Pelas mean streets de Martin Scorsese

Uma casa, em Little Italy, e as ruas desse bairro são o “local do crime” de um pedaço visceral do cinema americano. Saímos de uma, aventuramo-nos pelas outras e não há redenção possível. Scorsese é uma exposição na Cinemateca Francesa.

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Martin Scorsese na rodagem de New York, New York MARTIN SCORSESE, NEW YORK, NEW YORK, 1977. MARTIN SCORSESE COLLECTION, NEW YORK

Daria, mas não se pode tocar, para nos sentarmos à mesa da casa de Charles e Catherine Scorsese, no número 253 de Elizabeth Street — entre East Houston e Prince Street. Essa é a rua em Nova Iorque em que os pais de Martin Scorsese nasceram, filhos de imigrantes sicilianos que chegaram à América no princípio do século XX, e onde o jovem Marty, nascido em 17 de Novembro de 1942, viveu durante 15 anos, até aos 23: os anos em que observava as movimentações na rua a partir da janela, por causa da asma que o retinha, admirando e temendo o que ali em baixo se passava, os anos em que o seminário foi uma hipótese, os anos em que o cinema, na sala do bairro e no televisor de casa, começou a ser uma realidade.

Esse é o “local do crime” de um pedaço visceral do cinema americano, essa casa, essas ruas, a igreja de St Patrick... E aquela é a mesa onde Martin sentou os pais e a eles se juntou, em 1974, para o documentário Italianamerican: filme sobre Charles e Catherine, filme em que Catherine se mostra tentacular vedeta de cinema a querer ocupar todo o ecrã, filme sobre a receita de almôndegas dela — muito importante... —, filme sobre como os sicilianos varreram os irlandeses que antes habitavam ali e transformaram cada edifício numa aldeia do Sul italiano encerrada em si mesma (só mais tarde é que os que moravam num edifício se começaram a casar com os que habitavam no edifício ao lado).

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A mesa da casa de Charles e Catherine Scorsese, em Little Italy, os retratos de família, um televisor como aquele em que o jovem Martin descobriu o neo-realismo italiano Stéphane Dabrowski
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Italianamerican (1974), o documentário sobre os pais, sobre receitas de almôndegas, sobre a família de sangue e a família das ruas: tentaculares, sem saída

Italianamerican é um filme sobre a família e sobre as batalhas pelo domínio das ruas — e já um pedaço do olhar arqueológico de Scorsese para a sua cidade. As streets são espaço onde também se forjam alianças de sangue, por isso não oferecem alternativa à claustrofobia familiar. “You don’t make up for your sins in church. You do it in the streets. You do it at home. The rest is bullshit and you know it”, dizia a voz off, de Scorsese, em Mean Streets (1973). Scorsese aparecia na sequência final deste filme, no banco de trás de um carro, a abater a tiro a hipótese de fuga de Keitel e Robert De Niro — e nesses anos voltaria a inquietar a partir do banco de trás de um táxi, naquele seu tenebroso cameo como passageiro pretty sick de Travis Bickle no Taxi Driver (1976). Se repararmos, aliás, no cenário montado no início da exposição que a Cinemateca Francesa, em Paris, dedica a Martin Scorsese (até 14 de Fevereiro), a mesa, os retratos de família pendurados tal como na casa de Elizabeth Street, o televisor como aquele em que o jovem Marty descobriu o neo-realismo italiano nas emissões de sexta-feira à noite, são “olhados” pelo enorme cartaz de Tudo Bons Rapazes (1990). Esse olhar de De Niro, Ray Liotta e Joe Pesci é silencioso e diz tudo, é um inescapável horizonte. Não há como fugir-lhe(s). Sai-se de casa e esbarra-se com a rua.

A família, ou como não escapar
Começa por ser essa uma das mais fortes impressões deixadas pela montagem na Cinemateca Francesa: depois de um ecrã inicial onde as imagens de Who’s That Knocking at my Door (1967), Mean Streets, O Toiro Enraivecido (1980) ou Kundum (1997) servem um bailado iconográfico que edifica o motivo central da obra do cineasta, a crucificação (A Última Tentação de Cristo, 1988), Scorsese, a exposição, instala-nos num espaço familiar e alimenta-se do reconhecimento (familiaridade) e da claustrofobia. Progredimos de casulo em casulo, de grupo em grupo, de família em “família” — a cumplicidade e a traição entre “irmãos”, chamem-se Johnny Boy e Charley, Joey e Jack LaMotta, Jesus Cristo e Judas, tenham os rostos de De Niro, Pesci, Dafoe ou Keitel. Movimentamo-nos mas nunca saímos do mesmo sítio, das mesmas obsessões, não se escapa às alianças e às suas leis.

O cinema forjou uma identidade, mas os filmes não servem de escape — como se vê num musical, mesmo num musical, como New York, New York (1977), um dos grandes Scorsese, um dos fortes concorrentes ao melhor Scorsese. Foi quando descobriu Paisà, de Rossellini, numa das tais emissões televisivas, que Martin encontrou a origem e a explicação dos rostos e dos corpos que o rodeavam em Little Italy. Mais tarde, colocaria as imagens de um home movie que um primo lhe ofereceu — Elizabeth Street no início do século XX, a loja dos avós paternos, a avó materna nas compras, procissões, um mundo que já desaparecera mas que ele ainda conseguira habitar, ou pelo menos de que ouviu ainda ecos — no início do seu A Minha Viagem a Itália (1999), o documentário em que viajou pelos filmes que o fundaram. Como se se tratasse da mesma coisa, o home movie e o neo-realismo italiano. Foi na noite com Paisà que percebeu a potência dos filmes, foi esta a sua grande descoberta: o cinema só pode forjar cumplicidades com o rosto da verdade — mesmo que Marty não descartasse as fantasias de Roy Rogers e do cavalo Trigger na sala de cinema do bairro.

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Martin Scorsese na rodagem de A Cor do Dinheiro

Regressemos em pensamento àquela assombrada reclamação de Scorsese, como Shorty, no final de Mean Streets, em que sabota as veleidades de Robert De Niro e de Harvey Keitel de escaparem às regras de um território e faz o filme explodir como um geyser no asfalto. E avancemos, então, sem sair daqui.

Há os homens, com os seus rituais. É um mundo de violência, com regras e hierarquia estáveis. Mas há aquele vestido que se avista, criação da figurinista Sandy Powell que Cate Blanchett vestiu quando interpretou Katharine Hepburn em O Aviador (2004). Se esse vestido causa estranheza, é porque sinaliza um mundo desconhecido para os homens de Scorsese, o das mulheres. É um mundo instável, que só conseguem tactear porque não conhecem as regras. Tem de ser sempre reinventado. O realizador quis aventurar-se por ele logo a seguir a Mean Streets para provar que não era apenas cineasta de homens. De facto Alice Já não Mora Aqui (1974), com a sua homenagem ao artifício de O Feiticeiro de Oz, valeu um Óscar a Ellen Burstyn.

Em ecrã grande, Robert De Niro e Sharon Stone destroem-se (Casino, 1995), Michelle Pfeiffer e Daniel Day-Lewis sufocam-se (A Idade da Inocência, 1993), o amor não respira devido às convenções sociais e ao guarda-roupa. Mas é um conjunto de pequenas fotografias a preto e branco que, em tom furtivo, delicado, mas tremendamente pungente, fala de um desencontro fundamental: Robert De Niro, o insone e solitário Travis Bickle de Taxi Driver, e a inatingível, para ele, Cybill Shepherd, na Midtown de Nova Iorque.

Por esta altura os storyboards já povoam as salas. Scorsese, numa entrevista publicada no catálogo, conta que os seus primeiros storyboards datam de 1950-1953, quando ainda não tinha consciência de uma câmara mas tinha consciência de que o que o interessava era o movimento que se subentendia entre dois desenhos — por isso, argumenta, nada do que fazia poderia ser confundido com BD. O storyboard, muito detalhado, com os movimentos de câmara, com cor a indicar o dramatismo das situações, é a primeira manifestação do filme que Scorsese quer ver. A ele associa uma série de rituais, do tipo de lápis e de papel que utiliza ao espaço que escolhe para começar a “ver” o filme que quer ver no fim: um hotel perto do seu escritório, onde se isola depois das 19h, para que, no silêncio, a intuição e a reflexão possam comparecer ao mesmo tempo. Podem passar três horas antes de tudo começar.

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A Última Tentação de Cristo: a figuração da crucificação; Casino, irmandades e traições entre homens; A Idade da Inocência: ou de como os rituais são desconheci-dos na presença da mulher

Mas como testemunha Thelma Schoonmaker, sua permanente montadora desde O Toiro Enraivecido (o encontro data da New York University, nos anos 60, e tinham trabalhado juntos já em Who’s That Knocking at my Door), a montagem é o momento preferido: “os filmes fazem-se numa sala de montagem”. De tal forma que pode contrariar, reinventar, aquilo que, segundo Thelma, costuma representar cerca de 50% do seu trabalho: os desenhos de Scorsese, a forma como filma esta espécie de cineasta-arquitecto. Dá como exemplo a sequência de combate de O Toiro Enraivecido: a estrutura foi toda mudada por causa do que se viu nas rushes, o movimento de Vicky (Cathy Moriarty), a mulher de Jake LaMotta, a levar as mãos à cabeça para não ver a sangria no ringue. Passou a ser esse o pilar emocional em redor do qual se estruturou um dos cumes da arte de Scorsese e que é um dos cumes do cinema americano (Óscar para Schoonmaker, claro).

Havia anteriormente a inspiração da cena do chuveiro de Psico, de Hitchcock, e Hitchcock costuma constar da dieta que Scorsese serve aos colaboradores antes de uma rodagem e está frequentemente dentro dos seus filmes. Até porque em alguns deles se rodeou de colaboradores de Hitch, de Henry Bumstead a Saul Bass, passando por Bernard Herrmann, a quem pediu uma banda sonora para Taxi Driver porque, explicou, ao contrário do que acontecia em Mean Streets, onde pedaços da música popular explodiam em cada sequência, uma personagem como Travis Bickle — essa criação de Paul Schrader que resultou da exposição ao mundo, do choque, de um calvinista que aterra na decadente Times Square novaiorquina vindo de Grand Rapids, Michigan — não poderia estabelecer qualquer empatia com a pop do seu tempo.

Ainda sobre o Hitchcock que há em Scorsese: The Key to Reserva, curta de 2007, é um momento de homenagem e autoparódia (o cinema clássico e a sua impossibilidade, hoje): encomenda de uma marca de champanhe para uma campanha de Natal, mostra Scorsese a querer fixar a memória de um fragmento de argumento supostamente “perdido” de Hitch, e em poucos minutos temos direito a um ofegante compacto de Janela Indiscreta, O Homem que Sabia Demais, Vertigo...

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A viagem não é só no espaço, é também no tempo: Gangs of New York (2002) releva do desejo de arqueologia que está no cinema do realizador. Esse é o movimento, como um travelling grandiloquente, de uma mesa na exposição Stéphane Dabrowski
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O cinema de Scorsese nasceu em Nova Iorque e expandiu-se pela cidade. A partir do bairro, Little Italy, em Who’s That Knocking at my Door (1967) ou em Mean Streets (1973), subiu até Midtown (Taxi Driver, 1976)

Sobre o Scorsese cinéfilo e protector do património cinematográfico, a sua correspondência para angariar companheiros de luta — Bresson, Kurosawa, Oshima, Resnais — é abundante.

E ainda sobre citações: uma versão inicial do argumento, de Paul Schrader, de O Toiro Enraivecido, em que Jake LaMotta cita o Brando de Um Eléctrico Chamado Desejo, em vez (é o final que ficou) do Brando de Há Lodo no Cais — um filme diferente, mas ainda Kazan e Brando, e um filme que falou a Scorsese como neo-realismo italiano, “com uma verdade emocional” que os códigos da Hollywood não permitiam.

A claustrofobia adensa-se e a sala ao fundo promete uma libertação: Nova Iorque, Nova Iorque, néons a faiscar. O cinema de Scorsese nasceu num bairro e expandiu-se. A partir de Little Italy, em Who’s That Knocking at my Door ou em Mean Streets, subiu até Midtown (Taxi Driver). A viagem não foi só no espaço, foi também no tempo, até à fundação da cidade: Gangues de Nova Iorque (2002). Esse movimento, como um travelling grandiloquente, está assinalado numa mesa-mapa final. Mas não há redenção final, nem nestas ruas. “You don’t make up for your sins in church. You do it in the streets. You do it at home. The rest is bullshit and you know it.”

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