BDSM: "para tudo o que existe no mundo existe também um fetiche"

Florian Müller fotografou casais, clientes de trabalhadoras do sexo e pessoas que não se conheciam, mas que partilhavam o mesmo interesse pelo BDSM

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Florian Müller

Fetichismo por latex e PVC, autozoofilia (preferência pelo desempenho do papel de um animal) ou infantilismo (alguém que gosta de ser tratado como uma criança). "Para tudo o que existe no mundo existe também um fetiche", diz o fotógrafo alemão Florian Müller, o autor do projecto "Sessions". "Os fetiches estão altamente difundidos, mas nunca farão parte da sexualidade 'mainstream' porque são extremamente diversos." E porque as práticas de BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação e Submissão e Sadomasoquismo) não são publicamente assumidas. 

Foi através da internet que o fotógrafo contactou a maioria dos retratados no seu trabalho. Os fóruns sobre a temática abundam e agilizam o contacto entre as pessoas. "Graças à internet, estas pessoas sabem que existem outras com as mesmas necessidades sexuais", diz em entrevista ao P3, acrescentando que "isso aumenta a sua autoconfiança e a sua autoestima". "Conheci pessoas na casa dos sessenta anos que me diziam que antes da internet era muito difícil estabelecer contactos. A sexualidade é algo tão íntimo que raramente se discute em público e era difícil encontrar parceiros. Na Alemanha de leste, numa sociedade extremamente fechada — onde há poucas décadas ser homossexual dava direito a cadastro — não existia a liberdade de comprar brinquedos sexuais. As pessoas limitavam-se a improvisar. Conheci um homem que tinha fetiche com borracha e que, nessa altura, fazia experiências com pneus de automóveis. Nada funcionava, mas ele era muito dedicado."

O fetichismo existe em todos os lugares onde existem pessoas e por esse motivo pode ser visto como um comportamento mais normal do que à partida muitos poderiam julgar. "Aquilo que é estranho ou desconhecido provoca uma primeira reacção de medo", justifica. Florian Müller fotografou casais, clientes de trabalhadoras do sexo e pessoas que não se conheciam, mas que partilhavam o mesmo interesse (ver galeria)

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O mais íntimo abraço ©Florian Müller

Em cada dez pessoas que contactou, apenas um terço lhe respondeu. Dessa amostra, uma ínfima parte aceitou ser fotografada, o que tornou difícil e morosa a realização do projecto. Uma vez autorizado, Müller confessa que tudo decorria como se não lá estivesse. "Fiquei muito surpreendido por perceber que as pessoas esqueciam a minha presença enquanto fotografava. Estavam muito focadas no que estavam a fazer e isso facilitou o meu trabalho."

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Ele queria ser tratado como um porco antes da matança ©Florian Müller

Mas nem sempre o resultado agradou aos retratados. "Tinham uma ideia diferente de como as imagens iriam resultar. A estética que imaginam é muito diferente da que é observável, na realidade. Estas pessoas consomem determinados tipos de fotografia, geralmente mais pornográfica, e por isso a minha fotografia 'parece demasiado natural', diziam. É algo estranho. A maioria das pessoas que fotografei estavam tão focadas no seu 'role-play' que não se apercebiam que tudo o que estava a acontecer podia parecer estranho a pessoas que não estavam a participar. Para mim, a experiência não foi sensual porque eu não partilho dos mesmos interesses. Eu, por exemplo, não gosto do cheiro do látex. Eles não se importam de estar num quarto de hotel a cair de podre, desde que possam tocar e cheirar o látex."

Partilha & intimidade

Algo que Müller gostou de perceber foi que existe, seja qual for o tipo de relação dos intervenientes, um elevado grau de intimidade e consensualidade no que toca ao prazer e aos limites do outro. "Isto, porque às vezes é arriscado, pois podem estar a fazer algo que cause dano ao outro. Precisam, antes de tudo, de falar sobre o que querem e o que não querem. E isto é intimidade. Partilhar os desejos e as ideias com o outro. Isso existiu em todas as sessões e foi sempre muito importante. Tenho a certeza de que as pessoas ficariam mais satisfeitas com a sua sexualidade se tivessem a capacidade de comunicar o que realmente querem."

Entender os motivos que levam a alguém a entregar-se a estas práticas foi o que levou o fotógrafo a imergir-se neste mundo privado. "O que sentem? Qual é a origem? O homem que está envolto em plástico, em vácuo, por exemplo, disse-me que 'estar assim se assemelha ao mais íntimo abraço'. Quem não gostaria de sentir um abraço semelhante? Entender é tangível, mas quem não partilha do mesmo fetiche, muito dificilmente o compreenderá. As pessoas fazem experiências e algumas tornam-se especialmente viciantes." 

Dando o exemplo de uma experiência em sessão, Müller explica: "Este homem queria ser tratado como um porco antes da matança. Duas 'dominatrix' começaram a 'trabalhá-lo', ou seja, a aplicar-lhe choques eléctricos, a perfurar a sua cara e genitais com agulhas. Os sons que fazia no início eram uma imitação de um porco, mas começaram a tornar-se cada vez mais humanos. Foi de tal forma agonizante assistir àquilo que tive de sair. Era demasiado para mim. Dessa vez, e pela primeira vez, as 'dominatrix' gravaram em vídeo a sessão. Quando o homem viu o vídeo, ficou em choque. Decidiu nunca mais voltar. O motivo era simples: provavelmente, aquela foi a tarde mais feliz que já teve, mas da próxima vez iria querer mais. E depois mais. E onde iria parar? É viciante. As pessoas querem obter mais e mais adrenalina das suas experiências."

Müller acredita que o mais importante é reconhecer que todos somos diferentes e que todos tentamos, de formas diversas, encontrar algo elementar, algo de que necessitamos. "A comunicação social, regra geral, representa negativamente estes comportamentos, porque se limita a noticiar quando há mortes ou acidentes por comportamentos extremos. A verdade é que a maioria das coisas que acontecem dentro do quarto de um fetichista são completamente inofensivas." E íntimas. Recorde-se que o sucesso de "As Cinquenta Sombras de Grey" contribuiu para uma maior exposição detas práticas sexuais. 

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