O contrário do Cinema

Duma certa maneira, a frase de Duras tem um certo valor literal que vai para lá da mera contra-provocação. Sobre o facto de não ser um filme "para ser visto" podia-se elaborar interminavelmente, em particular sabendo que Duras viria a fazer um "filme a negro", "L?Homme Atlantique" (1981), ou tendo por base a utilização posterior da banda de som de "India Song" noutro filme, "Son Nom de Venise dans Calcutta Desert" (1976). Mas se esta última foi provavelmente uma experiência única em toda a história do cinema, não é por aí que se atinge o que faz de "India Song" um filme único (enquanto o vemos, é irrelevante saber ou não o que aconteceu depois à sua banda sonora).

"O contrário do cinema": por aí aproximamo-nos. É evidente que, enquanto processo técnico e artístico, o cinema não tem "contrário", é o que é, todas as variações são minimizáveis. Mas se o encararmos pelo lado da tradição, técnica e artística, cristalizada por esse processo, aí sim, é mais fácil encontrar o "contrário do cinema" que "India Song" personifica. Quase 50 anos depois da introdução do sonoro, o filme de Duras vinha lembrar uma coisa esquecida logo a seguir a 1927: que, no cinema, a imagem e o som não nascem juntas, são fixadas e reproduzidas em bandas diferentes. E que, nesse sentido, não há nada de "natural" (apenas de "naturalista") na correspondência directa entre uma imagem e um som - ou por outra, que a "natureza" do cinema consiste nessa divisão (e que portanto, todas as imagens são "mudas" e todos os sons são "cegos", como a experiência de "Son Nom de Venise..." parece confirmar). É o que dizia Renoir, quando preconizava que enquanto a banda de imagem dizia "eu amo-te", a banda de som devia dizer "eu odeio-te": o cinema como encontro de dois (eventuais) opostos, unidos por uma relação que, no limite, é da mais radical contraditoriedade.

"India Song" é, nesse sentido, o "contrário" do cinema, levando a oposição som/imagem (o que as imagens escondem e os sons revelam, e vice versa) para muito mais longe do que uma articulação campo/fora de campo: há um território comum, mais mental do que físico, que é o da ficção, mas uma coisa e outra, numa espécie de cúmulo da "desnaturalização", vêm de tempos radicalmente diferentes.

Também aí, ou sobretudo aí, a ideia de "contrário" impõe-se. Porque se o cinema é um "presente" revivido a cada projecção, uma "arte do presente" que se eterniza perpetuamente, então "India Song", que utiliza o som para atirar as suas imagens para o passado, que as faz desfilar como o "filme" fragmentado e assombrado projectado por uma memória alucinada, então "India Song" é o (único?) filme inteiramente conjugado no passado, o filme que vemos sabendo sempre que não estamos lá, e que não estamos agora (e portanto, como diria Duras, o "filme que não vemos"), onde não há nenhuma reconstituição porque nenhum simulacro de presente é possível (ou mataria o filme).

Uma concepção assim de um filme como dois blocos distintos, eventualmente tocando-se um ao outro, mas distintos, pressupõe um singularíssimo casamento entre o primitivo e o moderno. Na impenetrabilidade da banda de imagem, na sua "mudez", e na "camada" de som que lhe é aplicada por cima, tem-se a impressão de que "India Song" podia ter vindo directamente dos tempos finais do mudo ou dos princípios do sonoro (como por exemplo, num universo completamente diferente, o "L'Âge d'Or" de Buñuel, onde também é difícil dizer se é a imagem que "puxa" pelo som se a inversa). Por outro lado, algumas das mais interessantes experiências do cinema moderno parecem filiar-se no filme de Duras; por exemplo, os filmes do francês Jean-Claude Rousseau (como o magnífico "La Vallée Close"), com as suas bobines de super 8 coladas umas às outras de cabo a rabo e o som como bloco distinto, também com o propósito (as semelhanças temáticas existem) de recentrar o passado e o presente.

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