Afinal, é apenas o meu sangue
Com a sua escrita, Ana Cássia Rebelo posiciona-se num limiar: entre a atenção ao real e um sortilégio estranho, sem limites definíveis
Entre estas páginas está alguma da mais poderosa escrita entre nós produzida. Elas não são uma bomba, um murro, nem uma pedrada. Contêm palavras. Essas palavras estão escritas e ordenadas de uma forma que é peculiar à autora que as assina. Os núcleos por elas formados são textos de uma intensidade nada comum. A violência que neles deflagra, a honestidade de que são capazes, e a sua valia literária, tornam este caso alguma coisa de distinto. É preciso dar notícia da medida a que está submetida a expressão, o modo como é verificado tudo aquilo que sai de controlo. É essa matéria altamente volátil, a humana, que se estende diante do olhar leitor. Desse modo, há uma tensão, que logo se estabelece, entre a nervura rasgada e a serenidade discursiva – “O desejo é literário, o prazer, simplesmente pornográfico.” (p.65) Longe de encerrar qualquer revelação gritada – “não aprecio a devassa” (p.140) –, riscada com esse afinco de demasia escrita, que às vezes acontece, este livro sóbrio e duro chega como o explicitar de uma suspeita antiga. O que Ana Cássia Rebelo tem vindo a escrever só por um conjunto de circunstancialismos não se tinha ainda fixado num livro que lhe fornecesse lugar adequado.
constitui uma antologia de textos retirados do blogue com esse nome, mantido por Ana Cássia Rebelo desde 2006. A recolha e selecção estiveram a cargo do crítico e escritor João Pedro George, responsável ainda pelo empenhado prefácio. O propósito de produzir esta colectânea motivou releituras e revisões, da parte de autora e organizador, bem como mudanças no próprio corpo do texto. No processo dessas revisitações, houve lugar ao que poderíamos chamar ficcionalização de um percurso verídico. Percurso esse que, já de si, era uma reconstrução, dado que não é, naturalmente, concebível uma identificação absoluta entre o vivido e o recriado pela escrita. Contudo, a essa constatação de base acresce algo específico a este livro. Na medida em que, por exemplo, a sequência pela qual surgem as entradas não é exactamente a mesma dos registos originais. Esses efeitos ficcionais estão especialmente patentes no modo como termina Ana de Amsterdam. A última entrada começa com a frase: “Morri no princípio de Outubro.” (p.216) Não se trata do paradoxo pelo paradoxo, mas da assunção de uma estrutura narrativa, que o próprio livro monta, de um percurso intensamente vivido nos seus descalabros. Um caminho em que o suicídio é tentativa repetidamente evocada, fantasma, tema avistado de forma cíclica. A conclusão pela morte, narrada de dentro desse limite lógico, é um sinal, dentro do livro, de que se levou até às últimas consequências uma certa arquitectura.
O trabalho levado a cabo para esta edição não esquece uma intenção comunicativa que é a do diário, mas serializa as suas ocorrências de modo a produzir certos núcleos narrativos em torno de importantes zonas temáticas: solidão, desejo, família, o espaço dos subúrbios e o da cidade, o corpo próprio e o outro. Do ponto de vista da pragmática, pressupõe-se, efectivamente, um eu que se exprime e um tu invisível, imaterial – inviável. Aquele que lerá o que, em princípio não deveria ser lido. A própria autora descreve Ana de Amsterdam como o diário de um desespero, de uma angústia que tem por companheira frequente “a amiga-tristeza” (p.21). Condições que lhe pertencem e que a escrita porfia para capturar. Deixar viver as suas palavras, por entre as redes apertadíssimas de estados de espírito no limite, como os que aqui tantas vezes estão patentes, é um dos zelos desta escrita. À medida que se extrema a experiência humana, vive-se a depressão e a angústia, conhece-se a abulia e a miragem sucessiva da terapia. O mais natural seria que o discurso acompanhasse essa descida, esse movimento centrífugo, que arrasta, sem nunca levar brandamente de passeio; mas ele segue de modo terminantemente diferente. A escrita que Ana Cássia Rebelo revelou no blogue organiza-se como se seguisse um duríssimo regime auto-imposto. De acordo com ele, aboliu qualquer sobrecarga emocional, mas, acima de tudo, excessos que emprestassem ao seu texto uma sobredosagem emotiva de molde a entravar a escrita. E no entanto, um dos prodígios operados por esta escritora é a capacidade de subverter essa lógica e de radicalizar a sua expressão, com a mesma tenacidade com que a modera, na maior parte dos casos. Um dos melhores exemplos desse movimento de intensificação é a opção vocabular que a leva a produzir enunciados como: “Há moscas varejeiras que vivem dentro de mim, alimentando-se da porcaria que por cá há.” (p.47), ou “tenho a sensação que dentro do meu corpo habita um bicho voraz que se alimenta da minha tristeza” (p.55). Talvez um dos mais eficazes paralelos para este grau de abjecção e violência se encontre, não na prosa, mas numa poesia como a de Sylvia Plath, com a hipnose de uma depreciação do eu, e essa espécie de volúpia da maldição, esse gozo da decadência. Pense-se, por mero exemplo, num poema como “Lady Lazarus”: “Como uma concha./ Tiveram de me chamar e voltar a chamar/ E arrancar de mim os vermes como se pérolas pegajosas.” (Ariel, Relógio D’Água, 1996).
Existem claramente dois hemisférios no mundo de Ana de Amsterdam. Um oriental: solar, aberto à vida e ao esplendor da natureza, oloroso e pleno de vida. Outro, ocidental e predominantemente interior: com uma vitalidade enfraquecida pela rotina e o cansaço, urbano e artificial. Várias vezes se referirá Goa como a casa, e é a respeito dessas paragens que se descreve a “quietude da minha noite indiana” (p.147), num contraste ambiental notório com os restantes espaços mapeados em Ana de Amsterdam. Como se apenas em Goa a autora vivesse. É, na verdade, algures nesses meridianos que A. Cássia Rebelo encontra a expressão para certo vitalismo que apenas lá parece colher – “Só as noites em Goa me trouxeram sossego e felicidade.” (p.59)
Com a sua escrita, Ana Cássia Rebelo posiciona-se num limiar. Entre a atenção ao real, graças ao qual “o vulgar e o banal são mostrados como parecem” (p.10), na expressão de J. Pedro George, e um sortilégio estranho, sem limites definíveis – “Não tenho salvação e já pensei em ir ao templo pedir um exorcismo. Não durmo, não sereno, ando cansada. Continuo a procurar a cabeça do abutre no manto da virgem e, nos olhos bondosos do menino, a maldade original, mas sou agora capaz de enunciar as características osganolépticas da seiva alexandrina: líquido opalino, de um branco suave, consistência de ovo, cheiro de ervas esmagadas, sabor intenso, ligeiramente adocicado, a fazer lembrar leite de espelta.” (p.205)