Sexo, raça e Hollywood: Ghostbusters não é só um filme – é um caso
Entre estragar as memórias de infância ou mandar imagens de primatas a uma actriz negra está uma comédia sobre Caça-Fantasmas que esta quinta-feira se estreia em Portugal.
Ghostbusters – Caça-Fantasmas é um filme de Verão, uma espécie de clássico 80s que cruza os feixes da comédia e da ficção científica e que deixou na cultura pop uma música e uma frase: “Quem é que vão chamar?”. Para a versão de 2016, chamaram um grupo de mulheres. O filme tornou-se num caso de violência verbal por clique mesmo antes de se estrear – o seu trailer é o mais “detestado” da história do YouTube e chega esta quinta-feira a Portugal depois de a polémica sobre género ter ganhado uma nova camada, a do racismo.
Recuemos por momentos a Hollywood, 1984. Verão. Uma fase particular do cinema americano seguia a alta velocidade pelas avenidas de palmeiras. Expandiam-se o blockbuster e o “clássico” instantâneo de videoclube. A infância de uma geração, a adolescência de outra e os adultos baby boomers criavam memórias que em 2016 se revelariam surpreendentemente importantes. Ao ponto de fazer de Caça-Fantasmas mais um filme de grande orçamento e grande público em que a política da representação tem um grande peso.
Em 1984, o planeta aprendia que não podia alimentar os Gremlins depois da meia-noite, nascia o Karate Kid e abriam-se as portas do franchise Academia de Polícia. O Pesadelo em Elm Street tornava-se real, as adolescentes celebravam as 16 Primaveras e O Exterminador Implacável esmagava para sempre a cultura popular. Michael Douglas e Kathleen Turner andavam Em Busca da Esmeralda Perdida e Footloose, Purple Rain ou This is Spinal Tap juntavam-se a um ano em que os irmãos Coen se estreavam com Sangue por Sangue, em que Dune afundava David Lynch e em que morriam Truffaut e Peckinpah.
Em 1984, a América mandou Indiana Jones em busca do Templo Perdido e Eddie Murphy era O Caça Polícias – os filmes mais rentáveis do ano em todo o mundo e nos EUA, respectivamente. O pódio completava-se com outra comédia – Ghostbusters, ou Bill Murray e Sigourney Weaver sedutores em Nova Iorque, um monstro de marshmallow e espectros de piadas com geeks à imagem de Dan Aykroyd. Era, como postula Manohla Dargis a propósito do tom da comédia de Ghosbusters, uma paisagem "radicalmente diferente" da que agora formam os grandes estúdios nos EUA.
Agora, em vez de Murray, Aykroyd, Harold Ramis e Ernie Hudson, chegam Kristen Wiig, Melissa McCarthy, Leslie Jones e Kate McKinnon. Eles são elas e vice-versa – a secretária é agora Chris Hemsworth, o Thor dos blockbusters, que faz comédia como bonitão oco. Em ambos os filmes, o protagonismo é para comediantes que começaram a ter reconhecimento na televisão e em programas como Saturday Night Live e cujas carreiras no cinema já são rentáveis; o argumento não se leva muito a sério; a qualidade final não é a de uma obra-prima mas também não é arrasada pela crítica profissional. Partilha com o original, como resume A.O. Scott, crítico do New York Times, “uma qualidade média e genérica”.
Caça-Fantasmas, a refundação, é mais um produto da lojinha de nostalgia em que Hollywood se tornou, mais uma aposta em fórmulas e títulos reconhecíveis em vez de inovação. Mas por cada crítica à “ganância” do estúdio houve um lamento por o elenco ser feminino. “Falta de respeito pelos homens”; “ódio aos homens” lia-se pela Internet.
“A coisa que mais ouvi nos últimos quatro meses foi ‘Obrigada por arruinares a minha infância’”, descreveu o realizador Paul Feig em Março de 2015. Tinham passado poucos meses desde que anunciou o seu elenco e estava-se em pleno período de debate público sobre a igualdade em Hollywood, seja nas histórias que conta seja nos empregos e pagamentos que oferece. Houve cartas abertas, estudos, discursos nos Óscares. Ainda assim, “agora estão a fazer Caça-Fantasmas só com mulheres, o que é que se está a passar?”, perguntou o candidato republicano Donald Trump num vídeo na Internet.
Fazer as Caça-Fantasmas em 2016 foi uma escolha politicamente correcta, uma quota preenchida por directiva e não por opção criativa? Paul Feig disse à Entertainment Weekly que quis “recomeçar” com “novas dinâmicas” e não copiar “um filme sagrado”. Foi buscar mulheres, algumas das quais já conhecia do seu trabalho mais sonante, Bridesmaids, sendo que há cerca de uma década, quando ainda se falava de um terceiro Caça-Fantasmas (há um Ghostbusters 2, de 1989), já havia planos para incluir mulheres na equipa.
Mas desde 2014, do Reddit às redes sociais, os comentários ou vídeos de YouTubers (homens e algumas mulheres) falam de “lixo feminista” ou de “ganância”, e foram além da opinião para a ameaça de boicote, ou o que parece ser uma espécie de campanha para minar os resultados do filme. O seu trailer tornou-se no que mais recebeu “dislike” – ou “não gosto” – na história do YouTube, sendo o primeiro vídeo relacionado com cinema a entrar no top 100 dos filmes mais criticados no site. Actualmente, acumula quase um milhão de polegares invertidos contra pouco mais de 270 mil “gostos”.
Em sites como o IMDB, já era arrasado mesmo antes de estrear – sobretudo por votantes masculinos. No Metacritic, tem um quadro inusual de avaliação para um filme do seu segmento, como analisam jornalistas e especialistas do sector: os críticos profissionais reagem de forma maioritariamente positiva e o público arrasa-o. Alguns críticos que deram uma apreciação positiva aos filmes nos seus jornais foram acusados de ceder ao “politicamente correcto” ou de estarem a soldo do estúdio.
“É o problema da Internet: é uma pequena, pequena minoria que grita mais alto e os media dão-lhe tempo de antena, mas não reflectem a maioria muito mais vasta”, defende Feig à Associated Press sobre aqueles que McCarthy se limita a chamar “as pessoas doidas”.
Entretanto, esta semana aquilo a que Kate McKinnon – a actriz cuja interpretação está a torná-la a sensação do filme – chamava de “sexismo arreigado” assumiu novas proporções. Leslie Jones, a única negra no grupo e a única que não é cientista – mais uma decisão “questionável” para personagens negras em filmes, segundo o crítico do New York Times Wesley Morris, mas que para a actriz não tem importância – tornou-se um alvo em particular. Começou a receber mensagens racistas ou imagens pornográficas, algo que começara já em Março e que, quatro dias depois da estreia do filme nos EUA, passou a republicar na sua conta no Twitter. Declarou-se “dormente” pelo “ódio” que lhe enviaram e acabou por decidir “em lágrimas” fechar a sua conta. A rede social já sinalizou algumas das contas que enviaram mensagens ofensivas, tendo uma delas, pertencente a um jornalista conservador, sido bloqueada.
O filme, que conta com as participações dos Caça-Fantasmas originais Murray e Aykroyd tanto no ecrã quanto na produção, custou cerca de 136 milhões de euros e fez 41 milhões de receitas brutas de bilheteira no seu primeiro fim-de-semana (foi batido por A Vida Secreta dos Nossos Bichos, que se estreia em Portugal a 18 de Agosto). “É a maior estreia de uma comédia de acção real em mais de um ano e chegámos a um público que é tanto novo quanto nostálgico”, disse Josh Greenstein, responsável pela distribuição da Sony, ao Deadline. Mas para além dos números, Caça-Fantasmas é, como escreve a revista Atlantic, “um dos maiores pontos de inflamação cultural do ano”.