Trump depois de Obama? A História dirá quem prevaleceu

Obama chegou para acabar com as duas guerras de Bush, mas esteve em guerra durante todos os anos dos seus mandatos.

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1. Num documentário sobre o “legado de Obama”, transmitido pela CNN  na segunda-feira, Fared Zakaria, o célebre jornalista americano autor de dois livros quase premonitórios — The Post-American World, 2008, e The Future of Freedom: iliberal democracy, home and abroad, 2003 —, passa em revista os grandes momentos, incluindo êxitos e fracassos, dos seus dois mandatos confrontando o Presidente com cada um deles e com as declarações tweetadas por Donald Trump quase diariamente sobre a sua intenção de lhes pôr fim. Desde o Obamacare, o mais polémico dos legados de Obama, que sete presidentes democratas tentaram antes dele, até ao acordo nuclear com Teerão, da liberdade total de porte de arma ao abandono de qualquer responsabilidade internacional, a não ser aquela que beneficie directamente os Estados Unidos. A ruptura não podia ser mais radical, nos antípodas da doutrina que Obama elaborou nos seus oito anos intensos de mandato: uma nova forma de liderança americana capaz de incluir as profundas mudanças desencadeadas pelo fim da Guerra Fria e pela era da globalização.

A direita republicana (incluindo velhos atlantistas moderados como John MacCain, que olham para Trump com horror) acusa-o de ter enfraquecido a América no mundo, lesando o respeito (ou, talvez, o medo) de adversários e aliados perante a única superpotência mundial. Obama chegou a Washington com a intenção de provar que havia outro significado para a palavra “forte”, para além da rapidez com que a nação americana está disposta a apertar o gatilho, mas em muitos outros factores, entre eles a economia e a sua capacidade de cooperar com os aliados ou estender a mão aos inimigos, se estes abrirem o punho. Disse-o no seu primeiro discurso inaugural. Cumpriu-o em Teerão e em Havana. Retirou do Iraque, mas aumentou a força americana no Afeganistão. Foi pragmático e realista tanto quanto foi necessário. Sairá provavelmente com a mágoa profunda de ver Donald Trump suceder-lhe na Casa Branca. Ainda não é um balanço. A despedida começa agora.

Nos últimos dias, uma outra entrevista do Presidente, desta vez ao seu principal estratego eleitoral, David Axelroad, agora a trabalhar num think-tank de Chicago, dominou a agenda mediática. Obama disse que, se lhe fosse permitido um terceiro mandato, acreditava que o poderia ganhar. Era uma figura de retórica para sublinhar que haverá ainda uma maioria de americanos que concordam com aquilo que fez. O que disse tem alguma razão de ser. Sai com uma popularidade invejável para qualquer Presidente em fim de carreira. Ligeiramente superior à de Reagan, muitíssimo superior à de Bush (filho), que lhe deixou uma das mais pesadas heranças que um Presidente pode receber de outro, desde uma economia em colapso até duas guerras sem fim e já sem objectivo. Apenas Bill Clinton abandonou a presidência com uma popularidade superior, mas o mundo parecia ainda um mar tranquilo no qual o 42.º Presidente tinha sabido navegar.

2. Onde está hoje o “skinny little kid with a funny name”, como recorda a Economist, que se despede com o cabelo cada vez mais grisalho e as rugas mais vincadas, mas ainda igualmente elegante, jovem (em comparação com Trump, quinze anos mais velho) e com o mesmo sorriso contagiante com que maravilhou o mundo em 2008, apenas ensombrado por uma vaga  mas indisfarçável tristeza? No documentário de Fared Zakaria há dois momentos em que o Presidente não consegue conter as lágrimas. Quando fala sobre a escola primária de Newton onde 21 crianças entre os cinco e os dez anos foram abatidas a tiro por um adolescente. Ou quando, em Charleston, Agosto de 2015, um outro jovem disposto a “iniciar uma guerra racial” matou sete pessoas de origem afro-americana numa igreja metodista. “Nenhum dos 43 presidentes que o precederam podia ter feito o que ele fez”, diz Nick Bryant, da BBC. “Soou como um sermão nalguns momentos, como um discurso do estado da União noutros (...), parecia que estávamos a ouvir Martin Luther King através da sua voz.” Nesta cerimónia comovente, Obama junta, num poderoso e raro discurso sobre o conflito racial, duas das suas maiores mágoas: a impotência face à liberdade de porte de arma; o resultado frustrante (não para ele, que nunca esperou outra coisa) da sua eleição, vista pela comunidade afro-americana como uma esperança que afinal não foi. Os confrontos recorrentes entre essas comunidades e a polícia recrudesceram. Obama procurou sempre uma atitude moderada, que muitos viram como distante. Há dois livros fundamentais para iniciar o balanço da sua presidência, agora que é preciso olhar para ela como um todo. O que o revelou a milhões de pessoas que, de repente, quiseram saber quem era aquele “skinny little kid” com uma capacidade oratória capaz de electrizar qualquer audiência. Dreams of My Father, uma autobiografia imensamente bem escrita na qual conta a sua história americana, desde o ajuste de contas com a raça para escolher a sua verdadeira identidade aos anos de aprendizagem nos bairros pobres de Chicago ou na Harvard Law School onde o seu intelecto fez dele uma figura dominante. O segundo, The Audacity of Hope, é a visão com que se apresentará  às eleições, mesmo estando ainda a uma longa distância de lá chegar, incluindo um olhar crítico sobre a sociedade americana, com as suas enormes oportunidades e as suas profundas injustiças, e do lugar e do papel do seu país no mundo, o único ainda capaz de fazer a diferença. O terceiro vértice deste triângulo que o define é o seu célebre discurso de Boston, no Verão de 2004, quando pura e simplesmente arrebatou a Convenção Democrata que escolheria John Kerry para desafiar o segundo mandato de Bush. Ainda não era sequer senador federal, mas apenas do estado do Illinois, o mesmo de onde Lincoln partira.

3. Oito anos depois, é um Presidente pragmático e realista que abandona a Casa Branca, à espera de que a História lhe faça justiça. Queria concentrar-se nas reformas domésticas, mas o mundo nunca o deixou descansado, exigindo-lhe uma atenção permanente e decisões extremamente difíceis. Chegou para acabar com as duas guerras de Bush, mas, como lembra a Economist, esteve em guerra durante todos os anos dos seus mandatos. Considerou que os EUA gastavam demasiado capital político e diplomático num Médio Oriente incapaz de se modernizar. O Médio Oriente não o deixou em paz. Olhou sempre para a Rússia como uma mera potência regional em decadência, com um arsenal nuclear demasiado grande. Putin tentou demonstrar-lhe o contrário na crise ucraniana (à qual conseguiu responder com a firmeza necessária e o apoio europeu) e na tragédia da Síria. É o lado mais controverso da sua política externa, uma consequência das Primaveras Árabes que não viu chegar, embora fossem de algum modo o resultado do seu célebre discurso do Cairo, incentivando os jovens a lutar pelo seu futuro. O seu objectivo, quando venceu as eleições pela primeira vez, não era apenas terminar a guerra do Iraque, à qual se opôs publicamente (um dos raros democratas a fazê-lo). Era muito mais do que isso. Era mudar a forma de pensar das elites de Washington sobre a relação da América  com o mundo, fossem elas mais liberais ou mais conservadoras. Queria libertá-las de um modelo binário que resumia as suas opções entre bombardear ou não fazer nada. Quase todas as suas decisões de política externa foram avaliadas por este critério, incluindo aquelas em que aceitou o uso da força mas entregou aos aliados a liderança da guerra. Aconteceu na Líbia, quebrando um outro tabu: nunca entregar a ninguém a liderança de uma operação militar que envolva tropas americanas. Na Líbia, entregou o comando ao Reino Unido e à França, mas garantiu as operações militares para as quais os europeus não tinham capacidade (antes dos raides aéreos, a frota naval americana tratou de eliminar as defesas líbias com os seus mísseis tomahawk a um milhão de dólares por disparo). No seu último discurso na ONU, lamentou publicamente o facto de ninguém, a começar por ele, se ter preocupado com o que se seguiria após a eliminação de Khadafi. Na Síria, resolveu a questão das armas químicas, que tinha definido como a linha vermelha que Assad não poderia atravessar, aceitando a intermediação de Putin. As armas foram todas retiradas e destruídas. O objectivo estava cumprido e Obama não tencionava abrir outra frente de guerra no Médio Oriente. Centrou o objectivo militar no combate ao Estado Islâmico. Contou com o apoio dos aliados europeus. O Daesh pode hoje estar enfraquecido, mas isso não evitou a tragédia de Alepo, apenas a mais visível. Será difícil provar que havia outra solução melhor, se Obama tivesse decidido colocar botas no terreno. Porém, os analistas convergem em que se criou um vazio que Moscovo tratou de preencher e Teerão também.

4. O uso da força apenas como último recurso foi uma componente fundamental da sua doutrina de segurança e defesa. Pode não ter tido muito êxito, mas colocou as decisões em parâmetros novos. Sabia que, em algumas ocasiões, era necessária e sabia também que era dissuasora. Provou-o no Irão. Partiu do princípio de que, se todas as anteriores tentativas de pôr cobro ao programa nuclear iraniano tinham falhado, era a altura de experimentar um nova, desafiando Teerão a negociar. Washington temia uma qualquer loucura de Israel. Ao contrário dos republicanos, cuja estratégia foi sempre a do quanto pior, melhor, valorizava os ganhos políticos dos moderados do regime. Contou com a ajuda preciosa dos europeus, mas também de Moscovo e de Pequim. Bush não fizera nada. Ele começou pelas sanções (Clinton dizia que eram para “aleijar”), que atingiram duramente a economia iraniana. Chamou os generais e disse-lhes que tinham de pôr de pé uma força militar capaz de mostrar in loco a Teerão que o uso da força continuava em cima da mesa. O Pentágono fez o que pôde. Foi uma negociação extremamente difícil, mas fundamental para impedir uma impensável corrida à bomba atómica numa das regiões mais instáveis do mundo. O resultado pode não ser perfeito. Nenhuma negociação pode ter essa pretensão. Mas abriu as portas a uma verificação internacional transparente. O Presidente correu um enorme risco ao manter secretos os primeiros meses da negociação. Se houvesse uma fuga, o processo acabava e Obama ficaria numa posição de enorme fragilidade. Não houve. Os republicanos viram neste acordo mais uma “fraqueza”. Trump anunciou que acabaria com ele. Em Havana, Obama seguiu o mesmo modelo, sem necessidade de dissuasão militar. Uma inesperada troca de palavras com Raúl Castro no funeral de Mandela foi o sinal de que alguma coisa se passava. Mudou a forma de decidir o uso da força? Só o futuro o dirá. Mudou o modo de liderar da América? Depende do que Trump realmente fizer. Mas Obama não foi um Presidente pacifista, nem o conceito de “retraimento estratégico” pode ser aplicada sem nuances à sua presidência.

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NICHOLAS KAMM/AFP

5. Via a força da América muito para além da sua capacidade militar, que continua sem rival. Foi o risco de uma segunda Grande Depressão que ocupou a sua Administração desde o primeiro dia, esse, sim, capaz de retirar aos EUA muitas das suas capacidades sem igual. Já quase esquecemos o que foi a crise financeira e as suas terríveis consequências económicas. Quando entrou na Casa Branca, o sistema financeiro americano estava à beira do colapso. A GM prestes a falir. Eram destruídos 750 mil empregos por mês e 100 mil famílias por semana perdiam as casas que compraram graças ao crédito demasiado fácil. Quando apresentou ao Congresso um “pacote financeiro” de 800 mil milhões de dólares para salvar os bancos e estimular a economia, acreditou que a situação era de tal modo grave que os republicanos estariam dispostos a uma negociação. Puro engano. Mitt Romney, que seria o seu adversário em 2012, deu o mote: deixem os bancos e as empresas falir. Foi o que fez a Administração Bush em Setembro de 2008, entregando o Lehman Brothers à sua sorte, para se arrepender quinze dias depois. Mas os republicanos já tinham dado o tiro de partida para a sua única prioridade política: fazer de Obama um Presidente de um só mandato. O pacote financeiro salvou a banca, impondo-lhe, no entanto, novas regras, e impulsionou a inovação em sectores tão importantes como a indústria automóvel, tornando-a mais competitiva e mais amiga do ambiente. Timothy Geithner, o seu primeiro secretário do Tesouro, diz que Obama gastou uma grande parte do seu capital político com a reforma do sistema financeiro. Os seus apoiantes acharam que tinha cedido demasiado aos “mestres do universo” que tinham brincado com as suas vidas. A finança criticou-o por excesso de regulamentação. Oito anos depois, Obama deixa uma economia em franca retoma, com o desemprego já ao nível do pleno emprego, uma capacidade competitiva maior, resultado de mais uma vaga de inovações tecnológicas inimitáveis. É a força económica que permite aos EUA dispor do Exército mais poderoso e tecnologicamente mais avançado do mundo, sem que isso represente um esforço demasiado do PIB: 3% ou 4%. Gastou igualmente um enorme capital político com o Obamacare, abdicando de uma solução meramente pública e aceitando envolver as seguradoras. Há coisas que ainda não funcionam, mas hoje 90% dos americanos estão protegidos de uma doença grave, o valor mais alto da história da democracia americana. Trump acabará com isto?

6. A visão que Obama tinha para o seu próprio mandato está magnificamente ilustrada em The Long Game, do seu antigo conselheiro Derek Chollet. Obama tinha uma ideia de longo prazo para a relação da América com o mundo e uma ordem internacional mais inclusiva: o multilateralismo (que “regulava a arrogância dos poderosos”), as alterações climáticas (que colocou no topo da sua nem sempre fácil relação com Xi Jinping e que permitiu o Acordo de Paris); a não proliferação, que anunciou em Praga num dos seus primeiros discursos europeus; as bases de uma relação de cooperação e de contenção com a China, a única verdadeira aspirante a superpotência, que facilite a sua integração numa ordem internacional negociada; o comércio livre assente em tratados com os principais blocos comerciais do mundo (a Parceria Transpacífica e o TTIP), com um valor geopolítico evidente; o  combate às pandemias, que hoje têm uma dimensão global. Olhou sempre para os fogos que foi tendo de apagar, melhor ou pior, numa perspectiva de longo prazo, medindo os ganhos imediatos e os ganhos futuros. Não deixou por isso de autorizar uma operação destinada a eliminar Bin Laden, que lhe poderia ter custado a presidência como aconteceu a Jimmy Carter com o sequestro da embaixada americana em Teerão. Acusam-no de arrogância, que, a existir, se manifesta nessa capacidade intelectual que o caracteriza. O mundo adorou-o quando foi eleito pela primeira vez e acreditou que conseguiria andar sobre as águas. Não precisava de programa, porque o programa era ele e a sua bela história americana. Revelou-se um realista, sem abandonar os princípios nem os objectivos que definira. Inspirou o mundo. Resta saber se aquilo que fez, e que não foi pouco, não acabará destruído pelo seu sucessor.

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