de concurso, The Bleeder, de Philippe Falardeau, propôs-se falar de Chuck Wepner. Quem é? É Rocky Balboa.
Não foi dia de milagres na competição do Festival de Veneza, mas houve um pequeno filme que, se é exagerado dizer que foi milagroso, subiu ao ringue sem alardes mas com nobreza. Fora de concurso, The Bleeder, de Philippe Falardeau, propôs-se falar de Chuck Wepner. Quem é? Não sabemos que sabemos quem ele é: é o boxeur que inspirou Sylvester Stallone para a mais bem sucedida, mais icónica, personagem de boxeur da história do cinema, Rocky Balboa.
A primeira coisa bonita do filme é que se é uma fita de boxe, então é porque conta a história de um combate interno, íntimo, muito no interior das imagens do filme mas nunca figurado, aquele que teve de travar Wepner com a sua fantasia, ou seja, com ele próprio: a de ser ele o verdadeiro Rocky (será que já findou esse combate?).
Stallone, na realidade, foi buscar a generosidade e a inocência de um boxeur que sangrava abundantemente com os golpes que recebia (mas fez cair Muhammad Ali...), algumas das frases de Rocky Balboa correspondem a sínteses de vida de Chuck, mas a personagem excedeu Chuck, que nunca a controlou, que nunca a possuiu, embora se tenha iludido, e perdido nas drogas, com isso – nem sequer foi pago com direitos de autor. Todo o filme, então, levanta uma iconografia e um tempo que escaparam a Chuck. Mas como ele argumentava, só pelo facto de ter estado lá (e “lá” era o ringue) tinha valido a pena.
Liev Schreiber, o intérprete (e produtor do filme), assume essa coisa de The Bleeder ser filme sobre um boxeur que não é um filme sobre boxe porque é um filme sobre o “narcisismo” de uma personagem. Tendo estado na origem do projecto, uma vez que o argumento lhe foi entregue por quem sabia que era fã do desporto, Liev escolheu o canadiano Philippe Falardeau, o realizador de Monsieur Lazhar (2011), pela “delicadeza” com que toca nas personagens. Não é nada que passe despercebido em The Bleeder – outra das suas coisas bonitas –, e é uma forma de ser fiel à “inocência” (palavra de Falardeau) de Chuck.
Todo o filme, aliás, encontra um lugar e um tom justos, à altura da personagem. De modo que soa deslocada a questão de saber se, face a outros trabalhos do realizador, este faz figura de “encomenda” ou não. E não passa despercebido também que Naomi Watts, outras das intérpretes, tenha um papel secundário, embora a personagem que interpreta seja principal na vida de Chuck (é hoje a mulher do boxeur), e a actriz seja a companheira de vida de Liev Schreiber. Precisamente por isso, admitiu Naomi, para impedir que The Bleeder ficasse refém dessa conjugalidade, passa pelo filme com uma liberdade e uma leveza que dispensam sublinhados. E, segundo Liev, “chapeau!” para Sylvester Stallone, foi generoso para com o projecto.
Encontro fatal na auto-estrada
Não podia haver maior diferença, por isso, com Nocturnal Animals, de Tom Ford, o regresso do realizador ao concurso de Veneza, onde, em 2009, mostrou a sua estreia cinematográfica, A Single Man, que sairia do festival com um prémio de interpretação a Colin Firth. Nocturnal Animals, segunda longa, sete anos depois, chega com um cast viçoso, Amy Adams, Jake Gyllenhaal, Michael Shanon, Aaron Taylor-Johnson…, mas o filme é tudo menos feliz, equilibrado (ou justo, que era a principal qualidade de A Single Man), na gestão do que desencadeia. Adaptando um romance de Austin Wright, tem um manuscrito no seu centro, que a personagem de Amy Adams, alguém que em Los Angeles procurou a segurança e a estabilidade, recebe do ex-marido, que ela menosprezou enquanto aspirante a escritor.
O que o ex-marido envia a Amy é um violento thriller no Texas – história de uma família e do seu encontro fatal na auto-estrada. A personagem vai lendo, vai visualizando – logo, Nocturnal Animals também é constituído de thriller –, e a violência vai desestabilizar a sua ordem, vai fazê-la questionar decisões que tomou, vai fazê-la pensar no ex-marido e no que lhe fizera (logo, no que fez à sua própria vida). O marido tem, para a personagem de Amy, o mesmo rosto de uma das personagens que é violentada no thriller: Jake Gyllenhaal. Digamos que Nocturnal Animals nunca se desembaraça desse vai e vem, que é sempre denunciado à superfície, artificioso e artificial (pouco elegante, até), mas poucas vezes as cenas respondem com uma verdade e uma intensidade internas.
Não houve milagres no concurso. El Cristo Ciego, do chileno Christopher Murray, que segue a via sacra de quem procura revelação divina e não a avista, e é tratado como louco da aldeia, é a materialização dessa frustração. Primeira obra, escrita e realizada por Murray, foi concretizada com os habitantes de uma região deserta, pobre e muito religiosa do Chile, ao fim de um processo de pesquisa de dois anos. Há no filme uma evidente generosidade em fixar os rostos de uma humanidade violentada – e Murray pontua a caminhada da personagem com parábolas que são construções a partir de histórias reais que foram recolhidas. Isso quase conquista. Mas El Cristo Ciego anuncia a possibilidade de milagres – cinematográficos, é deles que falamos –, denuncia-se a prepará-los, a construí-los, mas nunca os faz realmente acontecer. Ficam os rastos demasiado denunciados na pampa chilena.