Nada podia separar mais Yolanda Johnson de Miranda Priestly. Despretensiosa e confusa, Yolanda é uma cantora que nunca chegou à primeira linha com o grupo vocal que formou com as irmãs, e encontrou trabalho regular num programa radiofónico emitido semanalmente ao vivo de um teatrozinho do Minnesota. Sofisticada e determinada, Miranda é a rainha de Nova Iorque, editora da revista "Runway", capaz de destruir a reputação de um costureiro com um só olhar, para quem todos aqueles que trabalham com ela são meros servos às ordens de cada capricho seu. Em comum entre estas duas mulheres, a actriz que lhes dá vida em dois filmes distintos que chegam esta semana às salas: Mary Louise Streep, natural de Summit, Nova Jérsia, 57 anos, casada, mãe de quatro filhos, um Óscar de melhor actriz (por "A Escolha de Sofia", 1982, Alan J. Pakula), outro de melhor actriz secundária ("Kramer Contra Kramer", 1979, Robert Benton), mais 11 nomeações não concretizadas (cronologicamente: "O Caçador", 1978, Michael Cimino; "A Amante do Tenente Francês", 1981, Karel Reisz; "Reacção em Cadeia", 1983, Mike Nichols; "África Minha", 1985, Sydney Pollack; "Estranhos na Mesma Cidade", 1987, Hector Babenco; "Um Grito de Coragem", 1988, Fred Schepisi; "Recordações de Hollywood", 1990, Nichols; "As Pontes de Madison County", 1995, Clint Eastwood; "One True Thing", 1998, Carl Franklin; "Melodia do Coração", 1999, Wes Craven; "Inadaptado", 2003, Spike Jonze). Meryl Streep, como todos a conhecemos, é considerada quase unanimemente a maior actriz americana viva - no teatro onde começou por construir a sua reputação em meados da década de 1970 ou no cinema que dela fez a primeira escolha para papéis dramáticos difíceis ou de prestígio. Bette Davis considerava-a a sua herdeira natural tanto quanto Katharine Hepburn a achava calculista e tecnicista, e, em rigor, há muito quem não goste de Streep por ver nela um extraordinário talento mimético que, por vezes, ofusca o trabalho de actriz (os sotaques que muitas das suas personagens arvoram são um bom exemplo disso; recorde-se o pesado sotaque dinamarquês de Karen Blixen em "África Minha" ou o australiano de Lindy Chamberlain em "Um Grito de Coragem"). Outros apontam-lhe a inconsistência das suas escolhas no cinema, não raras vezes indignas do seu talento (o "Breve Encontro" nova-iorquino de "Encontro com o Amor", 1984, Ulu Grosbard, a comédia de efeitos especiais em "A Morte Fica-lhes Tão Bem", 1992, Robert Zemeckis, ou fitas menores como "Duas Irmãs", 1996, Jerry Zaks, ou "Terapia do Amor", 2005, Ben Younger).
Mas Streep - como Judi Dench que faz questão de estar onde ninguém a espera - defende ardentemente as escolhas que faz. Quando lhe perguntam como pode desperdiçar o seu talento em comédias, ela confessa adorar fazer comédia "mas ninguém me dá hipótese de o fazer". Quando lhe chamam a maior actriz viva, diz "que isso mata qualquer um, como é que conseguimos sequer começar a pensar noutra personagem quando nos dizem que somos a melhor coisa que alguma vez subiu a um palco?". Quando lhe falam da dificuldade de obter papéis para uma actriz mais velha, ela responde que "disseram em tempos que os presidentes dos estúdios não gostam de escolher actrizes principais que lhes lembrem a primeira mulher".
A verdade: apesar das tais onze nomeações não concretizadas para os Óscares de melhor actriz; e apesar de ter declarado, ao receber o Emmy pelos múltiplos papéis que representou na mini-série "Anjos na América" (1993, Mike Nichols), que "há dias em que me acho sobrevalorizada, mas hoje não é um deles", Streep não se preocupa grandemente com as honrarias. Para ela, a família vem primeiro: organizava o trabalho de modo a poder passar metade do ano em rodagens e a outra metade em Nova Iorque com a família, chegou a mudar-se para Los Angeles durante quatro anos e meio no início da década de 1990 para dar alguma estabilidade à sua vida familiar, hoje prefere rodar em Nova Iorque e ir alternando os seus filmes com prestações teatrais (actualmente, representa a "Mãe Coragem" de Brecht, numa tradução do dramaturgo de "Anjos na América", Tony Kushner).
Acima de tudo, Meryl Streep prefere pensar em si como uma intérprete de uma partitura alheia, alguém que está ao serviço do texto (o que a deixou momentaneamente desorientada quando Michael Cimino e Robert Benton lhe pediram para ajudar a dar espessura às suas personagens em "O Caçador" e "Kramer Contra Kramer", dando-lhe carta branca para alterar o texto e improvisar diálogos) mas explora a personagem a partir dele. Essa atitude de construção da personagem para lá do texto fica provada à exaustão nos dois papéis que esta semana chegam aos nossos écrãs. A Yolanda Johnson de "A Prairie Home Companion - Bastidores da Rádio", de Robert Altman, vê-a integrada, sem vedetismos nem estatutos, no habitual trabalho de "ensemble" dos mosaicos do realizador americano, aqui trabalhando com o peculiar sentido de humor dos programas de rádio semanais do humorista Garrison Keillor. Emparceirada com a "irmã" Lily Tomlin e a "filha" Lindsay Lohan numa das melhores tramas que atravessam o filme, Streep mostra mais uma vez os seus dons de comediante como uma cantora à beira de um ataque de nervos por enfrentar um futuro incerto numa fita com um aroma perverso de "testamento" cinematográfico, impondo-se sem nunca se elevar acima de uma colecção de "bonecos" memoráveis (como os fantásticos "cowboys" cantores de John C. Reilly e Woody Harrelson).
o patinho feio e o lobo mau.Mas é a Miranda Priestly de "O Diabo Veste Prada", de David Frankel, que é o papel de luxo para uma Streep em absoluto controle do seu talento. Numa entrevista, a actriz recordou um dos ensinamentos das suas aulas de arte dramática: como é que se representa uma rainha? Quase todos responderam, através do porte e da autoridade - mas a resposta dos professores foi outra: através do modo como o ambiente muda quando uma rainha entra numa sala. É uma lição que Streep aplica rigorosamente à sua abordagem de Miranda Priestly, personagem que só está presente, no máximo, em metade do tempo de projecção de "O Diabo Veste Prada", mas que o domina por completo do primeiro ao último fotograma.
Adaptado do "roman à clef" de Lauren Weisberger ambientado no mundo apenas aparentemente glamoroso das revistas de moda nova-iorquinas, "O Diabo Veste Prada" é um conto-de-fadas moderno sobre o patinho feio (ler: uma recém-formada em jornalismo vinda dos confins do Midwest) que se torna num cisne elegante (ler: a super-secretária capaz de tudo, até de arranjar o manuscrito do próximo livro de Harry Potter). (Nem por acaso, a actriz escolhida é Anne Hathaway, revelada como a plebeia que se descobre princesa em "O Diário da Princesa", 2001, Garry Marshall.) No entanto, é também a história da relação sado-masoquista que lhe permite passar de um a outro estatuto: com a patroa vinda dos confins do inferno. Nas mãos impiedosas e muitas vezes gratuitamente cruéis de Miranda, Andy Sachs ganha a feminilidade e a desenvoltura (não apenas física) que nunca teve, mas, sendo isto um conto (de fadas) moral, o preço desse pacto quase faustiano é a sua integridade e, vá lá, a sua identidade.
Que este conto moral básico se aguente no balanço como uma comédia dramática fluida e agradável de seguir começa por ser mérito de David Frankel (com vasto currículo na televisão, sobretudo na série "O Sexo e a Cidade", a cuja imensa legião mundial de fãs da série o filme se dirige), que mantém um ritmo diabolicamente eficaz e, depois, a um trabalho certeiríssimo de "casting" que demonstra mais uma vez por que é que Stanley Tucci é um dos mais notáveis actores secundários americanos e revela uma surpresa chamada Emily Blunt.
Mas é Meryl Streep quem faz "O Diabo Veste Prada" passar de mero entretenimento descartável à medida de uma noite frente ao DVD a fita que vale a deslocação ao cinema. A sua Miranda é um prodigioso trabalho de actor, tanto mais extraordinária quanto se trata do exacto oposto de uma "performance" visível, evidente: Streep constrói-a de dentro para fora, apostando na postura, no tom de voz, no olhar, na expressão facial - tudo aquilo que é mais difícil para uma câmara registar. É uma interpretação absurdamente notável pelas nuances que explora e revela no que podia ser um papel quase unidimensional, quase superficial (é espantosa a sua cena de roupão no hotel, em que Streep consegue dar uma dimensão humana, trágica a Miranda sem precisar de mudar um milímetro a linguagem facial que lhe construiu) - e que prova como não há maus papéis, há apenas más actrizes. E Meryl Streep é, para muitos, a maior actriz de cinema viva - mesmo que não goste muito desses epítetos.