Há uma nova linguagem política quando falamos de democracia?
Falamos de xenofobia, nacionalismo e populismo como se fossem hoje uma versão soft dos radicalismos extremos que várias vezes destruíram a Europa.
Por que razão voltámos a ter necessidade de qualificar a democracia, acrescentando-lhe a palavra liberal? A resposta é relativamente simples. Pela primeira vez desde há muito tempo, o conceito de democracia iliberal voltou a entrar em cena, não em paragens longínquas mas dentro da nossa própria casa. Não é um conceito novo. As academias sempre lidaram com ele. Há uma longa lista de ensaios sobre o que de fundamental distingue as democracias liberais das iliberais.
Quando, nos anos 1990, a democracia ganhou o direito de ser uma palavra de uso universal, esta distinção tornou-se mais visível. Fareed Zakaria publicou em 2003 uma obra de referência, cujo título era exactamente The Future of Freedom: Illiberal Democracy at Home and Abroad. Já antes, em 1997, escrevera um longo ensaio na Foreign Affairs levantando a mesma questão a partir de uma reflexão sobre o regresso do nacionalismo agressivo ao território europeu. Citava Richard Holbrook, o grande diplomata americano que negociou a paz na antiga Jugoslávia, em 1996, na véspera das primeiras eleições na Bósnia. “Suponhamos que as eleições são declaradas livres e justas e que os que forem eleitos sejam racistas, fascistas, separatistas, que se oponham à paz e à integração.” É este o dilema. “Os regimes democraticamente eleitos podem sistematicamente ignorar os limites constitucionais do seu poder e retirar aos cidadãos os seus direitos e as suas liberdades fundamentais.”
“Do Peru à Palestina, da Serra Leoa à Eslováquia, do Paquistão às Filipinas, vemos a ascensão de um fenómeno perturbador na vida internacional — a democracia iliberal.” Sabemos o que as distingue: o liberalismo constitucional, ou seja, a garantia do império da lei, da protecção dos direitos inalienáveis dos indivíduos e o respeito pelas minorias. Foi assim que nos habituámos a viver. Ao longo da História europeia, o liberalismo conviveu com regimes que não eram democracias. Na História recente do pós-Guerra Fria, o dilema das democracias nascentes foi precisamente a ausência de instituições e de regras que limitassem o poder dos governos e garantissem a liberdade dos cidadãos.
A 11 de Novembro de 2016, o historiador britânico Timothy Garton Ash escrevia na sua coluna do Guardian: “Na Rússia de Vladimir Putin, temos algo muito próximo ao fascismo. Na Turquia, Recep Tayyip Erdogan está a atravessar rapidamente a linha entre a democracia iliberal e o fascismo, enquanto a Hungria de Viktor Orbán já é uma democracia iliberal. Na Polónia, França, Holanda, Reino Unido e Estados Unidos, vemo-nos constrangidos a defender a fronteira que separa a democracia liberal da iliberal.” O historiador de Oxford vai mais longe do que a maioria dos académicos está (ainda) disposta a ir, ao aproximar os regimes da Rússia e da Turquia do fascismo, uma qualidade acima do autoritarismo. Putin anulou qualquer oposição, apelando ao sentimento patriótico contra o inimigo externo. Erdogan, depois de ter alterado as leis turcas no sentido de uma democracia liberal (para ir ao encontro das exigências europeias), enveredou pelo caminho oposto. Está no poder há 17 anos. O seu objectivo é rever a Constituição para concentrar o poder nas suas mãos, criando um regime presidencialista, e acabar definitivamente com o legado kemalista de uma sociedade secular. Está prestes a conseguir este objectivo. Voltou a encarcerar os que punham em causa a “identidade turca” e aprovou uma lei que criminaliza quem o insulte. Aproveitou um alegado (ou desastrado) golpe de Estado no Verão passado para acabar de vez com os pólos de contestação ao seu poder no aparelho de Estado, na imprensa, nos tribunais e no Exército. A Europa não sabe o que fazer com ele. E ele sabe que poderá chantagear a Europa graças ao lugar do seu país na NATO ou à gestão que fizer dos refugiados sírios que estão no seu território.
Não se trata, como muitos temiam, da incompatibilidade entre o islão e a democracia. Trata-se, pura e simplesmente, da tentação totalitária numa altura em que a Europa está em crise e as democracias liberais não são imunes ao nacionalismo e ao populismo. Mais duas palavras que entraram no léxico do debate europeu, à procura do seu lugar, depois de terem sido fechadas no baú da História depois da II Guerra Mundial. A União Europeia já foi considerada uma poderosa e eficaz máquina de democratização, através da atracção que exercia sobre os países que queriam aderir ao clube. Hoje, a crise retirou-lhe o brilho e a tendência inverteu-se, desafiando-a do seu próprio interior.
Contra-revolução cultural na Europa
É justamente na referência exaustiva do historiador britânico aos países da União Europeia onde, de novo, é preciso defender a democracia liberal que se encontra a razão por que sentimos hoje a necessidade de a classificar. Na Hungria, Orbán anunciou oficialmente em 2014 que o seu país tinha instituído uma “democracia iliberal”. Prometeu “uma contra-revolução cultural” na Europa, assente na “defesa da nação, da família e do cristianismo”. Quer, nas suas próprias palavras, construir o Estado húngaro “numa base sólida que fez do país uma parte da Europa cristã desde há mil anos”. É assim que justifica a rejeição das directrizes europeias sobre a distribuição dos refugiados. O seu primeiro objectivo, três anos antes, foi substituir a regra de quatro quintos necessária para alterar a Constituição por outra que apenas exigia dois terços. A revisão foi feita, atingindo em primeiro lugar os tribunais e a imprensa. A Comissão Europeia, enquanto guardiã dos tratados, iniciou um processo de negociação para que a nova Lei Fundamental não infringisse os princípios que sustentam a União Europeia. Algumas coisas foram corrigidas, mas o problema foi tratado como uma mera questão jurídica ou técnica, que se resolve sem alarido. Não é assim. É um problema constitucional e político que não pode passar à margem do Conselho Europeu. O partido de Orbán faz parte do PPE de Angela Merkel.
Seguiu-se a Polónia, onde a limitação dos poderes do Tribunal Constitucional levada a cabo pelo novo Governo do Partido da Lei e da Justiça, nacionalista e ultraconservador, está na base de outra negociação, ainda inacabada, entre Varsóvia e Bruxelas. Varsóvia não vai aceitar as recomendações de Bruxelas, argumentando que nenhum órgão não eleito da UE tem mais poderes do que a livre escolha dos polacos. Não é isso que consta nos tratados europeus, também eles a base constitucional da integração europeia que a Polónia ratificou. Mais uma vez, o Conselho Europeu tem preferido olhar para o lado. Poder-se-ia pensar que o problema se restringe às novas democracias do Leste, herdeiras de um passado comunista que deixou marcas profundas. Seria um erro. O historiador de Oxford lembra que também o título de primeira página do Daily Mail denunciando os três juízes britânicos que decidiram a favor da consulta ao Parlamento sobre o "Brexit" como “inimigos do povo” é uma clara manifestação de populismo da mesma espécie. Erdogan respondeu às críticas de Bruxelas sobre a “linha vermelha” que tinha largamente ultrapassado com a repressão dos media, dizendo simplesmente: “É o povo que traça as linhas vermelhas.” “O que estamos a ver em todos estes populismos nacionalistas é uma ideologia que proclama que a vontade expressa directamente pelo povo anula todas as outras fontes de autoridade”, escreve Garton Ash.
Inventar o passado para justificar o presente
Também reaprendemos na tragédia dos Balcãs como os povos “inventam” o seu próprio passado para justificar o presente. A Europa do século XIX foi isso mesmo. Por vezes, parece que está de regresso. O Velho Continente, que viveu fora da História nas décadas que se seguiram à guerra, deslegitimando o nacionalismo, negando a geopolítica, construindo um espaço de “paz perpétua” entre democracias, vê-se hoje confrontado com o seu regresso. A Europa “foi construída para acabar com o nacionalismo. É ela hoje que o alimenta”.
Há, obviamente, algumas precisões que é preciso fazer para distinguir claramente a legitimidade da agenda política de um governo de cor nacionalista como o polaco, que tem direito a governar em qualquer democracia liberal, e a supressão de regras institucionais em que assenta o Estado de direito. Garton Ash faz essa distinção noutro dos seus textos sobre as eleições polacas de 2015: são os “pilares da democracia que estão a ser destruídos”. O Tribunal Constitucional foi posto sob controlo de juízes amigos do Governo e a televisão pública, “de aborrecida e ligeiramente pró-governamental, transformou-se num órgão de propaganda do PiS”.
Estes são os casos mais óbvios. No entanto, a ideia de que a democracia referendária (ou directa) é mais democrática do que a representativa é hoje popular em muitas democracias europeias, defendida por políticos de pergaminhos democráticos ou por uma imprensa pouco avisada. A forma de lhe resistir está longe de ter encontrado um caminho. Barack Obama, no seu discurso de despedida em Chicago, elegeu a defesa da democracia constitucional americana como um dever de cidadania que dizia respeito a todos. Lembrou que, no dia em que a considerássemos como garantida, passaria a estar ameaçada. O Presidente que abandonou na sexta-feira a Casa Branca não pôs em causa a legitimidade da eleição do seu sucessor, apenas as suas possíveis consequências. Na sua última conferência de imprensa, admitiu que apenas falará publicamente se as liberdades cívicas e, em especial, a liberdade de imprensa forem postas em causa. Não estava a falar de suposições injustificadas. Trump disse várias vezes na campanha, e depois dela, que utilizaria todos os meios legais e económicos ao seu alcance contra a imprensa, que acusa de difundir mentiras a seu respeito.
O fim da ordem "anglo-americana"
Talvez o maior problema que a democracia americana hoje enfrenta seja o facto de não haver um “povo americano” mas um somatório de minorias actuais ou potenciais, que nenhuma força política parece em condições de unificar em torno dos valores constitucionais que definem a América desde a sua fundação. Os pais fundadores que redigiram a Constituição elegeram-na como o fundamento da cidadania, fazendo do liberalismo constitucional a mais forte limitação à “ditadura da maioria”, nas célebres palavras de Alexis de Toqueville. Trump foi eleito com base na diferenciação a favor de uma maioria branca que vê o seu mundo ruir graças à globalização, à desindustrialização, à "exportação” de empregos para outras paragens, da China ao México, de uma vida sem futuro daqueles que se sentem excluídos do sonho americano. Hillary Clinton acreditava que ganharia, somando os votos das diferentes minorias. O populismo nativista não é uma história nova nos Estados Unidos. Teve os seus momentos. Ainda não tinha chegado à Casa Branca. O maior erro das elites foi acreditarem que, com Trump, também não chegaria. O que acontecerá à grande democracia americana ainda ninguém sabe. Provavelmente resistirá, como resistiu ao macartismo nos anos 1950. Mas há um efeito inevitável que terá repercussões na capacidade de as democracias liberais vencerem a batalha contra o populismo e o nacionalismo e salvarem pelo menos parte daquilo que construíram à escala global.
Num texto recente publicado na revista do New York Times, Ian Buruma, historiador e ensaísta holandês a viver nos Estados Unidos, admitia a hipótese de a ordem a que chama “anglo-americana” ter chegado ao fim. Foi o mundo anglo-saxónico que venceu a guerra contra as forças obscuras do nazismo e do fascismo, quando dominava todo o continente. Foram as duas nações “excepcionais” que moldaram a ordem liberal do pós-guerra, com as suas instituições e os seus princípios constitucionais, que durou até aos nossos dias. São elas que se retiram do mundo ao mesmo tempo, antecipando o seu fim.
Buruma descreve a perplexidade dos seus amigos britânicos perante a ideia de que o "Brexit" e a eleição de Donald Trump são a mesma coisa. Aqueles que ainda se querem iludir argumentam, quase ingenuamente, que o "Brexit" é uma questão de soberania recuperada, que valoriza precisamente a velha democracia liberal britânica. Trump é, pelo contrário, uma manifestação de populismo nativista que se inscreve na História da América. Não é assim, argumenta o historiador. Os dois fenómenos assentam não apenas na rejeição de instituições internacionais como definem os mesmos “inimigos”. Quando Nigel Farage, no seu discurso de Jackson, no Mississípi, ao lado de Trump, “fulminava os bancos, os media liberais e o establishment político, não estava a falar de instituições estrangeiras, mas dos ‘estranhos no meio de nós’, as elites que não são nem 'comuns' nem 'decentes', nem 'verdadeiras'”.
Farage, que Trump saúda como o grande vencedor do "Brexit", limita-se a ser consequente com aquilo que sempre defendeu. Mas, para compreendermos a natureza da decisão britânica, é preciso também ouvir Theresa May no seu discurso à Convenção conservadora, a falar dos “cidadãos de parte nenhuma”, rebatendo as elites cosmopolitas que o seu antecessor, David Cameron, defendia. Quando a primeira-ministra britânica escolhe a “identidade britânica”, ameaçada pela livre circulação dos europeus, em detrimento do Mercado Único, a sua escolha vai no sentido oposto ao de Thatcher em 1979.
Trump atacou o “cosmopolitismo sem raízes”. O corte radical com a Europa que May prometeu no seu discurso sobre o "Brexit",regressa à “esplêndida solidão” da ilhas, longe do continente mas próximas do mundo. Tal como Winston Churchill, também ela deseja a melhor sorte à União Europeia. A diferença está em que, no mundo de Churchill, o Reino Unido ainda era um império, mesmo que prestes a passar o testemunho à sua ex-colónia mais poderosa, forjando entre ambas uma “relação especial” que moldou a política externa das ilhas desde então. May já não dispõe desse recurso, milita apenas numa ilusão.
Uma nova linguagem política?
A renovação da “relação especial” anglo-americana de que fala Buruma, forjada entre os dois únicos países que fizeram frente a Hitler e o derrotaram salvando a Europa de si mesma, só muito dificilmente poderá sobreviver, precisamente porque a sua missão de defender a ordem liberal que construíram deixou de existir. Buruma termina o seu texto num tom nostálgico com a imagem de dois homens louros a rirem-se como duas crianças apanhadas em flagrante, iluminados pelo reflexo da porta dourada do elevador da célebre Trump Tower em Nova Iorque, de polegar esticado, congratulando-se por terem derrotado as elites e devolvido o poder à “gente decente” e “trabalhadora”.
A questão seguinte é saber até que ponto esta ruptura com o passado é um fenómeno conjuntural ou, pelo contrário, o início de uma era em que a democracia liberal cede ao nacionalismo e ao proteccionismo. Podemos compará-lo com “movimentos semelhantes que moldaram períodos distintos da nossa História recente” e que nasceram quase em simultâneo em vários lugares diferentes, acabando por fundir-se numa tendência global. Garton Ash enumera-os: “Populismo nacionalista hoje, liberalismo globalizado (ou neoliberalismo) nos anos 1990, fascismo e comunismo nos anos 1930 e 40, e imperialismo no século XIX.” Todos deram lugar a uma nova linguagem política e a novas soluções, boas ou más, para resolver novos problemas. Mas alerta que seria preciso o génio de Keynes ou a coragem de homens como Beveridge e Atlee (os pais do Estado social britânico) para saber responder a alguns desses desafios. As forças democráticas europeias estão ainda longe de encontrar uma linguagem que diga alguma coisa de novo aos cidadãos que os apoiam. Fecham-se nas suas verdades sobre um mundo que nunca foi tão próspero, onde a pobreza recua e a esperança de vida aumenta e se multiplicam oportunidades. Dizem a verdade que as estatísticas medem. Esquecem os que ficaram para trás ou que sofrem mais directamente a perda de referências em que sempre acreditaram. Em alternativa, tentam incluir a agenda dos extremos.
O famoso teórico americano da democracia Larry Diamond já tinha avisado que a Grande Recessão que se seguiu à crise financeira de 2008 tinha ajudado à recessão democrática um pouco por todo o mundo, depois de várias décadas de expansão constante da democracia. Num texto recente na revista The Atlantic, o académico de Stanford alerta para que as democracias liberais possam falhar quando um número elevado de pessoas perde a confiança em elites, que passam a valorizar mais o seu interesse próprio do que o dos cidadãos que representam. Juan Linz, historiador das transições democráticas, de Yale, acrescenta, na sua obra The Breakdown of Democratic Regimes, que a democracia dificilmente sobrevive quando não há respeito pelos adversários. E isso, acrescenta Diamond, passou a poder acontecer na América.
Outros académicos colocam outra questão, que vimos diariamente reflectida na grande imprensa europeia. Habituámo-nos a falar de xenofobia, nacionalismo e populismo como se fossem hoje uma versão soft desses três radicalismos extremos que várias vezes destruíram a Europa. É mesmo assim? “O que sabemos da História é que há ideologias que matam e que o nacionalismo, o fanatismo, o racismo trazem no seu ADN o ódio ao outro e a vontade de o destruir”, escreve ainda Timothy Garton Ash. A questão que hoje a Europa enfrenta é a de saber se os partidos nacionalistas acabarão por adaptar-se à democracia liberal ou se, pelo contrário, ajudarão a destruí-la. A Europa não resistirá ao nacionalismo. É a única certeza que temos.