Regresso ao passado no país do futuro
A expressiva derrota de Dilma Rousseff na inenarrável sessão da Câmara dos Deputados que aprovou o avanço da sua destituição colocou o Brasil num caminho novo onde se adivinham poucas oportunidades e facilmente se descobrem inúmeros perigos.
Com Dilma a um pequeno passo de ser afastada do poder, é difícil detectar uma vírgula de legitimidade no sucessor, Michel Temer. Com uma presidente afastada após ter recebido o mandato de 54 milhões de cidadãos há apenas um ano e meio, custa perceber como poderá ser substituída por um político que 90% dos brasileiros rejeitam e que, se fosse a eleições, obteria apenas 1 a 2% dos votos. Com a crise e o despautério dos políticos a acirrar a raiva, é difícil entender como poderá o Brasil aceitar ser governado por um ex-vice presidente que está envolvido até ao tutano em suspeitas de corrupção. Com a descrença na política a alimentar a desesperança, é duro olhar para o Palácio da Alvorada e descobrir que o seu novo inquilino chegou até lá com um precioso empurrão de Eduardo Cunha, o homem que nega ter contas ocultas na Suíça, mas admite ter lá trusts em seu nome.
Ao contrário do impeachment do presidente Collor de Mello, desta vez não há a fé numa redenção da democracia brasileira porque Dilma não está acusada de corrupção nem o vice que se prepara para a substituir, Michel Temer, se compara ao estatuto moral de Itamar Franco. Dessa vez, o afastamento de Collor pôde ser usado como prova de que a democracia era capaz de sarar as suas pústulas. E a verdade é que, desde então, os governos de Fernando Henrique Cardoso, de Lula e o primeiro mandato de Dilma foram capazes de criar duas décadas de estabilidade política, de crescimento económico e de progresso social. A ruína dessa base de consenso mínimo que permitiu ao Brasil deixar de ser o eterno país do futuro para se realizar num presente com esperança é o maior dano colateral da degradante classe política que gravita no planalto central do país.
O Brasil de hoje não é o Brasil que, com a ajuda do poder económico e da imprensa horrorizada com a ascensão do PT e de Lula na campanha de 1989, elegeu um arrivista vindo do estado de Alagoas. É um país com um sistema judicial mais consolidado e transparente, as suas elites são mais cosmopolitas e parece fora de causa um regresso a terreiro dos militares que, por uma crise política bem menor que a actual depuseram João Goulart em 1964 e instauraram uma longa e brutal ditadura. Mas os fantasmas de um país dividido a meio, entre a oligarquia e o povão, numa versão actual do fosso colonial entre a Casa Grande e a Senzala, estão ao virar da esquina. O Brasil que foi capaz de estreitar laços e de perceber que não pode ser um país digno sem um mínimo de coesão social, está em recuo, como ontem notava Rui Tavares no PÚBLICO. A sensação de que o impeachment é um golpe dos poderosos ameaça radicalizar a esquerda do PT e tornar as ruas num palco de luta política.
Para evitar os riscos do pesadelo de um governo Temer, só parece haver uma solução possível: fazer o reset da crispação política remetendo a solução para a única fonte de soberania inatacável nas democracias, o voto popular. Para o conseguir, haveria necessidade de o Congresso aprovar uma emenda constitucional que permitisse a antecipação das eleições. Os inquéritos de opinião mostram sem margem para equívocos que Dilma, Temer ou Cunha são todos faces da mesma moeda sem crédito nem valor. Todos deviam afastar-se para que o Brasil pudesse respirar. Mas, nem Dilma nem Temer parecem dispostos a resignar. Falta-lhes grandeza e empenho no bem comum. É pena. Sempre haveria oportunidade de afastar de cena alguns rostos mais visíveis da corrupção, podia-se clarificar quem tem e quem não tem apoio para governar e podia-se, enfim, esclarecer o que cada um pensa fazer em matérias cruciais para o futuro como a política económica e financeira, a reforma de um sistema político que favorece o tráfico de influências e a compra de votos e o combate à corrupção.
Quando carece de legitimidade, a democracia é um tigre de papel. O Brasil vive esse drama, no qual há espaço para todos os atropelos, todas as venalidades e todos os perigos. Perdida no ódio e na irracionalidade, a política brasileira precisava de líderes tolerantes e capazes de amarrar as pontas em torno do interesse nacional. Infelizmente, porém, o país não tem hoje homens da craveira de Ulysses Guimarães ou de Tancredo Neves. Entre o PT enraivecido, desesperado pelo seu falhanço e minado pelas denúncias da Lava-Jacto e um novo bloco enlameado pela corrupção e pelas sequelas da “insurreição dos hipócritas" (a votação do impeachment na leitura da revista alemã Der Spiegel) que lhes abriu as portas do poder, não há muita razão para que sobre o optimismo. Hora de fazer uma pausa e esperar que o Brasil não regresse ao pesadelo que o persegue: o de ser o país de um futuro sempre adiado.