As Cinquentas Sombras: o BDSM é mais leve, divertido e natural

“As Cinquenta Sombras Mais Negras”, segundo livro triologia que amarrou (literalmente?) milhões, chega a Portugal. Falar assim de BDSM pode combater o estigma que circunda os praticantes?

A edição portuguesa é lançada sábado, 29 de Setembro
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A edição portuguesa é lançada sábado, 29 de Setembro
Podem existir salas privadas como o Quarto Vermelho da Dor, mas nem todos têm essa facilidade Lucas Jackson/Reuters
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Podem existir salas privadas como o Quarto Vermelho da Dor, mas nem todos têm essa facilidade Lucas Jackson/Reuters
O BDSM é um mundo, é uma questão de amor, na sua forma mais pura, diz o dominador Grande Mestre Lx elnornor/Flickr
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O BDSM é um mundo, é uma questão de amor, na sua forma mais pura, diz o dominador Grande Mestre Lx elnornor/Flickr

Com 27 anos, Christian Grey tem tudo — só não tem mesmo comparação. Rico (muito), “lindo de morrer”, um “borracho”, dono de uma voz “quente e sedutora como brigadeiro de caramelo derretido”, tanto ouve Kings of Leon como música clássica, toca piano, sabe sempre que vinho escolher, leva a miúda a passear de helicóptero e planador quando quer, oferece-lhe primeiras edições de livros, um Audi, um MacBook Pro e é ainda uma autêntica divindade sexual. Seriam possíveis mais clichés?

Parece que sim. Grey, claro, tem um lado “cinzento insondável brilhante”. As tais Cinquenta Sombras, onde se esconde a “predilecção” por práticas sadomasoquistas — produto, como não podia deixar de ser, de uma infância traumática. Mas os estereótipos ainda não acabaram.

É para este mundo que Anastasia, estudante de 21 anos, virgem até o conhecer, entra. E é para o satisfazer, para não o perder e, claro está, por amor, que aceita ler e reler o contrato (nunca assinado) entre dominador e submissa, conhecer o Quarto Vermelho da Dor (a “sala de diversões”, equipada a preceito com a Cruz de Santo André, cordas, correntes, chibatas, “floggers"), experimentar umas quantas palmadas, uns quantos castigos, num duelo constante com a sua “deusa interior” (que “pula e bate palmas como uma criança de cinco anos” quando o vê — haverá “personagem” mais irritante?).

O primeiro livro termina com Ana a fugir a sete pés de uma sessão, mais dolorosa por proposta da própria (queria saber “até que ponto” podia “ser mau"). O segundo, “As Cinquenta Sombras Mais Negras”, que este sábado chega às bancas em português, numa edição da Lua de Papel, apresenta mais uns quantos “demónios” de Grey que Anastasia estoicamente combate, até à apoteótica redenção no terceiro livro, editado em Novembro. Sempre com muito sexo, claro.

BDSM é “mais divertido” 

De qualidade literária muito, muito duvidosa (que sirva de pista: a agora multimilionária E.L. James começou “nisto” da escrita num site de “fanfiction” dedicado a “Crepúsculo”, a saga dos vampiros de Stephenie Meyer), estes três livros, alcunhados de “porno para mamãs”, puseram muita gente, especialmente mulheres, a falarem pela primeira vez de BDSM, acrónimo de Bondage, Disciplina, Dominação e Submissão e Sadomasoquismo. Diz-se que a autora até terá salvo casamentos. Mas como é que os membros da comunidade em Portugal vêem este livro? 

“É um romance, não é mais do que isso”, comenta Grande Mestre Lx, dominador (ou “top”, designação que prefere adoptar) que entrou em contacto com a prática há mais de 20 anos na Holanda. Para “apimentar” o ambiente, a autora “aplicou pormenores de disciplina” e fez “a sua construção”. Foi “inteligente” por isso ("criou interesse"), mas está longe de retratar a realidade.

“As pessoas não podem pensar o BDSM por aqui. [O BDSM] é um mundo, é uma questão de amor, na sua forma mais pura. E é uma coisa fantástica. É uma coisa séria, mas natural”, diz. Indo mais longe, o livro nem deveria ser conotado com esta cultura, mas sim visto como o “o que realmente é": um “romance”, um “excelente livro para se ler nas férias”. O tema é "abordado com ligeireza”, concorda Anish, submissa que descobriu esta realidade aos 46 anos na Internet, ao procurar a causa para a sua insatisfação sexual. Além disso, o BDSM é “muito menos pesado e muito mais divertido do que o livro faz transparecer”.

À procura do príncipe encantado

Dentro da comunidade, a reacção aos livros não é homogénea. Enquanto uns consideram que até podem abrir mentalidades e atenuar o estigma que circunda os praticantes, outros, como Anish, não estão tão optimistas. “Podem ser atraídos/as para o meio à procura do príncipe encantado como a Anastasia, quando não é isso que se passa na realidade”, lamenta. Além disso, o livro espelha “motivações erradas": “Ou se gosta da prática e se identifica ou, se é para satisfazer a outra pessoa, tem tudo para dar errado.”

A relação entre a prática BDSM e possíveis traumas é, para além de redutora e ultrapassada, “errada”, explica Alexandra Oliveira, professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto pois tem sido “posta em causa pelas investigações científicas”, sendo “contestada por profissionais de saúde de todo o mundo”. O que provoca angústia aos BDSMers é, precisamente, este estigma, a forma como a sociedade e a comunidade médica os continua a ver, e não a prática, que quase sempre vai para além do foro sexual. “São pessoas normais, que se querem divertir e explorar o seu potencial erótico”, salienta a investigadora Ana Mafalda Ventura Mota, autora de uma tese de mestrado sobre o tema.

Que o diga Grande Mestre Lx: “Eu tive uma infância fantástica, venho de uma família extremamente equilibrada. Não há causa-efeito.” E deixa a provocação: “Se este livro tem vendido tanto, por alguma coisa é. As pessoas gostam dele, ficam interessadas, excitadas. Se calhar elas podam olhar para elas próprias e perguntar-se se aquilo que as está a excitar vem de terem tido problemas traumáticos na infância.”

“Fazemos sardinhadas”

Sim, pode existir um contrato entre dominador e submissa. As palavras de segurança são importantíssimas (São, Seguro e Consensual são os pilares do BDSM), mas não essenciais quando as duas pessoas já se conhecem bem e sabem ler sinais como a respiração. Podem existir salas privadas como o Quarto Vermelho da Dor, mas nem todos têm essa facilidade. É raro haver posturas tão obsessivas como a de Christian Grey e quase impossível nunca ter praticado “sexo baunilha” ou entrar no meio como virgem. 

Acima de tudo, não é tão negro e obscuro assim. Sim há muito respeito pela privacidade, até porque é um meio restrito e pequeno. “Mas somos pessoas normais, com família e filhos”, diz Anish, cujo filho de 24 anos já conhece as suas opções sexuais. A de 14 ainda não — “mas uma das coisas que já se apercebeu é que, de vez em quando, saímos todos de preto”. E ri-se quando conta aquela vez que teve de andar a esconder os “brinquedos” da empregada doméstica ou quando o vizinho da frente vislumbrou um chicote.

A diferença é que podem “verbalizar todas as fantasias” e falar livremente sobre tudo. “As pessoas pensam que é tudo uma orgia — não é orgia nenhuma. Aquilo que faço, com quem faço, faço entre quatro paredes.” E aí pressupõe um “entendimento”, um “namoro” como em todo o lado e é “confortável”. Uma questão de “prazer” e até “amor”. “Fazemos sardinhadas”, conclui, entre risos, Grande Mestre Lx, antes de se despedir ao telefone. E não há cá látex ou chibatas.

Texto actualizado às 21h29 de 30 de Setembro

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