Tudo em família

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Everybody in Our Family, do romeno Radu Jude

A família é o tema central do concurso internacional: filmes sobre a família e que pertencem à grande família do cinema de autor. Por Jorge Mourinha

A culpa, claro, é toda da família.

Poucos temas serão ao mesmo tempo tão universais e intransmissíveis, tão pessoais e tão partilhados, tão mesmo ali à mão de semear para servir de inspiração para a arte, popular ou esotérica, narrativa ou plástica. O acaso faz bem as coisas: os onze filmes da competição internacional do Indie 2012 são filmes "em família", "de família", "sobre" a família. O que até pode ser previsível quando se sabe que a competição se restringe a primeiros e segundos filmes (e há a célebre frase de que os principiantes devem sempre falar daquilo que melhor conhecem), mas deixa de o ser quando olhamos para os filmes.

A família pode ser o tema ou destes onze filmes, mas num momento de crise, recessão e incerteza como este é-o de um modo particular. A recentragem destes filmes na família não evita as questões sociais que a rodeiam, antes usa-as como pano de fundo, e transplanta-as para uma paisagem familiar que as cristaliza, relativiza ou sublima. No desequilibrado mas intrigante O Som ao Redor, do brasileiro Kleber Mendonça Filho, ambientado numa rua de condomínios fechados no Recife, a família confunde-se com a classe social; no absurdismo existencial grego do enfurecedor L, de Babis Makridis, é impossível não ver uma referência ao modo como a crise nos obriga a pôr em causa tudo o que estava adquirido. E quase todos estes filmes o fazem de um modo que levanta questões mais do que dá respostas, propondo ao espectador aventuras, explorações, forçando as fronteiras da linearidade narrativa ou do género. O que, ao mesmo tempo, é uma força, porque lhes dá uma identidade pessoal e intransmissível, e uma fraqueza, porque restringe a sua exploração ao circuito de festivais, num mercado que parece cada vez mais voltado para a fórmula.

Talvez por isso se devesse falar mais, à volta do Indie, de cinema "de autor" mais do que de "cinema independente". Gaspar Noé dizia ao Ipsilon há semanas que só o investimento do próprio dinheiro do cineasta era garante de independência total, coisa que na maioria do cinema de autor ou independente não acontece - dos onze filmes da competição, apenas um não foi produzido com subsídios estatais ou municipais, e isso porque é oriundo de um país, os EUA, onde não existe um sistema de apoio federal estabelecido.

Mas é significativo que esta "internacional do cinema de autor" se articule hoje mais à volta de um outro tipo de família que também vem ao de cima nas escolhas do Indie: a ideia clássica das cinematografias nacionais, mesmo que eles não assumam uma consciência disso. Tal como aconteceu com os "cinemas novos" que atravessaram o globo no pós-Nouvelle Vague, os actuais cinemas nacionais ou regionais respondem a características ou modelos que nos habituámos a identificar com este ou aquele país: o naturalismo da Roménia, o surrealismo da Grécia, a verborreia dos EUA, o frio clínico da Áustria, a inquietação silenciosa da América Latina. Mas os filmes tanto melhores são quanto mais forem capazes de transcender o mero caderno de encargos para propor uma nova leitura.

Dois exemplos felizes são os dois melhores filmes do concurso deste ano. Everybody in Our Family, segunda longa do romeno Radu Jude, pega no modus operandi da nova vaga romena - takes longos; naturalismo de cenários, iluminação e representação; ausência de música; sátira dos absurdos do quotidiano - e faz-lhe um tuning brutal, escarninho, claustrofóbico. Na prática, é um colapso nervoso registado em tempo real, onde uma quezília familiar entre um casal divorciado descamba numa batalha campal no interior de um apartamento de Bucareste. Imagine-se a Separação de Asghar Farhadi colorida pela Guerra das Rosas de Danny de Vito e perceba-se como Everybody in Our Family entra por territórios de violência emocional que o cinema romeno até hoje nunca explorou.

Por seu lado, Still Life, estreia do austríaco Sebastian Meise, pega no gélido teatro da crueldade a que nos habituaram os filmes de Michael Haneke, Ulrich Seidl ou Michael Glawogger e insere-lhe uma dimensão emocional ao confrontar uma família com a revelação das fantasias do pai. Meise permite ao espectador criar empatia com as personagens em vez de nos tornar meros espectadores, perturbados mas distantes, dos acontecimentos.

Se Still Life é uma ficção assumida, um outro excelente filme na selecção joga-se na fronteira entre ficção e documentário. L"Estate di Giacomo, primeira longa do italiano Alessandro Comodin (montado pelo português João Nicolau), parece inscrever-se numa vertente de cinema povero e assumidamente desafiador que está a vir ao de cima em Itália, por exemplo nas experiências de cineastas como Pietro Marcello (La Bocca del Lupo, a concurso no Indie 2010) ou Michelangelo Frammartino (As Quatro Voltas). Comodin constrói uma evocação solar e luminosa de um "verão invencível" (paracitar k. d. lang), mas onde nada é o que parece e a aparência documental é uma restituição da verdade emocional mais do que da verdade dos factos. Filme "muito lá de casa", ganha-se nessa aparência de artesanato feito à mão, mas é também isso que o impede de se elevar mais alto.

No entanto, é também aí que reside a magia que o Indie sempre provou ter. A sua competição oficial sempre se resumiu a primeiros ou segundos filmes, excluindo um cineasta a partir da terceira longa (é por isso que Terri, terceiro filme de Azazel Jacobs, a concurso em 2008 com Momma"s Man, é apresentado numa das secções paralelas) ou quando o filme já está adquirido para distribuição local (caso de The Loneliest Planet, segunda obra de Julia Loktev, cuja estreia Day Night Day Night foi uma das revelações do concurso de 2007). Isto quer também dizer que é preciso afinar os binóculos e ter consciência que não é legítimo esperar que todos os primeiros e segundos filmes sejam obras-primas. Consagrados de hoje como Aki Kaurismäki ou Apichatpong Weerasethakul não apareceram vindos do nada; é preciso tempo e experiência acumulada para o talento se revelar por inteiro. É isso que é fascinante no Indie - aperceber sinais, reconhecer talentos.

A esse nível, a edição 2012 é exemplar: as escolhas competitivas, caucionadas pela presença em festivais como Roterdão (que premiou De Jueves a Domingo,da chilena Dominga Sotomayor), Locarno (vencido por L"Estatedi Giacomo), Viena (homenageado paralelamente) ou Berlim, trazem quase todas olhares que procuram a sua própria identidade sem deixar de se inscrever naquilo que os rodeia. Que se começam a distinguir dentro da família a que pertencem.

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