A noite em que Portugal de Chalanix quase tocou o céu
Há 32 anos a França de Platini esteve muito perto de ser surpreendida pela selecção dos “homens de bigode”. Foi a estreia inesquecível dos portugueses num Europeu e a final ficou a apenas seis minutos de distância.
Se houve partidas emocionantes na história dos campeonatos europeus de futebol, o França-Portugal, disputado há precisamente 32 anos, tem um lugar reservado no pódio. Decidia-se o acesso à final do Euro 1984 e, a seis minutos do final do prolongamento, a selecção nacional estava na frente do marcador. O público gaulês desesperava nas bancadas do Stade Vélodrome, em Marselha, mas haveria de ser compensado com um golpe de teatro inesquecível. Aos 114’ surgiu o empate e, em cima do derradeiro apito, Platini evitou os penáltis, liderando os “bleus” para a partida decisiva, em Paris, onde conquistariam o primeiro grande título internacional da sua história.
Portugal caiu, mas confirmou-se como a grande sensação na sua primeira participação na fase final de um Europeu. Era o tempo dos “homens de bigode” da selecção, como ficaram conhecidos em França. Um período conturbado da equipa nacional que, surpreendentemente, ultrapassou os seus próprios fantasmas e partiu à conquista de França. O mundo vergou-se a estrelas como Chalana, Diamantino, Carlos Manuel, Jaime Pacheco, João Pinto, Nené, Gomes, Jordão, Bento e Álvaro Magalhães, entre outros. Milhões de portugueses, espalhados pelo globo, seguiram esta campanha colados à televisão e muitos não resistiram às lágrimas com os festejos de Platini.
“Este foi o jogo mais importante da minha carreira na selecção”, recorda ao PÚBLICO Álvaro Magalhães: “Fui considerado o melhor lateral esquerdo do campeonato pela imprensa internacional, nomeadamente pelo jornal francês L’Equipe. A nossa ala esquerda, comigo e com o Chalana, foi a melhor do torneio.” O pequeno génio do Benfica iria deslumbrar efectivamente os franceses, que o brindaram com duas alcunhas carinhosas: Chalanix, pelo seu farto bigode e pequena estatura que faziam lembrar Astérix, o herói gaulês da banda desenhada, e Cyrano de Bergerac, pelo nariz proeminente.
Se a selecção portuguesa vive hoje um ambiente tranquilo, de camaradagem entre os jogadores, com toda uma estrutura profissionalizada, em 1984 esta realidade era uma miragem. O clima era de autêntica “guerra civil”, com conflitos insanáveis entre os futebolistas do Benfica e FC Porto, que representavam a esmagadora maioria dos convocados e formavam blocos separados, quase sem comunicação entre si. “O ambiente não era o melhor, com algum mal-estar e havia uma grande rivalidade e concorrência pelos lugares no ‘onze’”, reconhece Álvaro Magalhães.
E para gerir esta autêntica feira de vaidades, a Federação Portuguesa de Futebol, presidida na altura por Silva Resende, optou por uma solução, no mínimo, criativa, nomeando nada menos do que uma “comissão técnica” com quatro “seleccionadores”, ligados aos três maiores clubes portugueses: Fernando Cabrita, António Oliveira (Toni), António Morais e José Augusto. “Isto complicava tudo, porque eram quatro cabeças a pensar, com divergências entre si”, resumiu Álvaro. A própria UEFA não sabia muito bem como lidar com esta peculiaridade, acabando por decidir que, para efeitos oficiais, seria Fernando Cabrita a aparecer na ficha técnica como treinador principal.
“O marido da Anabela”
Insólita foi também a decisão inabalável de Fernando Chalana de levar a mulher Anabela para o estágio da equipa. “Se não deixam que ela me acompanhe, volto para Portugal”, terá ameaçado. Anabela era um elemento estranho ao grupo, mas estava longe de ser uma presença passiva. Na realidade, aproveitou os holofotes mediáticos e pulou, sem hesitação, para a fama. Durante o campeonato, escreveu crónicas para o jornal A Bola, e parecia dar mais entrevistas que os próprios jogadores. Todos estes ingredientes picantes tornaram a selecção portuguesa num alvo preferencial da curiosidade da comunicação social internacional, que chegou ironizar, referindo-se a Chalana como “o marido da Anabela”.
Mas, brincadeiras à parte, os franceses renderam-se mesmo ao prodigioso jogador que, no final do torneio, haveria de ser contratado pelo Bordéus. Uma transferência milionária (dois milhões de euros, a maior de sempre no futebol português, até então), que contribuiu para o Benfica concluir o terceiro anel do Estádio da Luz. As lesões recorrentes, tornaram esta aventura internacional frustrante para “Chalanix”, que acabou por regressar aos “encarnados” três anos depois. Sobre o jogo com a França, Chalana recordou recentemente, numa entrevista ao L’Equipe, a forma arrogante como foi tratado pela grande estrela dos “bleu” no final do encontro: “Cruzei-me com Platini e pedi-lhe para trocar a camisola, mas ele não me respondeu.”
Apesar de todos os episódios caricatos que envolveram a selecção, a verdade é que Portugal conseguiu brilhar em França, mesmo tendo de enfrentar uma fase de grupos muito complicada, com confrontos com as poderosas Alemanha (na altura representada pela República Federal Alemã, que era campeã em título e vice-campeã mundial) e Espanha.
Empatou a zero bolas com a primeira, a 14 de Junho, em Estrasburgo (na mesma data em que a actual selecção marcou passo com a Islândia de forma bem mais escandalosa) e conseguiu também uma igualdade (1-1) com a Espanha (17 de Junho), com António Sousa a tornar-se no primeiro português a marcar numa fase final de um Europeu. No último jogo, confirmou o segundo lugar do grupo, na frente dos germânicos, após vencer a Roménia, com um golo de Nené (20 de Junho).
Na altura, o formato do Europeu juntava apenas oito participantes na fase final, divididos em dois grupos, com os dois primeiros de cada a seguir directamente para as meias-finais. Alcançado este patamar, contra todas as expectativas, nomeadamente em Portugal, a selecção tinha pela frente a anfitriã França, num duelo marcado para a noite de 23 de Junho.
“A motivação era muito grande. Sentíamos que tínhamos uma selecção muito forte, com grandes jogadores e que podíamos chegar à final”, conta Álvaro Magalhães, referindo que o grupo conseguia sanar as suas divergências quando subia ao relvado: “Dentro do campo o ambiente era fantástico e já éramos amigos.”
Thriller em Marselha
Com o Vélodrome de Marselha a rebentar pelas costuras e com muitos portugueses também nas bancadas, iniciou-se um encontro de nervos. “O ambiente era infernal. Só no Estádio da Luz tinha vivido algo idêntico, mas aí com um público favorável. Foi esse apoio que ajudou os franceses a darem a volta ao resultado. Acreditaram sempre, mas, reconheço, que nós também falhámos nos momentos cruciais”, admite o ex-internacional.
E se os franceses partiam com alguma confiança para esta partida, perante um estreante e inexperiente neste tipo de competições (até então, o único grande torneio em que Portugal participara tinha sido o saudoso Mundial de 1966 de Eusébio, em Inglaterra), mais ficaram quando apontaram o primeiro golo, aos 24’, marcado pelo lateral esquerdo Jean-François Domergue, na sequência de um livre directo. Mas os portugueses não atiraram a toalha ao chão e mantiveram-se em jogo.
A 16 minutos do final do encontro, Chalana fabrica um lance pela esquerda, cruzando na perfeição para Jordão marcar, de cabeça, o segundo golo nacional no torneio. Ainda antes do final do tempo regulamentar, Bento (uma das figuras da partida) conseguiu evitar o triunfo francês, com uma defesa aos pés de Platini, desviando depois para a barra a recarga de Didier Six. A partida não era para corações fracos.
O prolongamento foi inevitável e ao terceiro minuto, o público francês gelou. Mais uma vez Chalana cruzou para Jordão e o avançado do Sporting bisou no encontro. Com a selecção da casa ainda desorientada com a reviravolta inesperada, Nené esteve muito próximo de fazer o 1-3, aos 113’, quando se isolou perante Joël Bats (actual treinador de guarda-redes do Lyon de Anthony Lopes), que travou o remate.
O lance acordou os franceses, que se lançaram desesperadamente ao ataque, ao mesmo tempo que o conjunto português recuava perigosamente para junto da sua área. O empate surgiria mesmo, com Platini a servir Domergue, para o defesa a marcar o segundo do encontro e a dar uma alfinetada no balão de entusiasmo dos portugueses. Este esvaziaria completamente nos derradeiros instantes do prolongamento, quando o próprio Platini levou a França à loucura, apontando o golo que colocava os “bleu” na final de Paris. No Parque dos Príncipes iria bater a Espanha, por 2-0, numa partida bem menos emotiva.
“Aquela ambição que existia no grupo acabou por ser desperdiçada na fase final da partida. Faltou-nos alguma concentração”, lamenta Álvaro Magalhães: “Regressámos a Portugal no dia seguinte. Lembro-me que estávamos tristes, fomos jantar e bebemos umas cervejinha