Brad e Angelina falam, então, para o espectador sobre a sua (das personagens) relação, que atravessa a crise dos "mais ou menos seis anos" (mas não foi o "affair" deles, actores, que, diz-se, aí começou, não foi o casamento de Brad com Jennifer Aniston que aí terminou?).
Há um embaraço visível entre as duas vedetas, nessa cena, mas pode ser afectação, instrumento de construção da personagem. Doug Liman, o realizador, assegura que não, e reclama para si próprio o sentido de "timing": aproveitou o desconforto que viu manifestar-se nos actores, às primeiras horas de uma manhã de rodagem, sem nunca terem falado um com o outro e logo terem uma cena de confissão matrimonial pela frente e logo verem-se a braços com a química que despertou neles...
Seja como for, seja assim ou de outra forma... é difícil ver "Mr. and Mrs. Smith" apenas por aquilo que lá está. O "caso" do hipotético romance entre os intérpretes insuflou esta comédia conjugal com forma de "thriller" de acção com um potencial especular, como se cada cena ficasse investida da capacidade de reflectir várias outras, como uma pequena alucinação de estilhaços. E é assim que um filme que nem sequer parte de uma ideia inédita - para além de aflorar o assalto conjugal do filme homónimo de Hitchcock, de 1941, este casamento que esconde "killers" profissionais que um dia recebem como encomenda matarem-se um ao outro cruza "A Guerra das Rosas", de Danny de Vito, com "A Verdade da Mentira", de James Cameron - e que nem vai ao fundo ou que nem sobe às alturas como cada uma dessas referências - sem a crueldade devoradora, autofágica, de DeVito; sem o lirismo sempre em "background" no cinema de Cameron - ganha imerecida visibilidade?
Talvez. Mas não deixa de ser sedutor uma espécie de descontrole no produto industrial, uma espécie de vírus de megalomania, que aliás tem sido responsável por desastres hollywoodianos - "Ishtar" (Elaine May, 1987), "Hudson Hawk" (Michael Lehmann, 1991)... -, filmes que também sobrepõem a comédia e o filme de acção, com intervenção do burlesco, e que não revelando nenhum toque de génio de quem os fez, acabam por ser, voluntaria ou involuntariamente, a "pedra na engrenagem" num formato coriáceo. E há também outro aspecto, e esse juraríamos que já lá estava, antes do "affair": uma componente auto-reflexiva, diríamos mesmo melancolicamente auto-reflexiva.
Voltemos a ter, então, a cena inicial, do par no consultório, como referência, e todas as variações dela - vejam, é como se Brad e Angelina se confessassem. E ainda aquela sequência em que o senhor e a senhora Smith, no meio de tonitruantes explosões, roubam as roupas de um par de manequins em exposição para conseguirem passar despercebidos (é um achado, e é um "insert" de ironia, porque a "guerra dos sexos", como alguém escreveu, tem aqui a forma de uma "guerra das poses" - arriscaríamos dizer que há um momento de consciência no autismo das estrelas).
Num filme que é sempre formatado quando a "comédia conjugal" cede (e quase sempre cede) ao "thriller de acção", instalam-se a espaços momentos de suspensão, como um desejo de normalidade, como um resgate de individualidade e humanidade. Como se as duas mais desejáveis criaturas do estado actual do "star system", que são também das mais narcisistas, encerradas no seu boneco (Pitt cristalizou-se como manequim do "cool"; a intensidade de Jolie tem o desenho de uma angular heroína de videojogo), se mostrassem dispostas para a auto-ironia. E para a perda - é que quando parece que estão a olhar para nós, estão a olhar, em público, para si próprios.
Como Doug Liman não é nem Howard Hawks nem Billy Wilder, a "comédia dos sexos", tal como o cinema clássico americano a fabricou, é agora mais uma quimera do que realidade. Mais uma razão então para, quando o barulho se silencia, "Mr. and Mrs. Smith" ser invadido pela melancolia.