Entrevista a Ingrid Betancourt: "Escrevi este livro ora a chorar, ora a rir"
No primeiro livro, Com Raiva no Coração (2001), Ingrid Betancourt era uma mulher apostada em mudar a Colômbia. Era uma jovem senadora, combativa e disposta a tornar o seu país - desfeito pelo narcotráfico, a corrupção e a guerra - num lugar respirável. Apontava os corruptos e favorecia o diálogo com a guerrilha. Até o Silêncio Tem Um Fim, publicado agora em Portugal pela editora Objectiva, é o relato do preço que pagou pelo sonho: 2321 dias refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Obrigada a caminhadas até os pés sangrarem, privada de comida, de tratamentos, de intimidade, acorrentada e humilhada, chegou a desejar morrer. O seu carácter afirmativo irritava os algozes. Salvou-a o ter recusado a lógica da selva. Foi resgatada pelo Exército colombiano, em Julho de 2008. Hoje ainda quer mudar as coisas, confessou ao PÚBLICO, numa breve passagem por Lisboa.
Disse durante o seu cativeiro que no fim quereria ser uma mulher diferente. É?
Muito. Muito diferente.
Em que é que mudou?
Na consciência de que se pode ser melhor. Vivemos numa sociedade que nos formata. Na selva tomei consciência de uma realidade muito diferente: uma pessoa não tem que ser o que não quiser ser. E isso implica um grande esforço, porque o que não se quer ser é algo que está lá muito em cima, são metas muito ambiciosas, implica uma pessoa enfrentar-se a si mesma e transformar-se. Quando digo que sou uma mulher diferente, isso é mesmo verdade, não tanto por considerar que consegui as mudanças que quis, mas porque me tornei consciente de que me fui transformando e que cada vez o consigo melhor.
E como se processou essa transformação?
Através da dor. É assim que se dá esse despertar da consciência. É ela que permite veres-te de outro modo.
Escrever este livro ajudou-a?
Foi parte dela, sim, sem dúvida.
Uma forma de catarse...
Não foi pensado como tal, mas acabou por ajudar.
Obrigando-a a recordar?
Tive que voltar a mergulhar nesses momentos, com tudo o que estava a sentir, os odores, a luz ou a falta dela, as pessoas à volta, com tudo o que estava a pensar. Sensações muitos tácteis, físicas, emocionais e também espirituais. Houve fases em que disse: "Não, disto não me quero lembrar." Porque não gostei de como me portei, reagi, pensei. Mas concluí que fora o que se passou e, então, quis deter-me nesses instantes, reflectir e perguntar-me o que é que se tinha passado.
E aguentou essa tensão.
Escrevi este livro ora a chorar, ora a rir. Olhe: foi uma espécie de alpinismo espiritual.
Esse passado ainda se manifesta?
Em tudo. Positivamente, pela grande vontade que tenho de viver, e negativamente porque há coisas que uma pessoa não controla, como pesadelos, insónias, odores que não suporto... Quando tenho de ir ao campo, fico cheia de medos, do cheiro da terra molhada ou de vegetais cortados. E não gosto de ouvir helicópteros. São coisas que me produzem angústia e até reacções físicas.
Tem tido apoio psicológico?
Agora menos. Sinto-me muito bem.
Acha que as pessoas entendem o que se passou?
Penso que sim. Temos todos bagagem para sabermos do que se está a falar. Não precisamos de ir aos pormenores mais extremos. Nos acampamentos, por exemplo, estávamos sempre em cima uns dos outros. Ora, as pessoas sabem o que é falta de espaço. E que quando isso acontece os ânimos exaltam-se.
Uns terão entendido melhor, como [os filhos] Mélanie e Lorenzo?
Sim. O meu sequestro foi o de uma família inteira. Marcou-nos de maneira diferente, mas a todos.
A Juan-Carlos Lecompt, o seu companheiro na altura, também?
Penso que para ele também foi um momento muito duro. Obviamente as suas reacções foram diferentes. Tomou decisões na sua vida, decidiu vivê-la com outra pessoa, o que é normal. Afinal foram seis anos e meio em que ninguém sabia se eu estava viva ou morta.
Ele escreveu um livro... [Ingrid e Eu, Uma Liberdade Agridoce, 2010]
Sim. Precisou de justificar o que fez e deitar a culpa nos outros, em particular em mim. E depois os livros tornaram-se um instrumento de fazer dinheiro, para muitos através do escândalo. E a figura pública era eu.
Entretanto fez novos amigos no cativeiro.
É verdade. E para toda a vida. Somos como uma família.
Fala com eles com frequência?
Sim, muita. Com Lucho, diariamente, com Gloria, com Jorge Eduardo, com Pinchao, com William Perez, com Orlando, com [o luso-americano] Marc, que me disse uma vez que gostava muito de vir a Portugal.
Não referiu Clara Rojas.
Escrevemo-nos algumas vezes por email. Eu tenho amizade por ela. E penso que independentemente de tudo o que aconteceu entre as duas isso é o que é valioso.
Como recebeu o livro dela [Memórias do Meu Cativeiro, Caleidoscópio, 2009]?
As memórias de Clara foram ditadas por uma série de circunstâncias. As críticas que me fez, os comentários amargos foram questões de momento.
Enquanto refém, os guerrilheiros foram crescendo na agressividade consigo. Porquê?
Em todas as relações humanas há uma erosão com o tempo. Num primeiro momento as pessoas mostram o melhor que têm. Mas depois outros sentimentos se sobrepõem. Numa relação em que há um dominador e um dominado, o primeiro vai-se tornando mais sofisticado e o segundo mais submisso...
E aqui encontraram uma mulher que reagia, o que os irritava?
Claro. Compreendi muito depressa que não podia deixar que assentasse dentro de mim a ideia de que estava sequestrada. Eles queriam que eu aceitasse a ideia de que eram revolucionários e tinham o direito intrínseco a sequestrarem-me...
E a Ingrid nunca o aceitou?
Nunca, nunca, nunca! Por isso tentei fugir várias vezes, enquanto os meus companheiros tentavam adaptar-se.
Houve mais casos de fugas para além de Pinchao?
Sim. Marc tentou escapar uma vez, quando helicópteros sobrevoaram um acampamento. O capitão Bermeo, um dos presos militares, também. Conseguiram soltar-se das correntes, mas capturaram-nos uns 50 metros depois.
Alguns dos seus companheiros tentavam agradar aos guerrilheiros em troca de favores. Nunca teve essa tentação?
Em alguns momentos tive de baixar a guarda, sim. Uma pessoa não aguenta estar permanentemente em luta. Tentei ser amável com eles. Mas nunca em troca de favores especiais.
Em algum momento perdeu a esperança?
Sim. Houve momentos em que senti que não iria sair dali com vida. E provavelmente a morte era então a melhor opção. Não que estivesse disposta a ir buscá-la ou a suicidar-me - todos pensámos no suicídio, e até discutimos como fazê-lo.
E a fé?
Também vacilou. Fiz-me muitas perguntas sobre a realidade da fé, se a minha fé era autêntica. Questionei-me muito, muito, muito. E não vi saídas. Fiz-me as perguntas que havia de fazer sobre a existência de Deus. Não podia aceitar a fé como uma superstição, tinha de usar a razão e encontrar respostas. Neste sentido acabei por fazer um trabalho sério e forte na sua procura. E reencontrei-O.
Era o único caso de fé no seu grupo?
Éramos poucos os que a tínhamos. Às vezes dizia a Lucho: "Vamos rezar?" E ele fazia um esgar. Mas acabava por rezar comigo. Pinchao era ateu. Dizia-me: "Não acredito em Deus." E era muito agressivo. No dia anterior a fugir veio ver-me, falámos do que devia fazer, disse-lhe que se alguma coisa corresse mal que pedisse ajuda ao Altíssimo. Ou que então pedisse a Nossa Senhora, que respondia de certeza. Foi o que aconteceu e ele encontrou uma patrulha de polícias. Converteu-se.
Ansiou que os militares a resgatassem. A sua mãe fazia campanha contra isso temendo fogos cruzados e vítimas entre os reféns. Tinha consciência disso?
Claro que tinha! Mas nós podíamos morrer diariamente por qualquer coisa, por doença, por nos cair uma árvore em cima, com a picada de uma serpente. Portanto para mim morrer durante uma operação de resgate era melhor do que morrer debaixo de uma árvore.
Como é que escreveu este livro? Fez apontamentos na selva?
Não. Foi tudo de memória. Mas há muitas coisas de que não me lembro e de que os meus companheiros se lembram. O que está no livro é o que eu me lembro, momentos emocionalmente tão intensos que ficaram gravados.
Ficaram coisas por escrever?
Ficaram, sim.
Voltará ao tema?
Não. Seria mais do mesmo. E foram 2321 dias de cativeiro, muitos dias.
Escreveu que queria aprender para não sentir o tempo inútil. O que é que aprendeu na selva?
Uuuuuuuuuuui!! Um mestrado, um doutoramento sobre a condição humana!
E de que forma pode usar isso agora a favor de outras pessoas?
É o que estou a tentar fazer. Uma das coisas é dizer às pessoas que podemos ser diferentes. Essa descoberta para mim foi essencial. Não estamos condenados a ser o que somos. Podemos ser seres completamente diferentes. Custa? Sim. É muito difícil? Sim. São processos que podem durar anos? Também. Mas é uma conquista diária. Todos os dias nos confrontamos com a nossa pequenez, o nosso egoísmo, a nossa mesquinhez, a nossa falta de compaixão. E todos os dias, à noite, podemos fazer essa revisão.
De que maneira é que isso pode ajudar os que ainda estão cativos?
Pode ajudar o mundo a ser melhor. Algum dia, essas pessoas que têm outras em cativeiro vão entender que o mundo se move de outra maneira. Mas se nós não mudarmos, como vamos esperar que eles mudem?
Esse é um discurso político?
Penso que sim. Não da política das cucarachas, mas da política em que eu quero estar.
Com Raiva no Coração [o título do primeiro livro] acabou?
Acabou.