O fantasma chora por nós

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O que se tem passado no cinema Nimas, em Lisboa, desde o início de Janeiro, são como cenas de um sonho. Aquelas em que nos vemos vultos transportados para um tempo ocupado por outro tempo, assombrados por sinais que são fantasmas a gritar num cenário (o encarnado da alcatifa do Nimas, por exemplo). Essa viagem é um túnel que pode começar nas imediações: figuras na noite que vêm a desabafar pelas ruas circundantes, procurando o seu lugar na experiência por que passaram (“ainda assim achei um bocado parado”; “Afinal percebi tudo”...). Isto antes de darmos com uma cena que é inédita nas últimas décadas: um cinema de bairro que só se deixa ver depois de furado o grupo compacto que se junta na rua à espera da sessão seguinte: uma sala de cinema habitada, como as das Avenidas Novas dos anos 1970. Há quem fale como se não tivesse voltado a entrar numa sala de cinema desde essa década. Mesmo que tenha, entretanto, entrado em salas para ver filmes. E isto tudo antes, finalmente, do silêncio com que se experimenta o silêncio. Mais de dez mil espectadores, últimos números da distribuidora Leopardo Filmes, já passaram pelo ciclo Ingmar Bergman – 17 títulos, e 10 dos quais em versão restaurada, de Prisão (1949) até Fanny e Alexandre (1982). A primeira ronda acabou, a segunda, uma nova programação dos mesmos filmes, começou dia 6 e vai durar até Março (http://medeiafilmes.com/noticias/ver/noticia/ingmar-bergman-continua-em-lisboa-com-nova-programacao/). Instala-se no Auditório Charlot de Setúbal até Maio, no dia 20 chega ao Teatro Campo Alegre, Porto, e há extensões avulsas programadas para Coimbra, Braga, Figueira da Foz, Castelo Branco ou Viseu.

Não é certo que este “fenómeno” pudesse ser reproduzido se em vez de Ingmar Bergman estivesse a ser programado um ciclo Antonioni, um ciclo Fellini ou um ciclo Kurosawa – mas podia-se experimentar. Bergman ficou no imaginário cinéfilo como figura totémica, uma imponência que o espectador tinha de tentar vencer, como se dobrasse o Bojador, se queria ser chamado de espectador. Nos anos 70, a intimidação e como vencê-la era aquilo que levava o público às salas para ver os filmes de Bergman, autor que como outros, como os iconoclastas americanos que fizeram a Nova Hollywood e que puderam existir depois dela, ou como os italianos da (erradamente apelidada) comédia à italiana (afinal, eram ferozes e trágicos), faziam os rituais e os acontecimentos da burguesia, logo do mainstream – imagine-se o bacanal de psicanálise privada a que Cenas da Vida Conjugal (1973) dario azo em directo (não é difícil imaginar, esse silencioso turbilhão continua a ocupar a mente um espectador de hoje de Cenas da Vida Conjugal).

O medo: ao lado do Nimas, numa outra sala, Lars von Trier exibe a sua incapacidade para intimidar (Ninfomaníaca volume I e II, chama-se). Ele sabe-o, e essa assunção pode tornar-nos condescendentes para com a algo trágica figura que é o adulto-criança Von Trier. Todavia, não nos faz gostar mais do filme. Diz-nos, de qualquer forma, algo sobre o que podemos esperar hoje enquanto espectadores: estamos a olhar para regressões a la Benjamin Button. Com Bergman somos nós as crianças. E Lágrimas e Suspiros talvez seja o filme do sueco em que o medo é tocado pelo terror puro – não é nada de laborioso, pode ser a silhueta a negro, couraça S&M, de Ingrid Thulin, os olhos verdes de Liv Ullmann com que a doçura se afia em crueldade ou as impurezas no lábio de Harriett Andersson de onde saem os gritos de cancerosa – as três irmãs do filme. Bergman renova o ritual iniciático do cinematógrafo como experiência de contacto com fantasmas, coisa de que nos fomos esquecendo. Por isso todos, nostálgicos do passado e irredutíveis do presente, ouvem os gritos de Lágrimas e Suspiros como se fosse a primeira vez. O fantasma vai continuar a gritar. Não quer abandonar o mundo dos vivos. Chora por nós.

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