BDSM: falta educar a sociedade para vencer o estigma
Profissionais apelam à revisão dos manuais que consideram o BDSM uma perturbação mental. Estes comportamentos podem ser “saudáveis e apropriados” — o estigma é que causa angústia
Antes de mostrar a Anastasia o seu Quarto Vermelho da Dor e, consequentemente, a sua inclinação por práticas BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação e Submissão e Sadomasoquismo), Christian Grey estende-lhe um acordo de confidencialidade para assinar. Não quer que ela revele nada a ninguém. E aqui pode estar um sintoma do estigma que os praticantes têm de enfrentar.
“A existir alguma angústia nos praticantes de BDSM, não é por causa destes comportamentos, mas da reacção social a que estão associados”, diz Alexandra Oliveira, professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP). "Nas investigações, é muito evidente que o facto de terem de esconder que têm determinado comportamento, o facto de saberem que existe uma marca negativa associada e haver uma estigmatização é que as faz sentir mal, não é terem o comportamento. E há estudos que dão conta que até podem ser apropriados e saudáveis.”
Aliás, as “discrepâncias” entre estas e as típicas relações normativas “não são assim tão evidentes”. Esta foi uma das conclusões que a psicóloga Ana Mafalda Ventura Mota retirou da tese de mestrado “Para Além Da Dor: Fantasias de Prazer, Poder e Entrega. Um Estudo Sobre BDSM” (em pdf), defendida no ano passado na FPCEUP, pela qual obteve 18 valores. Durante um ano, acompanhou a comunidade em Portugal, primeiro a partir dos dois grandes fóruns online (BDSM Portugal e Dominium), depois, guiada pelo seu “informante chave”, em festas e um jantar, e, por fim, com entrevistas presenciais e também em chats.
Há, de facto, uma “multiplicidade de relacionamentos” dentro do BDSM: os relacionamentos “baunilha” que procuram depois um parceiro BDSM para satisfazer necessidades, sem existir uma ligação psico-afectiva; os relacionamentos “instrumentais”, sobretudo no âmbito da dominação profissional, onde até existe uma certa “indiferença sexual”, já que muitos, nomeadamente as dominadoras, não procuram nesta prática prazer sexual, mas sim mental; e, “o mais interessante”, diz a investigadora, as relações amorosas que têm no BDSM “uma parte muito importante”, que “são um contínuo entre as relações ditas normais e estas práticas”. "A verdade é que as relações são estabelecidas com base na afectividade e empatia mútua”, diz. Daí que exista, por exemplo, uma transposição de elementos como a coleira, que funciona como um símbolo do compromisso, tal como a aliança.
Não é posição de missionário? Perversão
A trilogia de E.L.James, ao relacionar as práticas BDSM com aspectos traumáticos, pode potenciar a estigmatização, alerta a investigadora. “Por um lado, explora estes comportamentos sexuais, mas por outro perpetua a visão normativa do que é a sexualidade ou do que deve ser a sexualidade”, ao focar-se nesta “concepção determinista”, talvez para “ir ao encontro das expectativas das pessoas”. “Isto não ajuda. Falta educar a sociedade para o que é o BDSM. É voluntário, é consensual, as pessoas estão avisadas e há cuidado.” Basicamente, são “pessoas normais, que se querem divertir e explorar o seu potencial erótico”, de uma forma bem mais leve, divertida e natural do que parece no livro.
Há que ter em conta ainda que para esta percepção negativa contribui também a própria comunidade médica, já que o BDSM é considerado uma parafilia, considerada uma perturbação mental no DSM-IV, o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, e estando também incluído na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS). “Isto tem sido contestado por diversos profissionais de saúde por todo o mundo”, relata Alexandra Oliveira, nomeadamente a partir do movimento Revise F65 (a categoria das parafilias no manual da OMS). Nesse sentido, e “à revelia do que está nesses manuais”, há países que já deixaram de considerar estes comportamentos como doenças, como a Suécia, a Finlândia, a Noruega e a Dinamarca.
“Estes diagnósticos de perturbação mental contribuem para reforçar os esterótipos. Não há evidência científica que há uma perturbação mental associada a estes comportamentos. E depois estes diagnósticos remontam a uma altura em que tudo que não fosse heterossexual ou tudo que não fosse a posição de missionário era considerado uma preversão sexual. A raiz está aí.”