Só gosto da minha vida a partir dos 20 e tal anos

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ilustração: Bernardo Carvalho

Começou no jornalismo e entrou pela literatura. Primeiro para crianças e jovens, depois para os outros. Poesia incluída. Diz-se "amigodependente", recebe e faz chamadas às três da manhã. Já foi menos católica, pensa por frases e fala sozinha na rua. Não entra em cemitérios e tem poucas memórias de infância. Hoje vai a uma festa temática: 30 Anos de Livros

Há 30 anos que escreve livros. Mas foi há mais tempo que Alice Vieira enviou o primeiro texto para um jornal. Não o publicaram. Tinha 14 anos e recebeu uma carta do Diário de Lisboa a pedir que não desistisse. Assinatura: Mário Castrim. Tentou uma e outra vez e viu muitos textos serem impressos. Casou com ele, o remetente.

Uma paixão de 40 anos. "Mas paixão mesmo", diz Alice quando fala do jornalista e escritor. Tinham 23 anos de diferença de idades e só se conheceram "ao vivo" depois de muitos telefonemas e cartas, quando a escritora foi trabalhar, como jornalista, para o Diário de Lisboa. Pouco depois, iria para o Diário Popular. "As pessoas, quando têm um relacionamento, não devem trabalhar no mesmo sítio. Seja marido e mulher, pai e filho. Por isso, atravessei a rua e fui para o Diário Popular." Seguiu-se o Record e o Diário de Notícias.

Castrim foi a pessoa mais importante da sua vida. Toda a gente a desaconselhou a viver com ele, pela diferença de idades e pelos problemas de saúde que lhe adivinhavam. "Vais ser a enfermeira toda a vida", diziam-lhe. "Afinal", conta, "quando tive o "cancro da praxe" e fui operada, ele é que foi o meu enfermeiro. A quimioterapia custou-me muito. Há 20 anos, os produtos eram mais agressivos e eu vomitava bastante. Ele obrigava-me a ir imediatamente para o jornal trabalhar. Acho que nem estive um mês de baixa. E ainda bem que me obrigou. Se não fosse isso, eu podia ter ido abaixo. Assim, tinha mais que fazer do que estar infeliz."

E recorda como sempre a estimulou a escrever, nunca deixando de ser muito crítico. "Não tenho dúvida de que aquilo que sou, aquilo que faço, aquilo que escrevo, foi muito obra dele. Sinto, no entanto, algum remorso por ele se ter afastado da escrita por minha causa. Para eu poder fazer a vida que fiz, ele não publicou tanto como devia. Escrever escrevia (tenho muitos inéditos), mas não publicava."

E repete várias vezes: "Tive sorte, tive sorte". E ele? "Acho que sim. Ele também teve."

"Não me lembro de mim"

Alice Vieira, de 66 anos, passou a infância com tias velhas e não gostou. A memória decidiu poupá-la a recordações e não a deixa lembrar-se de quando era criança. "Recordo-me de muito pouca coisa da minha infância. Lembro-me assim de momentos do género: eu estou aqui sentada ao pé de alguém. Mas não me lembro de mim. Acho que é uma defesa."

No entanto, quando se pergunta se era maltratada, responde: "Não. Eu era super bem tratada. Mas maltratar não é só andar ao estalo às crianças. Eu vivi sempre com pessoas que me diziam (e era verdade) que não eram nem o meu pai nem a minha mãe. E portanto eu não era filha deles e não tinham nada de fazer aquilo que estavam a fazer. Foi sempre um relacionamento um bocado frio, uma coisa entre velhos. Eu só encontrei miúdos da minha idade quando entrei para o liceu. Até aí, nunca tinha tido gente da minha idade ao pé de mim. Roubarem-me essa parte, foi complicado. Isso pode dar cabo de uma pessoa". Não deu.

Depois de conseguir ter amigos, tornou-se, como diz, numa verdadeira "amigodependente". E alguns até a fizeram ser de novo mais católica. Porque são padres, poetas ou missionários. "É impossível não se ficar tocado por estas pessoas." Pode telefonar a um amigo "às três da manhã". Mas também os atende a todos e a qualquer hora. Eles sabem que os acompanha até ao fim. Só não entra no cemitério. "Eu tinha uma tia muito mórbida. Todas as quartas-feiras, íamos para o Alto de São João limpar as campas. E logo ela, que era má para as pessoas e lhes fazia a vida negra. Depois de mortos é que eram bons." Esta é das suas poucas memórias claras de infância. "Isso [o passado] serviu-me para ser a pessoa que sou hoje, para ser profundamente optimista, acreditar que as coisas se resolvem desde que queiramos. Não podemos estar à espera que as soluções caiam do céu, do céu só cai a chuva. Mas só gosto da minha vida a partir dos vinte e tal anos."

Depois do curso tirado, Germânicas, como se designava na altura a actual licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Inglês e Alemão, a escolha de ser jornalista não foi lá muito bem vista pela família. "Quando acabei o curso, já era maior e vacinada. Jurei e cumpri que fazia a faculdade. Tinham de aceitar a minha escolha, mas nunca foi profissão de que gostassem muito. Nós ainda hoje rimos porque, quando se falava das sobrinhas, as tias diziam: a fulana é médica, a outra é advogada e a Alice, essa, lá anda na vida que ela escolheu... Parecia que eu era uma perdida", diz, no meio de uma gargalhada.

Mas o jornalismo era, desde cedo, uma paixão, não o escolheu para contrariar as tias. "Ver as coisas publicadas, com o nome cá em baixo. Eu assinava Alice Vassalo Pereira. E, depois, o cheiro do chumbo conquistou-me definitivamente." Até hoje. Continua a escrever crónicas para o Jornal de Notícias e para as revistas Activa, Audácia e Tempo Livre. "E ainda adoro fazer entrevistas."

Os livros vieram mais tarde, em resultado do prémio da Gulbenkian, em 1979, de Literatura Infantil Ano Internacional da Criança pela obra Rosa, Minha Irmã Rosa. Na altura, ganhou 75 contos (375 euros) e levou os filhos a Atenas: Catarina, hoje com 40 anos, e André, com 39.

"Às vezes, penso: eu comecei a escrever tarde, podia ter começado mais cedo. Mas depois penso que não. Se eu tivesse começado antes... mas eu não sou nada a favor de quem começa muito cedo. As pessoas têm de viver um bocadinho, têm de crescer. Quando digo que podia ter começado uns anos antes, se calhar não podia. Ou tinha começado pior, não sei."

Em 30 anos, já publicou mais de 70 livros, vendeu perto de 2 milhões de exemplares e ganhou dez dos mais significativos prémios literários da literatura infantil e juvenil. Foi nomeada este ano para o Astrid Lindgren Memorial Award, um dos mais importantes prémios nesta área, com o valor de 500 mil euros.

Não escreve por dinheiro, mas gosta de ser paga pelo seu trabalho. Irrita-se que lhe digam que a escrita é um hobby. "Vou a escolas quase todos os dias e durante as horas em que estou lá não estou a desenvolver o meu trabalho de escrita. Estou a trabalhar no horário de outras pessoas. Vou porque gosto, porque vejo satisfação nos olhos dos miúdos e isso é bom. Mas não tenho obrigação de fazer com que os meninos gostem de ler. Noventa por cento das escolas nem sequer compram os meus livros. E pagam as minhas visitas a contragosto. Quando eu quiser dar o meu trabalho, dou, mas sou eu que escolho."

No entanto, tem muita dificuldade em dizer "não" quando a convidam, mesmo se o pagamento não está previsto. "Agora, felizmente, a Leya trata disso. Gere a minha agenda e eu já não tenho de andar a negociar com as escolas. O ano de 2010 já está completo. A Leya foi o melhor que me aconteceu." Mas não só por isto.

Romance em Porto Santo

A escritora divide-se entre quatro editoras (Caminho, Texto, Casa das Letras, Oficina do Livro e Dom Quixote) e o facto de pertencerem todas ao mesmo grupo facilita-lhe a vida. "No outro dia, o patrão da Leya dizia-me: quer trabalhar em mais alguma editora? Diga, que a gente compra. Eu dou-me bem com eles porque sou muito profissional e cumpridora. Eu preciso de prazos. Se não me põem prazos, não faço nada. E trabalho muito mais e até melhor se tiver muitas coisas para fazer ao mesmo tempo. Isso vem do jornalismo. Há uma sobrecarga de trabalho e a gente despacha tudo (jornalismo diário, claro).

Há autores que me dizem: "Como é que tu podes saber que daqui a uns dias tens um livro pronto? E se não consegues?" Tenho de conseguir. Essa relação de trabalho para mim é boa. Por exemplo, agora sei, mas sei rigorosamente que até dia 16 [hoje], mesmo dia 16, tenho de entregar um romance." Chama-se Meia Hora para Mudar a Minha Vida, "como a cantiga da Adriana Calcanhotto".

Será mais um romance juvenil com uma rapariga de 16 anos como protagonista. Uma actriz de teatro amador. Passa-se em Lisboa, sempre Lisboa. "Sou muito lisboeta e não gosto de escrever sobre coisas que não conheço. Não dá para chegar a um sítio, estar lá dois dias e escrever uma história. Ou é um romance histórico ou então não consigo. Só tenho um romance juvenil que é metade em Lisboa, metade na zona das Gafanhas, Aveiro, que é donde eu sou: Viagem à Roda do Meu Nome."

Hoje, depois da festa (e de entregar o livro), ficará mais liberta para pensar num romance de base histórica que lhe anda a passear na cabeça há uns tempos. "Passa-se na ilha de Porto Santo, no séc. XVI. Fui à Madeira e aproveitei para recolher umas informações que faltavam. Em 1533, houve uma heresia, a heresia dos profetas, que pôs a ilha a ferro e fogo. Só no Porto Santo, nem chegou à Madeira. Quando estava a escrever sobre os Açores, sobre uma heroína de Angra do Heroísmo, descobri esta história. Por isso, a palavra "profeta" é um bocado pejorativa na ilha. E não digo mais nada." Não é preciso.

Alice Vieira tem quatro netos (Adriana, de 14 anos; Diogo, 10; Pedro, nove; Isabel, cinco), muitos amigos, muitos leitores e um namorado. Às 17h, têm encontro marcado no Jardim de Inverno do Teatro de São Luiz, em Lisboa. Porque está de parabéns.

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