"De Olhos Bem Fechados" é uma comédia conjugal, é um filme de terror é uma fantasmagoria. Cruise, Kidman, Kubrick. Sob o olhar dele, os corpos deles, os mais desejados da terra, são mais frios que a própria morte.Era este o prometido "1999, Odisseia Erótica?". Não há nada para espreitar, terão concluído os espectadores nos Estados Unidos, onde, após as movimentações da semana de estreia de "De Olhos Bem Fechados", as bilheteiras baixaram para metade e a obra que tinha sido a mais esperada dos últimos anos, interesse aguçado por rumores e titilações a propósito da intimidade do par Nicole Kidman/Tom Cruise supostamente exposta no ecrã, começou a perfilar-se, na América, como o primeiro desastre comercial de Kubrick depois de "Barry Lyndon".
Segue-se agora a Europa, hipótese de redenção comercial, onde o americano Kubrick tinha escolhido o seu refúgio e onde o cineasta Kubrick tinha os maiores seguidores. Estes poderão dizer: "De Olhos Bem Fechados" é um filme absolutamente kubrickiano, como kubrickiano é o sabor a decepção ou a frustração que pode deixar. Stephen King, o autor de "Shining", disse um dia sobre essa adaptação que o realizador fez de uma novela sua, que parecia um belíssimo carro sem hipóteses de condução; que Kubrick tinha querido fazer a súmula de um género, o filme de terror, sem perceber nada das regras. Kubrick também quis resumir o filme de guerra ("Full Metal Jackett") ou o filme de ficção científica ("2001- Odisseia no Espaço") e perante quase todos os seus gestos totalitários era impossível, de facto, não sentir a frieza da máquina cinematográfica, a autoridade do visionário afastado da experiência vivida.
Também é assim "De Olhos Bem Fechados"? Desta vez, Kubrick deixou, como última obra, uma pequena peça de câmara, adaptada de uma novela de Arthur Schnitzler ("Traumnovelle"), transposta para a Nova Iorque de hoje, nas vésperas de Natal. Gritaram já os detractores: esta Nova Iorque não existe - de facto é cenário, o filme foi rodado em estúdio em Londres; é falsa esta Greenwich Village que serve de palco à noite branca de um médico, William Harford (Cruise), que sai de casa depois de ter ouvido da mulher, Alice (Nicole Kidman), a revelação de uma fantasia de adultério. Não há prostitutas assim como as do filme, continuaram os detractores, Kubrick vivia protegido na sua mansão inglesa, o que é que ele pode perceber da noite e de Nova Iorque? Mais: seria um filme sobre o sexo e o desejo realizado por alguém com evidentes sinais da idade, ou que não se interessava sobre o assunto ou, pelo menos, o suficiente para ultrapassar os clichés. Datado, disseram também, anacrónico, e provavelmente inacabado, dando a ideia de que a morte impediu o realizador de limar a montagem e a duração de certas cenas - de qualquer forma, "fim" não era palavra para ele, uma vez que, por exemplo no caso de "Shining", fez alterações de montagem já o filme estava nas salas.
Para responder à pergunta, sim, "De Olhos Bem Fechados" é um objecto cerebral. Sim, Nova Iorque, e tudo o mais, é cenário na cabeça de Kubrick. Sim, filme de final de vida ou de velhice - o que não quer dizer testamento. Mas, com todas as imperfeições, provavelmente por causa delas, é dos filmes mais frágeis e tristemente humanos de Kubrick.
Filme fracassado? Mais um filme onde Stanley Kubrick, o maníaco do controle e o perfeccionista, expõe a inevitabilidade do (seu) fracasso. E da impotência, aquilo que ficava connosco depois de vermos alguns dos seus filmes. Olhem para a personagem de Tom Cruise. Muito se falou a propósito do facto de Kidman e Cruise, ao passarem mais de um ano das suas vidas em rodagem, terem praticamente vivido no cenário que servia de quarto e casa para as suas personagens. Kidman escolheu, ela própria, os livros para pôr nas estantes, espalhou dinheiro em cima das mesas como o marido faz em casa e colocou os objectos de maquilhagem e as roupas como ela faz em casa. Mais íntimo, ainda: foi no espaço de Cruise que foram penduradas as telas pintadas por Christine Kubrick, mulher do realizador.
William Harford/Cruise como projecção de Kubrick? Harford é colocado à deriva na noite novaiorquina pelos fantasmas de adultério que a mulher lhe revelou. Quer vingar-se deles e poder, também ele, fazer o seu filme e vivê-lo. Como se fosse Dorothy a querer ir para o mundo de Oz. "O Feiticeiro de Oz" é motivo obsessivo - e bastante irónico - logo desde o início, quando duas "top models" convidam o americano tranquilo que é Harford a ir com elas até ao outro lado do arco-íris. "Rainbow" ("Arco-Íris") chama-se, aliás, a loja que aluga fatos de fantasia onde Harford se prepara para o momento culminante do seu périplo nocturno, uma orgia mascarada - se fosse no filme com Judy Garland, seria este o momento em que Dorothy punha os sapatos vermelhos. Só que em vez de Oz, Harford vê desfilar um cortejo de máscaras petrificadas (a sequência na loja dos fatos de fantasia é uma terrível visão de um eclipse, um inferno onde o humano se cristalizou em manequins) e vai perceber que há uma ordem superior que frusta o desejo e a vontade. Um maquinismo da ordem da ilusão que deixa ficar em Harford o sabor do logro. É esse - ilusão e fracasso - o programa de "De Olhos Bem Fechados". Foi assim que se olhou Stanley Kubrick.
Um filme que sonhaNunca sabemos o que é fantasiado ou o que é vivido pelas personagens. É um "filme-sonho", ou um filme que sonha (de olhos bem fechados), e é perturbante a forma como o espectador pode ser atirado para um espaço alucinante de memórias e projecções fantasmáticas de anteriores obras do cineasta. De "Shining", por exemplo, filme que "está" em todos os corredores dos prédios por onde deambula Tom Cruise; que está nos halos de luz e na inexpressividade de todos aqueles que cruzam o ecrã como se fossem variações a partir do lúgubre "barman" dessa obra que adaptava um livro Stephen King. Também está lá "2001- Odisseia no Espaço", nessa Nova Iorque de papelão, espaço mental onde os exteriores são tão artificiais como os interiores, universo hermeticamente fechado a deslizar silenciosamente com os representantes de uma humanidade em perda. Parece Kubrick a reequacionar a sua obra com um forte sentimento de perda e isso torna "De Olhos Bem Fechados", ao contrário de outros trabalhos do cineasta, um filme habitado. Pela humildade desta confissão de perda e de ausência de um artista que se isolou da vida com a sua obsessão (os planos "reais" de Nova Iorque, por exemplo, são apenas imagens de ligação, parecem mais falsos do que o cenário e é como se não fossem gerados por um olhar); pela forma como a criação é mostrada como o refúgio e o inevitável inferno do homem. Os cenários desta estufa não dizem outra coisa: todos os espaços se equivalem, parecendo sempre o mesmo - o labirinto, outra vez?; todas as árvores de Natal (é lúgubre e fétida esta árvore de Natal de Kubrick) também se repetem como se fossem a mesma. O brilho fátuo das luzes é mortal. É a obra mais "ophulsiana" da carreira do cineasta, mais uma razão para ver "De Olhos Bem Fechados", projecto que data do final dos anos 60, como um dos mais pessoais do autor - Max Ophuls era dos cineastas que Kubrick mais admirava e, não por coincidência, também adaptou uma novela de Schnitzler, "La Ronde", filme também sobre a circulação do mal e sobre o sexo.
E o sexo em "De Olhos Bem Fechados"? Frio e assépticoÉ possível especular sobre as razões que terão levado à escolha de Tom Cruise e Nicole Kidman - numa das primeiras versões do projecto Kubrick tinha querido Woody Allen para a personagem do médico. Faz sentido, com ou sem jogada de "marketing", ver na utilização do casal um jogo de "mise-en-abîme": expôr a sua intimidade enquanto se expõe a das personagens. De qualquer maneira é impossível não pensar que sempre que alguém tentou espiolhar a vida íntima deste casal deparou com um "glamour" frio e asséptico. Não se sabe se foi isso o que Kubrick também viu em Tom e Nicole, mas a verdade, e sem ironia, é que a menos impressiva prestação de Cruise (se compararmos com a forma como Kidman se entrega à personagem) cola-se à impotência da personagem. Afinal, não são os corpos mais desejados da terra? Até com eles, o sexo pode ser mais frio do que a morte. Kubrick despe-os com tristeza - despe-a, para ela vaporizar as axilas -, protegendo o seu medo que sente pela carne desses corpos com néons azuis e tonalidades clínicas. Nas recentes biografias de Stanley Kubrick é tempo de desconstrução do mito. O eremita, o obsessivo perfeccionista e o misantropo, dizem as memórias mais recentes, era afinal delicado, demasiado humano. O actor Matthew Modine, por exemplo, ao lembrar-se da rodagem de "Full Metal Jackett", recordou Kubrick como alguém que "se tinha um lado Rasputine, tinha também um lado Pai Natal, alguém que apetecia abraçar". É durante uma noite de Natal que decorre a fantasmagoria chamada "De Olhos Bem Fechados". É no cenário tristemente feliz e plastificado de uma loja de brinquedos que marido e mulher, sem terem conseguido transformar o adultério em acto mas derrotados pelos fantasmas dele, prometem recomeçar de novo. "Lets fuck", diz ela, referindo-se ao que é irremediável. Mesmo que não se vá para além da intimidante admiração perante os mais "perfeitos" filmes de Kubrick, pode-se ser irremediavelmente tocado por este "imperfeito" "De Olhos Bem Fechados".