Distinguindo-se Ken Loach quase sempre por uma fidelidade a si próprio próxima da teimosia e por uma ética de relojoaria, porque nos seus filmes está sempre tudo no lugar que já conhecíamos, é surpreendente falar em surpresa - atenção, não há corte epistemológico em "A Parte dos Anjos", é questão de tom e de capa. E de inteligência: a capa de comédia reforça a claustrofobia em A Parte dos Anjos, que acaba por ser o mesmo filme de sempre. Uma comédia sobre os tempos de crise, eis a sorte de quatro jovens desempregados de Glasgow que têm de arranjar maneira de escapar ao destino de vendettas e violência que, se não está no sangue deles, parece traçado no seu destino. Uma comédia, e isso “para ser contraditório” com os filmes anteriores, como disse o realizador na altura da exibição do filme em Cannes - ou seja, uma forma de ser teimosamente coerente. Não é o tom de gargalhada, mas de aventura pícara que instiga no espectador um vibrante sentimento de solidariedade: a luta pela sobrevivência, agreste, de quem perdeu a auto-estima e descobre na bebida uma hipótese de galinha de ovos de ouro, o mundo dos melhores whiskies do mundo. Por momentos, a luta também é nossa neste filme social cruzado com variação proletária de heist film. E essa é a luta de Loach: por-nos a torcer pelos golpistas, que acabam com quatro garrafas para vender e, assim, ganharem fôlego para mudarem de vida. Não há que iludir: assim se reforça a claustrofobia de um mundo, a ausência de horizontes para as personagens, a violência a que não escapam. Sem nunca sentirmos que estamos a assistir ao programa habitual em desenvolvimento. Mas estamos. Chapeau!
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