"Com o trunfo dos refugiados, Erdogan tem os líderes europeus de joelhos"
Can Dündar, jornalista de 55 anos, foi nomeado este ano para o Prémio Sakharov do Parlamento Europeu. Não ganhou mas esteve na cerimónia. Diz que impedir a entrada da Turquia na União Europeia só irá beneficiar o Presidente Recep Erdogan.
Can Dündar fala no plural. Não é ele quem diz ou quem quer, mas sim um "nós" que identifica como o povo democrata da Turquia. O jornalista, de 55 anos, nomeado este ano para o Prémio Sakharov do Parlamento Europeu, marcou presença na cerimónia de atribuição, terça-feira em Estrasburgo.
Impedir a entrada da Turquia na União Europeia só irá beneficiar o actual Presidente, Recep Erdogan, defende. Exilado na Alemanha desde Junho, em parte incerta por presumíveis razões de segurança, vê-se como voz independente que pode dizer na Europa o que a autocracia de Erdogan tornou proibido. Prenderam-no em Novembro do ano passado durante 91 dias, até o Supremo Tribunal ter considerado a detenção ilegal.
Erdogan avisou que Dündar "pagaria um preço alto" por ter publicado uma investigação a expor o tráfico de armas por parte do regime turco com os rebeldes da Síria. E pagou mesmo. O ex-director do principal diário turco de centro-esquerda, figura de destaque na vida pública do país, acabou por ser julgado e sobreviveu a uma tentativa de homicídio à entrada do tribunal. Fugiu do país no Verão, deixando mulher e filho adulto para trás. Entretanto, demitiu-se do Cumhuriyet. Aguarda recurso da pena de cinco anos e dez meses a que foi condenado por tentativa de golpe de estado.
Desde a tentativa de golpe em Julho, as autoridades turcas afastaram milhares de funcionários públicos e magistrados, detiveram centenas de jornalistas e obrigaram muitos órgãos de comunicação social a encerrar. Que opinião tem sobre o que se passa na Turquia?
O golpe foi muito perigoso, ainda bem que a Turquia conseguiu sobreviver, e conseguiu graças à oposição democrática e à reacção do povo. Conseguimos parar o golpe. Infelizmente, o que se seguiu foi que Erdogan usou estes acontecimentos como uma oportunidade para aumentar a repressão. Ou seja, sobrevivemos a uma intervenção militar, que teria levado a uma solução de governo militarizada, e ganhámos repressão. Não sei quantos burocratas, académicos, polícias, juízes, procuradores, jornalistas e escritores estiveram envolvidos no golpe, mas tenho a certeza de que muitos deles, a única culpa que têm, se se pode falar em culpa, é a de se terem oposto ao governo, nada mais do que isso.
Quando diz "conseguimos parar o golpe", refere-se a quem?
Ao povo, o povo saiu à rua e teve coragem suficiente para resistir à intervenção militar. Foi a atitude correcta, é uma obrigação de qualquer cidadão, porque a Turquia já sofreu muito com intervenções militares, que não trouxeram nada de bom. Esta seria mais uma dessas situações, ainda bem que foi travada a tempo, estou orgulhoso do povo turco. Mas usar o golpe para mais opressão foi um erro. Tanto quanto sei, neste momento há muitas pessoas de entre as mesmas que se opuseram ao golpe que já não estão a defender a democracia e sim o governo de Erdogan.
Alguns comentadores consideram que o Prémio Sakharov deveria ter sido para si e que o Parlamento Europeu não teve coragem para afrontar o poder turco.
Não posso comentar, temos de respeitar a decisão do Parlamento. Não havia competição entre os candidatos ao prémio. Fizémos o que nos competia, desafiámos a repressão nos nossos países. A decisão deve ser respeitada.
Um dos temas do Conselho Europeu de quinta-feira é a adesão da Turquia à União Europeia. Que mensagem deixaria aos líderes europeus?
Não têm feito muito para defender os direitos humanos na Turquia por causa do acordo sobre refugiados [de Marco deste ano]. Desde o início, tivemos a certeza de que se trata de um acordo sujo, que mancha a imagem da Europa. Na minha opinião, Erdogan comprou o silêncio dos líderes europeus através dos refugiados. É um preço muito alto. Aqueles que na Turquia defendem os valores europeus, direitos humanos, democracia, liberdade de imprensa, igualdade entre homens e mulheres, vão parar à prisão, por isso, quando vemos os governos europeus do lado do adversário, sentimos uma grande desilusão. Cabe-lhes decidir se querem continuar a apoiar Erdogan ou as forças democráticas da Turquia.
Concorda com a recente resolução do Parlamento Europeu que pede um congelamento das negociações de adesão da Turquia, devido à "enorme repressão" por parte do regime?
Sei que é um texto não vinculativo, vejo-o como uma proposta, mas sempre fui contra este tipo de entraves. Ser um Estado-membro é muito importante para a democracia turca.
Ameaçar parar as negociações não é uma forma de pressão eficaz?
De maneira nenhuma. Erdogan nunca foi uma pessoa de valores europeus, por isso, não fazer parte da União Europeia seria bom para ele, ficaria encantado se a Europa estivesse longe de nós. Ele já fez saber que se a Turquia não entrar para o clube europeu há outros caminhos: a Rússia, a China, a Arábia Saudita ou o Qatar.
Considera a resolução do Parlamento positiva para Presidente turco?
Claro. Não foi uma boa decisão para nós. Se se quer apoiar a luta democrática na Turquia é necessário manter relações e negociar com a Turquia. Isolar o país não pune Erdogan, pune os democratas da Turquia.
Que tipo de intervenção concreta espera da Europa?
Já não acredito que os governos europeus possam fazer alguma coisa enquanto existir a crise de refugiados. Penso que a sociedade civil, sim, pode ajudar, através da cooperação: geminação de cidades, o diálogo entre associações ou sindicatos de jornalistas, associações de empresários, partidos políticos. Este tipo de relações resulta, entre governos não resulta. Com o trunfo dos refugiados, Erdogan tem os líderes europeus de joelhos.
Tem ideia sobre qual será o seu futuro próximo?
Depende da Alemanha e da Europa. Decidi lutar aqui e explicar aos europeus o que se passa na Turquia. Vou continuar a fazer isso.
Utiliza o Twitter com frequência e escreve quase sempre em turco, muito poucas vezes utiliza o inglês. Continua a querer falar para dentro do país e não tanto para a comunidade internacional?
Tento fazer o que posso para alertar a comunidade internacional, mas neste momento precisamos de dar voz ao turcos, dar voz a oposição, aos que não conseguem ter a coragem suficiente para afrontar o regime. É isso que tento transmitir através da Internet.
A sua mulher continua proibida de sair da Turquia?
Sim, porque lhe suspenderam o passaporte. Eu já era jornalista nos anos 80, quando houve um governo militar [golpe de 1980], e mesmo nessa época ninguém se atrevia a tocar na família. Fazer de um familiar um refém é um crime. Ela não tem nada a ver com isto, não fez investigação jornalística nenhuma, e não há base legal para a proibirem de viajar.
O jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu