Primeira vez
É o melhor filme de Dolan, afirmação que estaremos determinados a desmentir quando estrear em Portugal Mommy.
Depois do paquidérmico Laurence para Sempre (2012), momento de mais olhos que barriga em que dava sinais de ruir o frágil castelo de cartas que vinha sendo montando como reinvenção autobiográfica e com ambição narcísica – o que nos obrigava sempre a olhar só para ele, mesmo que ele não estivesse no ecrã –, sentiu necessidade, contou, de abandonar uma “zona de conforto”. Encontrou na peça de Michel Marc Bouchard, huis clos no Quebeque rural, o projecto adequado à urgência que sentia – filmar depressa, e a produção durou dois meses.
Dolan interpreta uma personagem que chega a uma quinta para assistir ao funeral do namorado. Aí é engolido por uma espiral de violência, obrigado a sujeitar-se ao “jogo” do irmão do morto (um impressionante Pierre-Yves Cardinal), que quer esconder da mãe (Lise Roy) a homossexualidade do irmão/filho.
Dolan adaptou a peça com o autor, e poder-se-ia julgar que acrescentar cenas ao cenário original – sair da cozinha da peça, no fundo – foi a démarche do costume. A verdade é que não se tratou tanto de acrescentar, de fazer sair o filme do huis clos para ser menos teatral, mas de sair para o regresso ao interior ser mais tenso e claustrofóbico. É isso o que faz com que soprem sobre as convenções teatrais (e sobre as convenções do filme do género: o thriller) rajadas de medo, desejo e autodestruição, sentimentos e pulsões que nunca se avistaram assim nos filmes anteriores de Xavier.
Thriller? Filme de género? E qual deles, aquele ou o melodrama?
Uma das coisas mais bonitas é Tom na Quinta pendurar o espectador numa espécie de virgindade perante a invasão do desejo, deixando-o sem capacidade de nomear o que vê – logo, sem fechar a experiência num género reconhecível (mas, sim, pode ser um thriller). Uma das coisas mais definidoras da personagem interpretada por Dolan é a sua incapacidade de nomear o que sente (carta ao namorado, início do filme...), de nomear depois o que (não) se fixa entre ele e a personagem de Pierre-Yves Cardinal. É um filme sobre o desejo que acontece entre os dois ou é um filme-denúncia de uma relação violenta num Canadá “profundo” que condensa os reaccionarismos que deixamos que se abatam sobre nós? O espectador é levado pelo movimento em fuga (e nada em falso), e só pára, e só percebe o que viu, quando a personagem de Dolan toma consciência do que lhe aconteceu. A melhor sequência de todos os filmes de Xavier está aqui: a violência nos campos de trigo. O tour de force é puramente cinematográfico, o exibicionismo (e o narcisismo) ausenta-se porque ela nos faz experimentar, precisamente, a impossibilidade de controlar uma narrativa – já começou e vai continuar sem nós.
Xavier Dolan encontrou no simulacro de filme de género uma possibilidade de disciplina para recomeçar de novo. No filme que fez a seguir, Mommy, há um back to basics, regresso a uma relação fundadora – a Mãe – mas agora transcendendo a birra autobiográfica que estava na sua estreia, J’ai Tué Ma Mère. Mommy, o quinto, é o melhor filme de Xavier Dolan.