Talento enorme em corpo tão frágil

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Na semana passada, os jornais ingleses davam a notícia: Vini Reilly, a alma dos Durutti Column, mítico projecto nascido na Manchester dos Joy Division que alumiou o espírito de inúmeros melómanos desde os anos 1980, estava a enfrentar graves problemas financeiros, depois de três derrames cerebrais.

As notícias surgiram depois de o sobrinho, Matt Reilly, ter deixado uma mensagem na página do Facebook dos Durutti Column, lamentando que o tio já não conseguisse tocar guitarra e exortando os admiradores a contribuírem com doações para que as suas necessidades básicas pudessem ser colmatadas. No espaço de dias foram reunidos quase cinco mil euros que o ajudaram a pagar várias despesas elementares como alimentação, água e electricidade.

No final da acção de solidariedade, o próprio Vini, 59 anos, veio agradecer publicamente, dizendo-se de alguma forma "embaraçado" com a situação: "Estou nesta situação por culpa do sistema de segurança social que demorou 18 meses a processar o meu pedido de apoio por doença", disse à BBC. "Sinto-me emocionado porque nunca tive de pedir dinheiro emprestado a ninguém, mas vou aceitar este dinheiro, proveniente de pessoas que não conheço mas que parecem gostar da minha música."

Apesar das dificuldades, e de provavelmente não poder voltar a tocar guitarra com a mesma agilidade, afirmou que não queria que lhe fossem enviados mais donativos ("E as pessoas que estão na mesma situação e que não têm ninguém que os ajude?", interrogou), ao mesmo tempo que prometeu que iria tentar compensar a gentileza dos admiradores com uma oferta musical.

É assim, Vini. Modesto e habitando a sua redoma. Ser humano singular e músico enorme, capaz de criar música nobre e afectuosa, com meia dúzia de acordes de guitarra. No final dos anos 1970 assinou pela Factory dos Joy Division, New Order, A Certain Ratio ou Happy Mondays, a editora do seu impulsionador Tony Wilson, e nos anos 1980 lançou alguns álbuns inesquecíveis (The Return Of The Durutti Column, de 1980, LC, de 1981, Another Setting, de 1982, ou Without Mercy, de 1984), que iriam multiplicar-se pelas décadas seguintes, num total de 30 álbuns. Alguns tinham bases electrónicas, como Say What You Mean, Mean What You Say (1985), outros até linhas dançantes como Fidelity (1996), mas a complexa textura da guitarra, exposta com simplicidade desarmante, era sempre o centro.

Um amigo de Portugal

Ao longo dos anos, Vini Reilly foi estabelecendo uma ligação especial com Portugal, regressando periodicamente para concertos. Começou em 1982 no festival Vilar de Mouros, seguindo-se no ano seguinte um espectáculo inesquecível na Aula Magna de Lisboa, com Vini, corpo esquio, introvertido, cara pálida, de guitarra a tiracolo, às vezes sentando-se ao piano, outras sussurrando palavras no microfone, e, atrás dele, o companheiro de sempre, o veterano baterista Bruce Mitchell, solto, descontraído, dupla memorável.

O grande responsável por essas vindas a Portugal? Miguel Esteves Cardoso, que havia habitado em Manchester, onde se tornou grande amigo de Tony Wilson e do seu protegido, Vini Reilly. Foi ele que acendeu o coração de inúmeros melómanos com textos sobre os Durutti Column. "É uma música apenas, mas como mais nenhuma que se ouviu e habitou. E todas as suas tradições e referências encontram-se fora da música rock", escrevia ele em Dezembro de 1981 no jornal Se7e, a propósito do álbum LC.

Dois meses antes, na revista Música & Som, descrevia um encontro com Vini: "Tinha-o imaginado doutro modo. Em vez desta criança excessivamente sensível e cordial, aflita com sei lá quantos problemas psiquiátricos, segurando um saco de plástico de supermercado cheio das suas caixinhas de som, imaginara um homem mais velho, um eremita de estúdios sofisticados, um guitarrista de formação clássica. Não era assim que levava a acreditar o mosteiro singelo e lindo da sua música."

Seria Miguel Esteves Cardoso a convidá-lo para gravar, em 1983, um single para a editora Fundação Atlântica, do qual viria a resultar, afinal, o álbum Amigos de Portugal. "Ele chegou aos estúdios de Paço de Arcos e gravou um álbum inteiro numa noite mágica", recorda hoje Miguel Esteves Cardoso. "Foi um momento espantoso. Eu e o Ricardo Camacho nem queríamos acreditar, ele não tinha ensaiado nada e, ali estava, música atrás de música, de seguida... Começou às nove da noite e às duas da manhã tinha um álbum pronto."

Dos tempos de Manchester, recorda ao Ípsilon "uma pessoa muito frágil e extremamente humilde", que era assistida e protegida por Tony Wilson. "Ele ia buscá-lo, tratava dele, era o bebé dele." Em 2007, quando Wilson morreu, Vini afirmou que ele era como um pai. Desde então a situação financeira, e a sua saúde, agravaram-se.

"Ele é um dos grandes", afirma agora Miguel Esteves Cardoso, lamentando o facto de o seu talento ser reconhecido por todos, menos pelo próprio. "Ninguém compreende porque é que ele nunca fez a banda-sonora de um filme, por exemplo, porque a música dele não é nada difícil, é linda, e ele é extraordinário."

Vulnerabilidade

No contexto do pós-punk, os Durutti Column eram um autêntico ovni. Ian Curtis, o malogrado cantor dos Joy Division, era fã. Em LC, Vini retribuiu-lhe a admiração postumamente com a canção The missing boy. Ao longo dos anos, de Brian Eno a John Frusciante (Red Hot Chili Peppers), passando pelos Cocteau Twins ou por Stephin Merrit (Magnetic Fields), muitos foram os que o citaram como influência. Até Morrissey, quando acabou com os Smiths, o foi buscar para ser o seu novo Johnny Marr em Viva Hate (1988).

Toda esta comoção a propósito do estado de Vini Reilly acontece poucos meses depois de ter sido editado no mercado internacional, pela primeira vez, um "álbum perdido" dos Durutti Column, Short Stories For Pauline, originalmente gravado em 1983 na Bélgica. O disco surgiu depois de Tony Wilson sugerir que Vini gravasse um álbum instrumental na linha do tema Duet, concretizado na companhia de Blaine L. Raininger, dos Tuxedomoon, mas o álbum acabou por nunca sair - apenas alguns temas foram revelados na compilação Hommage a Marguerite Duras (1985), da Les Disques Du Crépuscule.

Trinta anos depois, é uma obra intemporal, de vitalidade inabalável, marcada pelos habituais temas instrumentais delicados e por ocasionais incursões vocais, numa profusão de inspirações, onde se cruzam a clássica, o jazz ou a folk, num diálogo sobremaneira romântico entre guitarra, piano ou violino.

Como CD-bónus há um concerto captado em Bruxelas em 1981, e uma velha entrevista, onde Vini diz que existem três tipos de resposta à música: física, intelectual e emocional. "Tento incorporar as três no meu trabalho", diz ele. A guitarra, claro, domina, serpenteando por entre as notas brancas de um piano, pelas intervenções barrocas do violino e pelos ocasionais ritmos de Bruce Mitchell. Não canta muitas vezes, mas quando o faz a sua voz pálida é emocionante, conduzida por perfeitas melodias.

Nunca se percebeu porque é que esse disco não foi editado na altura, mas não custa acreditar que tenha sido o próprio a impedi-lo. Afinal falamos de um homem humilde, capaz de expor vulnerabilidade como nenhum outro no som de uma guitarra, mas que odeia a sua voz e que renega discos que outros veneram. O que fazer com uma pessoa assim, renitente até à enfermidade? Ouvir a sua música. E no contexto actual, adquiri-la.

Miguel Esteves Cardoso aconselha a última versão remasterizada do álbum Another Setting, que, para além desse disco, integra também a quase totalidade dos temas do álbum Amigos de Portugal, como Lisboa, Sara e Tristana, Estoril à noite, Menina ao pé de uma piscina e Amigos em Portugal.

Em 1981 escrevia Miguel: "Vini Reilly vive num rés-do-chão pequeno e feio, precisamente situado no meio dum quilómetro de pequenas vivendas geminadas, construídas nos anos 30 num dos bairros menos burgueses de Manchester. Vive com o seu gravador portátil de quatro pistas, a sua guitarra cor-de-rosa e uma drum-machine barata. Tem as unhas compridas e pintadas, fala com a suavidade duma criança doente e usa sandálias de plástico."

É provável que Vini ainda lá esteja. Sozinho com a sua música. E a sua música sozinha connosco, ainda melhor do que o silêncio.

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