A crise no CES, ou das irregularidades que não o eram

A actual direção do Centro de Estudos Sociais quis livrar-se de Boaventura de Sousa Santos e assim estabelecer outros sistemas de poder institucional e de orientação científica?

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Há apenas alguns dias, desvinculei-me daquele que foi o meu centro de investigação durante quase 40 anos. As razões que me levaram a isso resultaram da minha perplexidade, ao longo de todos estes meses, perante a forma como a direcção do CES lidou com a crise provocada pela publicação de um artigo, enormemente ofensivo para nós, num livro da Routledge. O que ouvi no último plenário em que estive presente e que, acidentalmente, coincidiu com o dia seguinte à demissão do fundador do CES, não me deixou alternativa e tem eco no comunicado de 11 de Dezembro de 2024, um documento bem revelador do modo como a actual direccão do CES “resolveu” o assunto.

Diz o comunicado que as averiguações externas (contratadas pela direcção e cujo teor ignoramos) se concluíram e que não foram identificadas irregularidades que justifiquem abrir processos disciplinares, “seja por não terem sido apurados indícios de eventuais infracções relevantes ...”, seja pelo facto de “os órgãos do CES não deterem poder disciplinar estatutário sobre pessoas que já não têm vínculo com a instituição”. São essas duas circunstâncias cumulativas ou alternativas? Ou seja, se Boaventura de Sousa Santos não se tivesse demitido, o CES avançava com um processo disciplinar? E a pergunta é: com base em quais “infracções relevantes”? E como pode uma firma de advogados e a direcção do CES substituir-se ao Ministério Público no respeitante aos restantes 13 investigadores/as denunciados/as? Mesmo alguém que me acusara, em plenário anterior, de não estar a ser feminista (por falar do direito à presunção de inocência e ao contraditório, normais em qualquer Estado de Direito!) acabou a colocar, agora em tom bem mais preocupado, as mesmas questões.

Recordemos como tudo começou: um artigo, supostamente científico e supostamente anónimo, atribuía a Boaventura de Sousa Santos, o Star Professor, responsabilidade por um ambiente de assédio sexual, moral e laboral, abuso de poder, extractivismo, etc. Afirmava também que tudo isso acontecia com a colaboração de um Apprentice/Aprendiz (Bruno Sena Martins) e uma Watchwoman/Vigilante (Maria Paula Meneses). Visava também outros elementos directivos do CES, que acusava de "controlarem" juízes, e acusava as suas feministas de defenderam o feminismo fora de portas, mas de nada fazerem dentro delas. Abriu-se então uma enorme crise no CES e promoveu-se nas redes sociais e na imprensa, nacional e internacional, a notícia de um verdadeiro escândalo a envolver Boaventura de Sousa Santos, cuja reputação científica foi sendo destruída (soube do cancelamento de convites, proibição de citar o seu trabalho em cursos universitários, contratos de livros suspensos ou cancelados, etc).

Porém, perante este último comunicado da actual direcção do CES, só há duas interpretações possíveis. Ou o Aprendiz e a Vigilante eram submetidos a tal coerção que não conseguiam resistir a ordens que violavam a lei e a ética — uma interpretação absurda se olharmos para o curriculum científico e profissional de dois investigadores, que até tiveram cargos de direção no CES, com um curriculum sólido tanto nacional como internacionalmente. Ou, segunda interpretação, mais verosímil: nem o Aprendiz aprendeu nenhuma irregularidade, nem a Vigilante encobriu nenhuma irregularidade digna de processo disciplinar.

Mas se é esta a única interpretação verosímil, surgem então muitas perguntas. Por que razão a actual direcção nunca defendeu o seu director emérito e, pelo contrário, contribuiu para destruir a sua reputação? Por que razão alinhou com as denúncias — nunca, até hoje, formalmente apresentadas — das supostas “vítimas”, a quem até pediu desculpa após o relatório da Comissão Independente (em que a palavra “vítima” nunca foi sequer utilizada)? Porquê toda esta fúria, que chegou a pretender convocar uma assembleia geral para decidir da expulsão do seu fundador? A actual direção do CES quis livrar-se de Boaventura de Sousa Santos e assim estabelecer outros sistemas de poder institucional e de orientação científica? Um golpe de Estado com aparência legal? Se assim foi, há que denunciá-lo e retirar daí consequências e responsabilidades.

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