“Todos os dias me arrependo da geringonça”
A coordenadora do Bloco de Esquerda diz que tem medo de, no actual modelo de governação, não ir mais longe. Mas luta sempre contra essas limitações.
Aprendeu piano, mas toca mal. Gosta de música clássica, as big bands põem-na bem-disposta. Cresceu a ouvir música popular brasileira e de intervenção. Tem pouco tempo para hobbies, mas gosta de nadar e de ler policiais. É fã dos Monty Python, uma “devoradora” de comédia: “A capacidade de nos rirmos de nós próprios, de desmontarmos todas as situações é inerente à nossa saúde mental”. Em criança, viajava com os pais e o irmão, acampavam em Portugal, iam num Renault 5 pela Europa. Também gostava de passar o dia na praia em Miramar com a melhor amiga. Aos 42 anos, ainda quer fazer um périplo pelo Norte da Europa.
Nasceu no Porto, mas não viveu sempre no Porto?
Os meus pais eram professores, saltitavam. Quando nasci, o meu pai estava na tropa e a minha mãe a dar aulas no Porto. Vivi algum tempo em Santa Maria da Feira com os meus avós e a minha mãe, era muito bebé. Depois vivi em Vila Nova de Gaia, Santo Tirso, Santo André, perto de Vagos, Aveiro, São Tomé, São Vicente e Santiago, em Cabo Verde, e voltei a Aveiro, onde fiz a escola. A seguir, fui para Coimbra estudar. Estive dois anos em Direito, depois fundei uma companhia de teatro no Porto [Visões Úteis].
Qual é a sua primeira memória política?
Lembro-me de estarmos a apanhar o avião para São Tomé, em Lisboa, e de haver muitas manifestações contra Sá Carneiro. ‘A luta continua, Sá Carneiro para a rua’. Estava em São Tomé quando Sá Carneiro morreu. Não me lembro da comoção que as pessoas se lembram, mas de a minha mãe dizer para não repetir aquela frase, porque o senhor tinha morrido. E lembro-me de, quando tinha três anos, viverem em nossa casa um galego e uma galega, fugidos do franquismo.
Como chegou à política?
Nunca tive actividade partidária até entrar no BE, mas tive sempre actividade política. De organização estudantil, no secundário, no superior. Já a trabalhar, actividade política relacionada com as questões da precariedade, da política cultural. Fui-me sempre organizando em associações, em movimentos. Na companhia de teatro, uma parte da nossa actividade tinha a ver com uma reflexão política sobre o nosso tempo. Fizemos trabalhos sobre a cidade, trabalho com populações que estão normalmente distantes da linguagem artística. Trabalhámos em aldeias do interior, em escolas em que só havia seis crianças, em estabelecimentos prisionais, com bairros sociais do Porto.
Depois chega ao BE.
Posso não ter tido vida partidária durante muito tempo, mas votava, o meu campo ideológico é este. Socialista, feminista, ecologista.
Começou por ser eleita como independente.
Comecei a militar no Bloco já era deputada. O que aconteceu foi que há um espaço ideológico que é o meu e houve uma série de lutas em que o partido presente era o BE. Nas questões da interrupção voluntária da gravidez, nas grandes manifestações contra a guerra, nas questões dos trabalhadores precários, de começar a usar a palavra precários. Depois houve uma proximidade clara com a organização do Bloco no Porto, no momento em que Teixeira Lopes foi eleito como deputado. Foi muito próximo de quem estava nos movimentos do distrito, da cidade. Na altura, com Rui Rio muito agressivo contra a cultura. Dirigi colectivos com pessoas de vários partidos e participei, a convite de vários partidos, em sessões públicas, na escrita de programas. Fiz isso com todos os partidos que pediram, mas havia um com que tinha uma afinidade clara e com quem trabalhei mais. Em 2009, fui convidada para ajudar a pensar uma candidatura autárquica para o Porto, que se posicionasse no oposto de Rui Rio, fiz isso com Teixeira Lopes. Depois fui convidada para escrever parte do programa de cultura do Bloco às legislativas e para fazer alguns debates. Só depois de ter feito esse percurso é que o BE me convidou para ser candidata. Fui eleita e, a partir de determinada altura, senti a necessidade de estar nos debates internos do partido. Achei que tinha sentido aderir ao Bloco. É preciso dizer que, há muitos anos, tentei aderir ao Bloco, perderam a minha ficha de inscrição, se não estou em erro. Ignoraram-me estoicamente. (risos)
Como era a Catarina Martins adolescente? Contestatária?
Cresci num meio em que todas as pessoas se organizavam. Os meus pais fizeram parte de partidos políticos, deixaram de fazer, de sindicatos, de associações culturais, de cooperativas de habitação…
Fizeram parte do BE.
Quando entrei, já eles tinham saído (risos). Cresci num ambiente familiar, não só os meus pais, mas a minha família, os amigos com quem me dava, em que o normal era as pessoas organizarem-se, em associações, cooperativas. Para mim, sempre foi natural organizar-me com as pessoas com quem estava. E sempre tive uma educação, um ambiente, que me permitiu crescer com uma sensibilidade grande para a injustiça.
Os seus pais eram professores de quê?
Matemática.
Não seguiu o mesmo caminho…
Não fazia a mínima ideia do que havia de seguir. Quis ser jornalista, repórter de guerra, professora. A determinada altura, quis fazer teatro. A primeira vez que fiz alguma coisa de teatro tinha 13 anos. Um grupo de Aveiro foi à escola anunciar que havia um workshop para fazermos teatro de fantoches. Até hoje acho que há uma divisão cedo de mais entre letras e ciências. Não sabia minimamente o que havia de fazer no fim do 9.º ano. Fiz o 9.º ano em quimicotecnia e acabei por ir para letras por reacção às turmas de Ciências. Eram turmas com uma ideia de um determinado elitismo, de pessoas que queriam ir para Medicina, com uma competição em que não me enquadrava. Sentia-me mais confortável com as pessoas que gostavam de Letras, mas era melhor aluna a ciências. Não fui para o mais fácil, mas onde me sentia mais enquadrada. Depois fui estudar Direito um pouco por falta de opções, não sabia muito bem o que havia de ser e tinha uma ideia romântica do Direito. O meu avô foi advogado. No tempo do fascismo era uma coisa especial.
Chegou a vê-la entrar para Direito?
Não. Morreu quando eu tinha 13 anos.
O seu avô também se situava à esquerda?
Era tudo à esquerda. O irmão do meu avô foi morto pela PIDE, era comunista na clandestinidade.
Quando foi para Direito, já gostava de teatro?
Sim, mas na altura não havia muitas opções. Hoje há. Não digo que esteja bem, tem muitos problemas, mas o ensino artístico avançou muito. As pessoas podem decidir estudar teatro, cinema e terem uma oferta escolar sólida…
Não têm é saídas…
Sim, mas na altura também não havia. Quando decidi estudar Direito, não era muito fácil estudar teatro. Havia o Conservatório em Lisboa. E eu tinha uma ideia, eventualmente adolescente, de que o Conservatório era muito conservador, também é injusto para o Conservatório. O teatro universitário era uma grande escola. Fui para Coimbra estudar Direito com essa ideia romântica de Direito e também para ir para o teatro universitário. Fui para o CITAC. Queria era teatro. Portanto, comecei a trabalhar muito cedo, fui para o Porto. Licenciei-me no Porto, em Línguas e Literaturas, na Universidade Aberta. Acabei o curso como conseguia, a trabalhar ao mesmo tempo. E fiz o mestrado em Linguística na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Deixou o teatro em 2009, quando foi eleita pela primeira vez deputada, mas já disse que é actriz ainda que se sente. Faz-lhe falta o teatro?
A determinada altura, fui-me dedicando cada vez mais à escrita, à direcção de projectos artísticos e à encenação do que a ser actriz. E sinto falta, faz muito parte de mim, acho que tenderei a voltar a isso.
Já disse que teria desgosto se as suas filhas vierem a ser de direita. Não é um pensamento pouco democrático?
As minhas filhas, com 10 e 14 anos, serão o que quiserem. Os pais têm de ensinar os filhos para a liberdade com tudo o que isso significa. Capacidade de ter autonomia, responsabilidade. É certo que a maneira como olho para o mundo faz com que ache que as ideias de justiça, solidariedade, fraternidade, casam com ser de esquerda, com não nos conformarmos com a desigualdade, com a injustiça. A direita parte de uma certa conformação, como se fosse um estado natural a desigualdade. Gostava que elas não se resignassem nunca à desigualdade. Mas serão o que quiserem ser.
Que papel no palco nunca vai esquecer?
Não pelo papel, mas por aquilo que significou o processo. Fizemos um espectáculo em 2001 chamado Orla do Bosque. Tínhamos feito uma série de trabalho, com intelectuais da Europa, em que discutimos o que era a Europa, se era possível uma Europa comum ou não, qual era a noção de fronteira. Havia um certo optimismo numa construção europeia que estava a ser feita de uma forma não democrática, e esse optimismo da política era contrariado pelo discurso intelectual, que era muito minoritário na altura, mas que para nós era importante, no qual nos revíamos. Um discurso também sobre a forma como a Europa se fechava numa fortaleza aos outros povos. Havia essa Europa fantástica que estava a ser prometida para alguns, deixando outros para trás. Era quase um sacrilégio ter um discurso negativo sobre o que estava a acontecer. Havia uma passagem do texto que tinha a ver com o optimismo desenfreado acerca de um modo de vida feito sobre os escombros das pessoas que se estão a sentir excluídas. A construção em cima da exclusão dos outros. E havia um presidente de um conselho de administração de uma qualquer multinacional de Wall Street que olhava a cidade do seu escritório, no último andar de um arranha-céus, e que nunca imaginará as ruínas em que o seu edifício se tornará. Da mesma forma que o imperador romano não imaginava as ruínas do Coliseu. Estava a ensaiar esta parte do texto quando foi o 11 de Setembro. Estava a acontecer aquilo e nós dizíamos: nada será igual. Isto é uma outra guerra. Em boa parte, tínhamos infelizmente razão.
Nas questões internacionais, o que a preocupa mais: as eleições norte-americanas, a Europa, a crise dos refugiados, o que se passa na Turquia…
O problema é a política do ódio. Está a crescer. É o mais perigoso de tudo. A política do ódio acontece quando a NATO bombardeia, quando Donald Trump faz uma campanha a hostilizar uma parte do mundo, quando a União Europeia trata parte do seu povo como se estivesse sob suspeita permanente ou é incapaz de cumprir o mais básico do Direito Internacional, ao acolher quem foge da guerra. Povos que já acolheram europeus que fugiam da guerra. A política do ódio é o factor que une estes vários acontecimentos, é o mais preocupante neste momento na política internacional.
É tímida?
As pessoas consideram-me. Não me sinto muito confortável em situações de exposição e tendo a gostar de estar sossegada no meu canto.
Mas é coordenadora do Bloco…
Faz-se o que se tem a fazer. Quando Rui Rio estava a demolir o bairro São João de Deus, vivia-se lá em condições terríveis, havia uma parede a dizer: bem-vindo ao Tarrafal. Entrar no bairro era muito complicado. Trabalhei lá com famílias e crianças. Não houve um dia em que lá entrasse e não me parasse a digestão. Não deixei nenhum dia de lá entrar. Não temos de fazer as coisas que nos são confortáveis, mas as que têm sentido.
Conseguiu levar o BE a um patamar onde nunca tinha estado. O trabalho do partido é agora mais intenso?
Não sei se é mais intenso. Mas é diferente negociar orçamentos do Estado ou fazer propostas para o orçamento. Há uma dificuldade acrescida. Diria que o BE consegue ter o pior de dois mundos, caricaturando: nem estamos confortavelmente na oposição, nem temos a relação de forças para fazer o que gostaríamos. Todos os dias são uma luta para ver o que é que é possível conseguir com a relação de forças que temos. Agora, sendo isso altamente complicado, há dias em que é mesmo ingrato, estou segura de que é muito melhor do que estar confortavelmente na oposição sem ser capaz de alterar.
Tendo em conta, por exemplo, as polémicas viagens pagas pela Galp, não houve nenhum momento – e o BE foi até onde conseguiu ir nas negociações do orçamento e em propostas que levou ao Parlamento –, em que se arrependesse da criação da geringonça?
Todos os dias me arrependo. Faz parte.
O que quer dizer com isso?
Todos os dias somos confrontados com as limitações. Agora, naturalmente, enquanto os objectivos que estiverem a ser traçados forem cumpridos, cá estamos. Com as dificuldades de todos os dias.
Quer explicar melhor? Quando a pergunta é, se, tendo em conta as limitações nas negociações orçamentais, escândalos como os da Galp, alguma vez se arrependeu da gerigonça e responde todos os dias…
Todos os dias sou confrontada com os limites da geringonça. Isso custa. O que não é mau, é o que temos de fazer. Há dois objectivos essenciais no acordo que o BE fez, mas fizemo-lo e lutámos por ele: travar o empobrecimento do país e afastar a direita do governo.
Tem medo de não conseguir ir mais além?
Todos os dias tenho medo de não conseguir. Todos os dias tenho de lutar para que seja possível. Não é mau.
Todos os dias se arrepende, tem medo e luta contra as limitações?
Sim.
Depois do Verão vamos ter dois temas: a decisão sobre se Portugal poderá ou não sofrer cortes nos fundos europeus e o Orçamento do Estado de 2017. O BE está preocupado?
Estamos muito preocupados com a pressão europeia.
Acredita que vai haver cortes?
A nossa função não é adivinhar. É termos acções para que aconteça determinada coisa. A União Europeia não é uma lei da gravidade, as coisas não acontecem porque tem de ser assim. Temos de fazer com que aconteça. Há uns meses, dir-se-ia que processo das sanções nunca seria aberto. Nunca tinha sido. O que está em causa não é se achamos ou não que nos vão tirar os fundos. É se sabemos se há forças na União Europeia que querem sancionar. O que querem dizer é que só pode haver uma política única na União Europeia, a da austeridade. Querem fazer a Portugal e Espanha para, no futuro, chegarem a economias como França e Itália, e terem a certeza de que têm os mecanismos de pressão para que a austeridade seja política única. Essas forças existem, temos fazer a força contrária. Foi muito importante a reacção que existiu das forças políticas em Portugal e não só. Embora a direita, a partir de certa altura, fez uma leitura política errada. Passou a dizer-se ‘se as sanções vierem, a culpa é do actual Governo que não merece confiança e tal’. Ainda assim, houve uma coesão e o Governo, desse ponto de vista, esteve bem. É preciso ser bastante claro em não aceitar que haja cortes nos fundos estruturais. Se ficarmos a achar ‘agora já está, agora não vai haver cortes nos fundos estruturais’, pois eles virão. É uma irresponsabilidade. É preciso ser intransigentemente contra o corte em fundos estruturais. O BE, enquanto partido com o peso que tem, e também no actual equilíbrio de forças, fará clara a sua voz. Sabemos que isto é uma chantagem que tende a arrastar-se, para condicionar políticas e contornar orçamentos do Estado. Precisamos é de preparar o orçamento. O Governo tem de preparar o orçamento e o BE está disponível para negociar, para que não seja um orçamento que recua, porque há chantagem, mas queira recuperação da economia em Portugal, de rendimentos, que promova esse caminho diverso da austeridade.
Teme um combate difícil por causa do próximo orçamento?
Toda a chantagem está a ser feita para condicionar o orçamento. A política da União Europeia mantém-se, quer manter processos de privatizações, baixar custos de trabalho. A pressão é toda para voltarmos ao contrário. O combate europeu que aí vem é muito importante. Existe, numa determinada elite portuguesa, a ideia de que Portugal não é um país viável. Que é um país pequeno demais, face à globalização, que fizemos tudo mal até agora, que já não há nada a fazer, não há indústria, não há agricultura, não há nada, que somos uns dependentes do exterior, e tudo o que podemos fazer é tentar negociar umas condições menos más sobre a nossa dependência. Boa parte da forma como estamos na Europa e do confronto europeu tem a ver com esta ideia. Uma ideia que não corresponde à realidade. O país tem enormes problemas e foram feitas escolhas desastrosas, que levaram à desindustrialização em determinados sectores, abandono de capacidade produtiva. Mas é um país em que, ainda assim, a qualificação cresceu muito. Tem de crescer mais, tem de se fazer mais. A ideia de dependência do nosso Estado não tem a ver com a capacidade produtiva do país, nem com os salários das pessoas, nem o peso do Estado Social, mas só com o sistema financeiro. O facto de a integração europeia ter sido toda feita, nos últimos anos, em torno de retirar aos países capacidade de decisão sobre o seu próprio sistema financeiro é o maior risco para o nosso país. Aí, sim, podemos perder capacidade. Vai ser determinante, nos próximos tempos, a nossa capacidade de reagir à completa retirada da capacidade do Estado intervir no sistema financeiro. O nosso país não é inviável, é um país onde é preciso fazer muitas coisas, mas temos como fazer. O maior risco é perdermos todo o controlo sobre o sistema financeiro, porque aí a democracia passa a ser uma fantochada, deixamos de ter capacidade de decidir sobre o que quer que seja.
Quais as expectativas em relação ao PS?
Que faça o que fez até agora. Temos divergências. Achamos que o Governo, nesta altura, devia estar a preparar-se para reestruturar a dívida portuguesa. É essencial. Não há ninguém que não assuma que é preciso reestruturar a dívida. É um processo que devia ser aberto e Portugal não devia ficar sempre à espera. Ficamos à espera de quê? Que a Goldman Sachs mande um bocadinho mais? Não vamos nunca reestruturar a dívida? Neste momento, a dívida pública sangra os recursos do país. O sistema financeiro está a ficar com os recursos do país. Isso é intolerável. Precisamos de recursos para ter emprego, investimento, Estado Social. Precisamos dessa reestruturação da dívida. O Governo não concorda connosco. O Governo acha que deve continuar à espera da Europa. Achamos um erro. Mas, enquanto for possível negociar orçamentos de Estado, enquanto o PS mantiver a sua parte de continuarmos a recuperação de rendimentos do trabalho em Portugal, o BE também está aqui para dar esse apoio parlamentar que foi acordado. O BE estará sempre disponível para negociar medidas necessárias para recuperar rendimentos. Julgo que o PS está interessado no mesmo. Não acho que esteja interessado em fazer a política da troika. Tendo nós as diferenças que são conhecidas, óbvias, não sinto que o PS queira fazer uma coisa diferente daquela que está a fazer. Julgo que no PS pensarão todos os dias, como eu, todos os dias me arrependo (risos) e todos os dias luto para que isto seja possível, porque tem de ser.
Na Convenção do BE, agitou a palavra referendo, que deu muito que falar.
Ainda bem.
Quer explicar melhor?
Os portugueses nunca foram chamados a pronunciar-se sobre a construção da União Europeia, a chamada construção europeia. Tenho problemas com o termo construção europeia, parece que a única forma de os países na Europa se organizarem é através da União Europeia e do directório que existe hoje e que manda na Europa. A Europa é algo muito mais interessante do que a União Europeia. Há sempre possibilidades de os partidos se organizarem, se coordenarem, cooperarem. Uma forma diferente desta em que a Alemanha manda e os outros obedecem. Precisamos de a inventar. De uma outra construção europeia bem diferente desta, mais interessante do que a União Europeia que tem mostrado a sua falência a todo o nível. Não foi capaz de tratar o sistema financeiro. Transformou o problema financeiro num problema dos Estados, de dívida pública. Não é capaz de responder aos problemas da economia na zona euro, 50% dos jovens estão desempregados, aos problemas internacionais. Erguem-se muros quando os refugiados chegam à Europa. A União Europeia está em colapso. Não devemos achar que a construção europeia é a União Europeia, se não estamos a dizer que é impossível outra Europa. Mas até hoje, os portugueses nunca foram chamados a pronunciarem-se sobre nada. Zero. Noutros países houve referendos. Os portugueses não foram chamados a pronunciar-se. Foi sempre tudo imposto. Como se tivesse de ser assim. Neste momento o que pode ser referendado é o Tratado Orçamental, porque é um tratado intergovernamental, que durante o próximo ano terá de ser transformado em Tratado Europeu. Dizemos que, nesse momento, Portugal não deve aceitar esse passo. Se esse passo for dado pela Europa, deve perguntar às pessoas se o querem dar. Se querem que o tratado da austeridade seja europeu. Deve ser perguntado. Idealmente, o Tratado Orçamental devia ir para o caixote do lixo das más ideias, em vez de se tentar transformar em tratado europeu.
Como é a relação do BE com o Syriza agora? O Syriza foi assobiado na Convenção do Bloco.
Não acho muito bonito. Foi nosso convidado, não devia ser assobiado. A UGT também foi assobiada, também não acho de bom-tom. Não convidamos só pessoas com quem concordamos a 100%.
O Syriza foi um partido muito próximo do BE.
Sim. O que aconteceu foi que o Governo grego capitulou face à pressão europeia. Devemos ser claros sobre a nossa discordância com o que se está a passar na Grécia, e o plano de austeridade imposto. Mas não devemos ser arrogantes. Aprendemos muito com o que aconteceu na Grécia. Aprendemos que um Governo que quer proteger o seu povo tem de estar preparado para o confronto europeu, como o Syriza não se preparou. Acreditou nas regras europeias, que podia fazer um confronto dentro dessas regras. Depois percebeu que, na Europa, as regras só servem quando são desculpa para sancionar quem não quer austeridade. Mas, quando é para impor austeridade, não interessam as regras, a Europa faz de qualquer maneira. O que interessa é o directório alemão. Foi uma aprendizagem muito dura para toda a esquerda que achou que, confiando nas regras europeias, poderia ter ali algum espaço de disputa de alternativa. Hoje temos de saber que não podemos confiar nas regras europeias. Naturalmente, o BE e o Syriza hoje têm relações mais distantes, não subscrevemos as opções que estão a ser feitas, mas devemos continuar a conversar. Seria um erro não o fazermos. Seria mesmo arrogante. É por isso que o Syriza continua a ser convidado para a Convenção do BE, mesmo com as diferenças sobre o que se está a passar.