Um retrato íntimo de Marlon Brando na sua própria voz
O realizador Stevan Riley pesquisou 300 horas de gravações de Marlon Brando descobertas após a sua morte e usou-as no documentário Listen to Me Marlon, que se estreou ontem nos Estados Unidos.
No total, são cerca de 300 horas de gravações áudio, descobertas após a sua morte, e que serviram de base ao documentarista inglês Stevan Riley para realizar Listen to Me Marlon, um retrato íntimo daquele que muitos consideram o maior actor de cinema de todos os tempos.
Com um material como este nas mãos, Riley, cujo filme chegou esta semana às salas de cinema americanas, pôde prescindir dos habituais testemunhos, entrevistas ou narrações em off, e limitou-se a deixar Brando contar de viva voz, por assim dizer, a sua atribulada vida pessoal e profissional.
O filme, descreve o jornalista e crítico Jason Bailey no site Flavorwire, abre com uma imagem 3D da cabeça de Brando num ecrã de computador a predizer o fim anunciado do actor tal como o conhecemos: “Está tudo no digital, os actores deixarão de ser reais, e por isso talvez isto venha a ser o canto do cisne para todos nós”. E o que o “isto” significa percebe-se melhor logo a seguir, quando a digitalizada cabeça de Brando, simulacro dessa cabeça que ainda hoje assombrará os sonhos cinéfilos dos que viram Apocalypse Now, confessa o desejo de criar “um documentário altamente personalizado da vida e actividades de Marlon Brando, eu próprio”.
É como se Brando, por interposto realizador, tivesse dirigido postumamente a sua autobiografia. E uma parte dos elogios bastante unânimes que o documentário de Stevan Riley tem recebido da crítica deve-se justamente ao facto de ter deixado que fosse Marlon Brando a compor o seu retrato, sem interferências de terceiros, e resistindo à tentação de lhe sobrepor a sua própria visão do actor.
“Fiquei emocionadíssima, foi avassalador”, disse a filha de Brando, Rebecca, depois de ver o filme no Festival de Sundance, em Janeiro, onde Listen to Me Marlon perdeu o Grande Prémio do Júri na categoria de documentário para Wolfpack de Crystal Moselle. “É como se Stevan Riley tivesse trazido o meu pai de volta, da outra vida”.
Rebecca Brando lembra-se de o pai falar “muito frequentemente” para o gravador, embora nunca tenha assistido a nenhuma sessão. “Às vezes entrava na sala e via-o a gravar, mas ele parava de falar, de modo que nunca soube o que dizia”.
E muito do que de mais interessante e comovedor Brando diz nestas gravações prende-se com a desmistificação do seu trabalho como actor. Este Marlon Brando falando consigo próprio, mas consciente de que está a deixar um testemunho, é alguém “com a consciência aguda de que o talento não chega, que sabe quanto o seu sucesso inicial se deveu a uma fortuita questão de timing: ser o actor certo no tempo certo, um novo tipo de actor para um público que sentia, como ele próprio, que a arte da interpretação no cinema tinha chegado a um ponto em que ‘tudo era cliché’”, diz Jason Bailey.
O dom da curiosidade
Nas gravações que Stevan Riley seleccionou para o filme, Brando reduz a sua filosofia e técnicas de interpretação a um elemento básico: “a curiosidade pelas pessoas”. Era algo que lhe estava no sangue, explica a sua filha ao site Flavorwire. Se trazia um amigo a casa, o pai perguntava-lhe: “Por que é que achas que ele é tão calado? Por que é que achas que ele está sempre a sorrir?”. E ela própria não escapava à curiosidade do actor: “O que é que estás a pensar neste preciso momento? Por que é que puseste a mão no ombro? Sabes que quando pousaste a mão no ombro, levantaste um dedo?’”.
Críticos como Dennis Harvey, da Variety, ou Kenji Fukishima, da Slant Magazine, destacam as escolhas certeiras de Riley na escolha e montagem dos muito diversos materiais de arquivo que se cruzam no filme com a voz de Brando: cenas de bastidores, aparições televisivas, excertos de filmes domésticos, notícias de jornais, e também manchetes de tablóides visando os aspectos mais escandalosos e dolorosos da sua vida, incluindo a prisão do seu filho Christian por ter assassinado o namorado da meia-irmã Cheyenne, em 1990, o suicídio da própria Chyenne em 1995, aos 25 anos, ou a morte precoce de Christian em 2008, de pneumonia, poucos anos após ter sido libertado.
E claro que Riley não podia ter deixado de incluir uma selecção de cenas dos muitos filmes que Marlon Brando protagonizou. E também nesta escolha, assinala Dennis Harvey, o realizador demonstrou a sua imparcialidade: “Por cada momento célebre de Há Lodo no Cais ou O Padrinho, há exemplos de projectos grosseiramente comerciais ou artisticamente falhados, e dos quais o actor se envergonhava, como o fiasco dirigido por Chaplin que foi A Condessa de Hong Kong”.
Como exemplo do modo como o documentarista se serve dos excertos de filmes para efeitos de dramatização, Jason Bailey aponta as cenas de pancadaria em Revolta na Bounty (1962), usadas não apenas para ilustrar as desavenças de Brando com o realizador do filme, Lewis Milestone, e os estúdios da MGM, mas as lutas que manteve desde a infância, e ao longo de toda a vida, com as figuras de autoridade, a começar pelo pai.
Autoridade é também a palavra certa para designar o estatuto que o realizador atribui à voz de Brando no filme, à versão que esta conta. Permite, por exemplo, que o actor afirme sem contraditório que reescreveu “todo o argumento de Apocalypse Now”, uma declaração ao arrepio de “toda a informação disponível sobre um dos filmes mais documentados de sempre”, observa Bailey. Mas não é de excluir, acrescenta, que Riley tenha deliberadamente mantido esta passagem sabendo que todos detectariam o seu “grosseiro exagero”.
Listen to Me Marlon, cujo título vem de uma frase que uma metade de Brando diz à outra durante uma sessão de auto-hipnose, “faz tudo o que um documentário pode fazer”, garante o crítico da Variety, para mostrar a “complexidade” de alguém que, para lá de ser considerado “o maior actor da sua geração”, foi também, fora do ecrã, “uma das mais enigmáticas, imprevisíveis e sofridas estrelas de cinema”.