Del Verano Azul no nos moverán
Quem não tem amigos em Nerja (a começar por um certo Chanquete...) que gostaria muito de rever?
Nerja não era nada, não significava mais do que um desvio no traçado do mapa (daqueles de papel, dobrado no porta-luvas do Golf) no limite da Andaluzia, numa noite de pequena tormenta (dentro do Golf e lá fora também). Accionámos o plano de emergência: pernoitamos aqui, vemos o mar, respiramos fundo e vemos uma "peli" (Sí, quiero...) em que os adultos mudam de opinião em pleno altar.
Nunca tinha estado em Nerja, mas já tinha estado em Nerja. Enquanto olhava para o mar — e para aquela rocha alta e imponente como um palco —, tive a estranha sensação de estar a ser observado por memórias do passado. Nunca tinha estado em Nerja, mas já tinha passado férias em Nerja, tinha amigos em Nerja (que queria muito rever), tinha aprendido a ser aventureiro e desobediente em Nerja, tinha cantado e chorado em Nerja.
O nó foi deslindado no dia seguinte no posto de turismo de Nerja e nas páginas do livro Antes, Durante e Después de Verano Azul. Episódio 15: El ídolo (emitido a 17 de Janeiro de 1982): Bruno, um cantor, ídolo das jovens, chega à povoação para gravar um teledisco. Elas (Bea e Desi) estão loucas com ele. Eles (Pancho e Javi) morrem de ciúmes. Na praia, numa rocha alta, Bruno tenta um playback, sistematicamente boicotado pela "pandilha" que acaba por salvar o ídolo de morrer afogado.
Verano Azul. É daí que conhecemos Nerja. Crescemos lá e nas suas praias aprendemos a escrever mensagens e a fazê-las navegar em garrafas, acreditando que iriam apanhar a corrente certa.
Como bom vianense, que sempre teve acesso às "cowboyadas" da TVE (e da TV Galiza), nos anos 80 as minhas séries eram todas espanholas antes de serem legendadas. El Coche Fantástico, El Equipo A, MacGyver (mas a soar a "macguibér")...
Quando Portugal assobiou o Verão Azul em 1983 já nas ruas de Viana do Castelo se pedalava ao som da melodia de Carmelo Bernaola (compositor basco de música "vanguardista"), principalmente aos domingos, depois de assimilado o episódio semanal (logo a seguir a uma aventura desengonçada de Tom Sawyer) e mesmo para quem rolava numa bicicleta sem pedais (qual trotinete) porque os pais não tinham conseguido seguir até ao fim o manual de instruções da bicla amarela comprada às escondidas numa das idas a Tui para reabastecer a dispensa — deslocações que de vez em quando lá serviam também para comprar uma Barriguita para a Paula e um Famobil (uma mistura de Famosa e de Playmobil, marca da Famosa licenciada para fabricar e distribuir os seus produtos em Espanha e Portugal) ou um qualquer sucedâneo barato do He-Man para o Luís.
Quando chegou o Verão Azul, já o Verano Azul terminara. Foram quatro meses. Parece uma vida. Já tínhamos ficados presos e apaixonados na Cueva del Gato Verde, já não éramos crianças, já Chanquete tinha morrido (é no penúltimo episódio, que acabaria por servir como um curso de preparação para posteriores perdas, especialmente para quem ainda conservava vivos os quatro avós) e, de repente, chegara El final del verano e o final das férias mais memoráveis, onde só parecia faltar a bola Nívea que nos faria dar a volta ao mundo em 80 dias (de preferência com Willy Fog).
Na série, o Verão funciona como um canivete suíço: a aventura, o encontro com o desconhecido, a aprendizagem de coisas que não aprendemos na escola, a constatação das liberdades que chegavam timidamente a Portugal e a Espanha, que aqui quebrou esquemas herdados da televisão franquista, tratando abertamente questões delicadas como o divórcio (El visitante: quando Desi recebe uma moto do pai, Tito e Piraña pensam numa forma de fazer com que os seus pais se separem), as liberdades e o direito ao protesto (quem nunca ficou em silêncio um dia inteiro ou respondeu "a lo mejor" a tudo que atire a primeira pedra?) e a especulação imobiliária (quem não cantou No nos moverán para salvar La Dorada está a ler o texto errado; quem não sabe o que é La Dorada também), o meio ambiente e os mil conflitos geracionais.
A identificação dos telespectadores com as personagens era total (acho que sempre fui um bocado Pancho), uma espécie de sinédoque, onde há um "gordinflas", um Piraña, que não tem outro nome, um Quique, que passa despercebido e que tem dificuldade em ser popular, e uma Desita, irmã de Bea na vida real (esperem lá, a vida real não é o Verão Azul?!) que, para além disso (de ser irmã da loira gira) tem de usar gafas e aparelho nos dentes — invenção para corrigir aquilo que está apinhado e mal organizado pela natureza e que tão pouco jeito dá no momento de beijar.
Pancho era "el chico del pueblo" que já estava em Nerja antes de Nerja ser alguém, enquanto a vida era vivida a uma velocidade pré-Internet — e que por lá ficou na sua vida adulta. Ele, aventureiro, romântico, "Pacho Panza", frondosa cabeleira, era o moreno. Javi, uma espécie de Miguel Bosé, o loiro. E a Bea, qual Marco Paulo, cabia o papel de escolher. Bea era Beatriz, mon amour, episódio acompanhado por violinos dengosos em que Tito ouve a mãe dizer ao pai "Bea ya es mujer".
Pancho - Claro, por isso não vai à água.
Piraña - E não vai à água porque é uma mulher?
Pique - Porque estará naquele mês.
Tito - O de Agosto?
Pancho - A Beatriz tem o período.
Javi - "La regla, Beatriz tiene la regla"
Tito aproxima-se da irmã, dá-lhe um beijo e diz-lhe que já sabe o que se passa, que ela "está com o periódico". E todos passeiam junto a Bea como a dar-lhe os pêsames por ela se ter despedido da infância. Nesse Verão e nos seguintes, todas as miúdas que eram a Desi sonhavam ser a Bea.
Tito, que ainda hoje está em Nerja a fazer visitas guiadas ao universo Verano Azul (tem a claquete da série oferecida pelo realizador porque estava sempre a brincar com ela), confessa que as fãs da série só lhe escreviam cartas a pedir o número do Pancho ou de Javi (ou dos dois).
A vida real é um conceito recorrente quando passeamos por Nerja, que colocou uma bandeira a meia haste quando Chanquete morreu e que conservou La Dorada (moveram-na, mas não foi destruída). Realidade e ficção. Existe uma confusão constante entre as duas categorias. Julia, a pintora que foi para Nerja a fugir da sua vida (o marido e a filha morreram num acidente de viação num dia de chuva), partilhou com a pandilha histórias de vida e até passas do seu cigarro (já não tenho a minha guitarra comprada em Tui, mas ainda hoje toco tão bem como a pintora). Numa altura em que os desenhos animados vinham de muito longe (do universo Vasco Granja ou dos mundos Miyazaki) e pouco depois de terem chegado a Espanha Os Cinco, a pandilha inglesa, dois rapazes, duas raparigas e um cão, nós passeámos de bicicleta com Tito, Piraña, Desi, Bea, Pancho, Javi e Quique. Todos crescemos em Nerja.
Esta série é publicada às segundas e às terças-feiras. Próxima: Viver no Campo