Agora não, estou a enviar uma mensagem a alguém no espaço
A narrativa é sólida, contudo, Lifeline ficará na memória por receberem uma mensagem de alguém numa lua como recebem uma mensagem da vossa mãe.
O início da aventura é igual para todos: “Olá”, escreve alguém desconhecido na vida de todos os jogadores. Seguindo-se: “Alguém consegue ver isto?” E aparecem dois dos botões iluminados mencionados no parágrafo anterior. Como num concurso em que temos duas caixas à disposição, as opções: “Quem é?” e “Consigo ler”. A escolha é de cada um e, como é de fácil adivinhação neste tipo de circunstâncias, é o rachar do caminho eleito pelas nossas decisões; algumas com mais estrondo e mais difíceis, outras quase de circunstância. O início é igual para todos, porém, o final não, com Lifeline a ter vários desfechos possíveis.
Mas de onde chegam estas mensagens? Estamos a contracenar com Taylor, estudante que num concurso de ciências ganhou uma viagem espacial. Ia a caminho de Tau Ceti IV quando a sua nave Varia sofreu um desfecho tão apetecível às obras de ficção científica: despenhou-se numa lua. Não se sabe de mais sobreviventes para já; Taylor, só, em terreno desconhecido, inóspito; o desespero antes da alegria de encontrar recipiente para as suas mensagens.
O jogo coloca-nos no papel de guiarmos quem o protagoniza, tomando as decisões que achamos mais correctas ou que a nossa curiosidade pensa pertinentes. Mas não demora muito a encontrar laivos de uma escrita apurada e profunda o suficiente para ficarmos curiosos com o que aí vem. A narrativa foi escrita por Dave Justus, autor que já tinha dado cartas em The Wolf Among Us, e onde brilha mais é na personalidade que conseguiu dar a Taylor. Logo no início temos oportunidade de lhe perguntar se estava bem, ao que respondeu num tom sarcástico sem ser demasiado corrosivo; esboçando um sorriso e não um insulto em quem joga.
Taylor começa a descrever o que vê e nós a imaginar, tal como num livro de que nos vão chegando resumos. Explora o local onde a nave se despenhou ou desloca-se até um cume? Manda-me outra mensagem a dizer que fica mais longe do que era esperado, que as pernas parecem gelatina e que “boa, agora só consigo pensar no quanto quero gelatina”. É nestes apartes que, além de ficarmos a juntar as peças de um puzzle sobre o que se passa à sua volta, unimos peças suficientes para conhecermos Taylor, o seu interior.
Mais tarde descobrimos da Capitã Aya e sem entrar em pormenores, a escolha se a devemos levar até à cura ou a cura até ela. A narrativa não se ensaia muito para encurralar o jogador, em fazê-lo coçar a cabeça enquanto pensa nos desfechos viáveis a cada uma das opções. Ou como quando Taylor tem que parar para vomitar porque o que vê é demasiado pungente, mesmo aí nunca transparece a sensação de um enojar gratuito, com Justus a optar por uma via mais humana de descrever humanos que se fundiram entre si ou com o metal aquando do acidente da nave. Perante isto, optei pela opção que me pareceu mais humana: “Sinto muito”.
Por entre humor assertivo, imagens que se vão formando sobre um local que nunca visitaremos e o desenvolvimento da personagem, começamos e continuamos a querer saber o que se passa. Até onde me levará esta história que moldo a cada decisão? Será que Taylor vai sobreviver? A cada resposta o aguçar da curiosidade, pois o jogo está pensado de forma a que não exista muito preenchimento narrativo, apesar de por vezes o roçar.
Estabelecida que está a qualidade da narrativa, não é por aqui que Lifeline brilha mais nem é por aqui que encontrarão as suas falhas. A maneira como é apresentado ao jogador é pelo qual ser á lembrado. O interface a imitar as mensagens escritas não é à toa: as mensagens são em tempo real e a produtora foi ao ponto de imitar a forma como as mensagens do vosso irmão, namorada ou tia chegam ao telefone. Taylor, mais que personagem e protagonista, é algo orgânico através da maneira como interage com o jogador. No ecrã bloqueado do iPhone, onde foi analisado, entre chamadas para emails, chamadas perdidas e SMS que ainda não foram lidos, estão as notificações que foi deixando enquanto estávamos ocupados.
Quando Taylor diz que vai explorar o caminho leva o jogo consigo, ou seja, é o jogador que espera pelo jogo e não o contrário. Diz-me que avisa quando lá chegar e deixa o jogador com a mensagem “Taylor is Busy” (Taylor está ocupado). Estranho. Espero. A aplicação não deu erro e está a funcionar, por isso não é um desses mistérios técnicos. Espero e pouso o telemóvel para fazer outra coisa. Taylor segue a sua vida e eu sigo a minha. Passado algum tempo recebo uma notificação no ecrã bloqueado do telefone. É um novo email. Passado mais algum tempo recebo outra notificação. Desta vez é Taylor a dizer-me que tem as pernas feitas em gelatina, como provavelmente já leram.
Há uma barreira que se derruba criando-se outra: não mandamos no ritmo do jogo, o que atiça a curiosidade e fez-me levantar quase tantas vezes o telefone por Taylor como por uma pessoa que não fosse feita de código. Quero saber o que se passa, o que viu e o que lhe aconteceu. E quero-o saber já e como não posso, o jogo impingiu-se na minha rotina diária sem que desse por isso. Ironicamente, quanto mais distante, mais imersivo.
Os truques não se ficam por aqui. É noite onde Taylor está depois de continuada ajuda da minha parte. Taylor vai dormir e fica sem dizer nada durante seis horas. Seis horas no mundo em que está e seis horas no meu. Antes tinha-me pedido um favor: se era seguro dormitar perto de um reactor. Para tal, pediu-me para fazer uma pesquisa na Internet: se 150 rads podiam matar uma pessoa durante uma noite. Podia ter ignorado o seu pedido, contudo, minutos depois estava no Google, segundos depois estava na Wikipédia a aprender que “entre 150 a 200 rads aplicados a um corpo em menos de um dia pode causar um síndrome mas que normalmente não é fatal”.
Taylor parece ir evoluindo com o passar do tempo. Em determinada altura informa-me que tem tempo para ir explorar. Deve voltar à Varia antes do anoitecer. Sem a minha escolha, informa que vai verificar que tudo está fechado na nave, faz a mochila e vai à sua vida. Diz que me manterá informado pelo caminho: e eu fico à espera das suas novidades. A linha entre um conhecido real e um conhecido ficcional nunca chega sequer a fina, muito menos ténue, mas é curioso e até certo ponto fascinante ficar à espera que uma personagem me dê notícias das suas aventuras.
É um conceito interessante mas com falhas: não muito ocasionalmente, o avançar da narrativa é contado em mais de dez notificações de uma ou duas linhas cada, o que pode fatigar alguns jogadores. E é verdade que depois de alcançar um dos desfechos do jogo uma vez desbloqueamos a opção para poder editar as escolhas, quase como um rebobinar se não ficarmos satisfeitos com a consciência, e também é verdade que caso o “terminem” duas vezes têm acesso à opção de acelerar o tempo, porém, ficarmos alguns minutos à espera do que queremos saber no momento pode-se traduzir ocasionalmente na frustração e não num incentivo à curiosidade.
De Lifeline ficará a narrativa interessante e escolhas que estão, em certos momentos, à altura da Telltale; mas ficará sobretudo a maneira como usa as capacidades do dispositivo onde foi publicado. Mesmo colocando a ímpeto curioso de lado, é eficaz porque no início estamos exaltados com a consulta do telefone, se o jogo está a funcionar. Quando o encanto inicial começa a desvanecer, lá recebemos uma notificação, um lembrete que Taylor continua ali, a tentar viver. E voltamos a ser colocados em modo “lifeline”. Lemos e escolhemos e voltamos aos afazeres. E de repente, a meio de um filme ou de uma refeição, passa-nos pela cabeça a pergunta sobre aquela vida.