Mr. Navorski goes to New York

"Terminal de Aeroporto" constitui-se, em simultâneo, como o prolongamento natural de movimentos anteriores e como mudança de rumo, se quisermos, como explanação do isolamento: Viktor Navorski, o turista de uma imaginária república de Leste, Krakhozia (reminiscente dos reinos de opereta de inícios do século XX), chega ao território de passagem para os Estados Unidos, o "hall" do aeroporto, e vê-se apanhado numa teia de legalidades que o considera como inaceitável - sem passaporte e sem nacionalidade, vagueando pelo espaço da interdição numa estranha estratégia de sobrevivência.

Porque em vez de um modelo próximo da ficção científica, como em "E.T." e "A.I.", se confronta com uma lógica de aplicação de um "fait divers", Spielberg muda as agulhas do fantástico para a construção de uma espécie de parábola da América e, nesse sentido, "Terminal de Aeroporto" funciona como um anti-E.T.: permanece uma deliberada exploração do "pathos" spielberguiano, mas contrapõe-se-lhe um sentido aguçado do cómico de circunstância, que, a espaços se cruza com a comédia romântica, pela introdução inteligente de um segmento romântico na personagem de Catherine Zeta-Jones, uma hospedeira mal-amada, jogada entre malogradas aventuras e a inocência cavalheiresca de um herói capriano (o adjectivo nos tempos áureos de Hollywood era "capraesque"), fora do tempo e do mundo.

E chegamos a um dos pontos essenciais desta narrativa ilustrativa do melhor do idealismo americano: a sua radicação no mundo de Frank Capra, nos seus heróis transparentes e defensores da pureza dos ideais democráticos, forjados nas contradições da Depressão e do "New Deal" rooseveltiano.

Que sentido fará, no entanto, neste novo século, a revisitação a uma fábula de contornos caprianos? Mera posição nostálgica? Sobrevivência a todo o custo de um modo de produção em crise? Repetição de um esquema de fácil reconhecimento? A questão é bem mais complexa do que parece: "Terminal de Aeroporto" parte de um outro subterfúgio bem caro ao cinema americano clássico, o da construção de um microcosmos representativo, em que as personagens se movem dentro de óbvias condicionantes, de que um filme como "Grande Hotel", de Edmund Goulding (chamam-lhe alguns críticos, "porte-manteau") constitui uma das matrizes fulcrais. Tudo decorre num cenário único, concentrando a acção e a evolução das personagens, de modo a construir o que acaba por constituir-se em gigantesca metáfora da América da emigração e da oportunidade. Por isso, é tão importante que o protagonista venha de um país supostamente resultante do desmoronamento do império soviético, rival dos tempos conturbados (e passados) da Guerra Fria. Por isso, também, os seus cúmplices próximos, na estratégia de resistência e sobrevivência ao sistema, são um indiano (fugido às consequências de um crime fortuito), um hispânico e um negro, na construção de um "melting pot" exemplificativo, que ainda não atingiu a autonomia de uma opção multicultural.

Parece simplista, mas não é: a personagem de Viktor Navorski, interpretada com camaleónica contenção por um Tom Hanks em grande forma (e com um trabalho sobre o sotaque de fazer inveja a Meryl Streep), socorre-se de citações do burlesco, pelo que a sua máscara faz lembrar Buster Keaton; os "gags" da queda dos passageiros em trânsito no chão molhado conferem, à "pequena tragédia" do homem que não pode abandonar o território "neutro" do aeroporto, inusitados contornos cómicos; os jogos entre os quatro amigos, apostando os objectos abandonados, como o simbólico peixe embalsamado, colocam a tónica num terreno quase onírico de total desfuncionalização do drama humano e das suas contingências.

um spielberg político? E, no entanto, uma leitura imediata a fazer de "Terminal de Aeroporto", colocando, inclusive, a recuperação de Capra ao serviço de uma actualização de uma fábula anti-sistema, tem um cariz político: o responsável pela segurança do aeroporto representa o poder discricionário, Navorski confronta-se com um burocrático labirinto kafkiano, em que a América funciona ao invés da sua própria imagem de país de acolhimento, enquanto espaço de restrição e de exclusão.

Dirão os mais cépticos a esta parábola política que Spielberg não é um cineasta político, diluindo todas as implicações mais incómodas numa adesão sem limites a uma personagem simpática e tipificada. Contudo, se é verdade que o próprio objectivo da personagem de recolher a assinatura do músico de jazz que faltava para cumprir a vontade paterna, aponta para uma ficcionalidade não empenhada, não pode ignorar-se que a personagem de Dixon, o inspector da alfândega, encarna o sistema no seu pior: o episódio do russo que apenas consegue transportar os remédios, dizendo que se destinam ao cão e não ao pai, destaca a importância do humano, para além do burocrático cumprimento da lei. A este nível, o filme acaba por intervir politicamente nos tempos em que a "correcção política" vazia e descontextualizada parece imperar. Esta América fechada e intransigente, obstinada em "destruir" o indivíduo que não consegue integrar e "digerir" vai contra todas as ilusões do "sonho americano".

Poderá ler-se "Terminal de Aeroporto" como um conto de fadas, poderá obstar-se a pequenos problemas de argumento, como a extrema facilidade de Viktor Navorski aprender inglês, poderá até contestar-se a sua eficácia política imediata. Não pode negar-se-lhe a perfeição da "mise-en-scène" e uma enorme força para questionar o cinema como "medium" e o papel dos Estados Unidos como terra prometida.

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