quando se perde a casa já se perdeu tudo
Aumenta o crédito malparado, as dívidas que não podem ser pagas. Cresce todos os dias o número de execuções, penhoras, acções de despejo. Por não conseguirem pagar os empréstimos, milhares de famílias já perderam as casas, ou estão em risco de as perder. Cada vez mais pessoas vivem na vergonha, na culpa e no medo e isso paralisa-as, anula-lhes a capacidade de reagir. Um país em dívida não consegue lutar pela sobrevivência. Uma viagem pelo mundo das dívidas, dos agentes de execução, das penhoras e dos despejos
Fogueteiro. Segunda-feira, 18 de Junho, 5 da tarde. O agente de execução José Mário Santiago e o seu colaborador, o funcionário forense Rui Almeida, de fato cinzento e fato escuro, respectivamente, tocam à campainha do segundo andar de um prédio do Fogueteiro, Seixal. Uma mulher grande, de redondas bochechas, abre a porta.
"É a senhora Maria Leonor Assis? Somos representantes do tribunal, vimos fazer uma penhora de bens." Mário Santiago diz isto com uma voz neutra, mas firme. A mulher assente com a cabeça e ele perscruta num relance o interior do apartamento. Uma mesa com um Cristo e muitos santinhos desenha-se na obscuridade, flores e gravuras com flores, um sofá partido, com mantas e almofadas.
A mulher balbucia: "Mas o meu irmão não está em casa, tenho de lhe telefonar", e fica à porta, de pé, olhando os intrusos, ambos de cabelo grisalho penteado para trás com gel, um de estatura média, outro corpulento. Este é o que assusta à primeira vista, ainda que fique um passo atrás, aquele o que atira a matar, embora irrepreensível nos modos.
Leonor parece imobilizada pelo medo. A cara começa a franzir-se-lhe ligeiramente e a tremelicar, mas só quando o gemido se torna audível se percebe que chora.
"Oh minha senhora, por amor de Deus. Isso não adianta nada." Mário Santiago tem o processo na mão, tudo legal, fase C, penhora de bens ao fiador de um devedor de mais de 14 mil euros de rendas em atraso. Como este não tem bens, foi despedido do emprego nos bombeiros e está no hospital à espera de ser operado, a penhora recai sobre o avalista, no caso Leonor, de 54 anos, que recebe uma pensão de invalidez de 200 euros mensais e se levantou hoje às quatro da manhã para ir à igreja buscar um pacote de arroz. Vive com o irmão, Herlander, electricista, que ganha 400 euros por mês e atende agora o telefonema de Leonor. "Mano, estão aqui uns senhores do tribunal, tens de vir."
"Eu falo com ele." Mário, já dentro de casa, agarra no telemóvel. "A sua irmã está nervosa, diga-lhe que se acalme. Já sei que ela ganha 200 euros, o senhor 400, mas esta dívida tem de ser paga. Vou penhorar-lhe os bens. O quê? Está a propor pagar-me 20 euros por mês? Para uma dívida de 14 mil e tal euros, com juros a vencerem constantemente? Isso está fora de questão. Desculpe? Eu não devia vir a esta hora? Não, não, isto foi um problema que o senhor arranjou, não fui eu que lho arranjei. Não levo nada? Ai não? O senhor está a perguntar ou a afirmar?"
Rui entra para a cozinha e começa a fazer a lista. Fogão, mesa... "Não podem levar a máquina de lavar roupa, que é da minha irmã." Leonor está de novo a chorar. Mas acha que deve corrigir uma informação: "O meu irmão não ganha 400 euros, ganha 500." Um sofá partido, duas camas de ferro, anotam os Agentes de Execução. "Isto não vale nada."
Antes de Herlander chegar, entra outra irmã, Manuela Gonçalves, com o filho. "Estes meus irmãos vivem aqui numa situação muito difícil", explica ela. "Pagam 400 euros por mês de renda. Já pedi à Segurança Social que lhes desse uma casa, mas foi recusado. Herlander já está a pagar a prestações, por vinte e tal anos, a dívida de uma moto de que também foi fiador." Manuela desata a contar a história da família. Mário e Rui ouvem-na com relutância, concentrados na eventual menção involuntária de algum bem que possam penhorar. Nada lhes interessa além de cobrar a dívida. Mário impacienta-se com o pranto de Leonor: "Minha senhora, isto não se resolve com ter peninha das pessoas."
José Mário Santiago e Rui Almeida trabalham numa firma que não tem grandes problemas económicos. José Mário é solicitador desde 1982, mas, desde 2003, exerce a tempo inteiro funções de agente de execução. Como membro da direcção da Câmara dos Solicitadores, foi na altura um dos autores da proposta apresentada ao Governo para que os solicitadores pudessem realizar execuções, tarefas antes reservadas aos tribunais. Após um curso específico, os solicitadores podem agora tornar-se agentes de execução, responsabilizando-se por todos os trâmites processuais das execuções, desde a citação até à penhora de bens, de acordo com o estipulado pela lei. Têm consideráveis poderes. Podem penhorar salários, créditos e contas bancárias, penhorar e vender bens, fazer acordos com os executados, aceder aos ficheiros da Segurança Social, pedir o levantamento do sigilo bancário e fiscal, executar acções de despejo. Podem até, quando não vêem outra solução, e com autorização do advogado do credor, perdoar uma dívida.
Resumidamente, os processos decorrem assim: quando o cliente não paga, o credor, quer seja um banco, quer um fornecedor de mercearia ou de serviço de telemóvel, avança com um processo judicial. Após a sentença, o tribunal nomeia um agente de execução (no caso dos bancos, estes podem escolher um da sua preferência).
Num primeiro passo, o agente de execução faz a citação ao executado. Se não o encontrar, ou se ele se recusar, afixa um edital, ou marca uma hora e um lugar, com duas testemunhas, e considera-o citado. Vinte dias depois vem a penhora. Nesta altura, tem de citar os credores preferenciais, que são as Finanças e a Segurança Social. Os bancos também estão à frente de outros credores, se tiverem uma hipoteca. Penhorados os bens, o executado é notificado e tem um prazo de dez dias para pagar o que deve. Se não o fizer, há que remover os bens, guardá-los num armazém e vendê-los. Se o bem for um imóvel, terá de ser leiloado em tribunal, por carta fechada. Hoje em dia, é o próprio banco que o compra, na maior parte dos casos. Só se não houver propostas se avança para uma negociação particular, ou se recorre a uma agência imobiliária.
No escritório de José Mário Santiago, que ocupa um andar e uma cave, em Almada, trabalham seis solicitadores, um agente de execução (ele próprio) e vários funcionários forenses. Milhares de processos enchem as prateleiras (mais de dois mil estão neste momento "vivos", o que quer dizer que a execução está em curso, em alguma das suas fases). Um sistema informático específico controla todos os trâmites e todos os pagamentos, e é ali, no escritório, que a grande maioria dos casos é resolvida, através de penhoras de ordenados, de contas bancárias ou de créditos. Só quando nada disto é possível se torna necessário ir para a rua.
Os agentes de execução recebem honorários por cada acto realizado, e também comissões, definidas na lei, sobre as dívidas recuperadas. Houve por isso uma corrida à profissão, desde que começou a crise.
Em consequência, os processos de execução tornaram-se mais eficazes e céleres. Chegavam a levar dez anos, e agora concluem-se em um ou dois, diz Mário. "As execuções eram o cancro dos tribunais." Como profissional liberal, um agente de execução é muito mais ágil. Desloca-se em viatura própria, enquanto os funcionários de Justiça ou das Finanças são geralmente obrigados a usar os transportes públicos e saem do trabalho às 5 da tarde, quando qualquer agente de execução experiente sabe que é às 9 da noite que se encontram as pessoas em casa.
Houve um boom de escritórios de agentes de execução, e havia trabalho para todos, mas, nos últimos dois anos, segundo Mário, a situação começou a mudar. Não é que tenha diminuído o número de dívidas: mas baixou a probabilidade de as recuperar. "A taxa de insucesso é enorme. Dantes, chegávamos a uma habitação ou um estabelecimento, ameaçávamos penhorar os bens, colocávamos um camião à porta para os carregar, e a pessoa fazia logo uns telefonemas, para amigos ou familiares, e, em muitos casos, acabava por saldar a dívida. Agora não. Já esgotou todas as possibilidades, não tem mesmo como pagar."
José Mário Santiago acha que "é preciso abrandar". A partir de certa altura, as acções de execução tornam-se apenas um castigo para os devedores e um tormento para os próprios credores, que gastam dinheiro em advogados e nas operações de penhora, sem qualquer resultado.
No mês passado, os próprios trabalhadores do Fisco chegaram a conclusão semelhante: o seu sindicato (STI) entregou na Assembleia da República uma proposta de suspensão de penhoras e vendas de casas quando resultam de dívidas de IMI, os proprietários se encontrem desempregados ou em situação económica difícil e o imóvel tenha valor inferior a 175 mil euros. Não adianta, conclui o sindicato, destruir a vida dos que não podem e não vão pagar.
Feijó. Segunda-feira, 11 de Junho. Os dois homens de fato entram na pastelaria. "Estamos aqui com uma ordem do tribunal, viemos penhorar os bens." O proprietário, de rosto macilento e olhar extenuado, manda entrar para o escritório. Um adolescente está sentado ao computador e continua lá, a ouvir tudo. "Tenho estado no hospital, coloquei um pacemaker", começa o homem. É raro que a pessoa não refira uma doença ou uma morte. "Estive internado, não sei que compromisso é esse", acrescenta ele, que já foi informado, notificado, citado daquela dívida de 2585 euros a um fornecedor de croquetes congelados. "Com as alcavalas do tribunal, tem 3298 euros a pagar. Como quer fazer?"
A dívida foi contraída no tempo da anterior gerência, é a desculpa seguinte, ainda que no processo não exista menção de outras gerências. Foi um "consultor" que apareceu a propor tomar conta do estabelecimento por sete anos, explica o homem. "Como eu já tinha dívidas, e estava doente, aceitei." O "consultor" instalou-se e "geriu" como lhe apeteceu a empresa, em nome do proprietário: vendeu bens, contraiu dívidas, desviou dinheiro para a sua conta pessoal e desapareceu.
Mário e Rui não duvidam da história. Já ouviram falar deste "consultor" e outros congéneres: aproximam-se de empresários desesperados com dívidas, prometem equilibrar-lhes as contas, depois afundam-nos ainda mais, antes de partirem para outra empresa, ou directamente para a prisão.
É um dos negócios em alta no país em dívida. Outro são as empresas de cobranças tipo Homem do Fraque. Competem com os agentes de execução, embora Mário considere os seus métodos ilegais. Tal como o são os de certas "agências" informais, que usam a ameaça, a violência e a extorsão. Os usurários clandestinos (outro negócio em expansão) usam este tipo de serviço, mas também o fazem, cada vez mais, grandes empresas e instituições. Já nas fronteiras da legalidade estão os advogados que se especializaram em "vender" todos os bens de uma empresa, antes de o processo de execução chegar à fase da penhora. Ou os que tratam de processos de insolvência pessoal, ou de "gestão" das dívidas com o objectivo de não as pagar, aproveitando os buracos da lei.
"Vamos penhorar tudo", conclui Mário. E Rui prepara as folhas próprias para a descrição dos bens, mas o dono da pastelaria informa que já está tudo penhorado, por outro agente de execução, por causa de outra dívida. Mário consulta o processo. Os automóveis também já foram penhorados, pelas Finanças. Nada mais há a fazer, senão negociar.
O proprietário retira de uma prateleira dossiers com oito planos de pagamento de outras dívidas. Propõe saldar esta em dez prestações, começando em Setembro. Mário aceita. Senta-se com Rui a fazer contas, com a enorme calculadora que traz na pasta. Fica tudo escrito.
Mário vai dando uma olhadela pela papelada do executado, em busca de algum envelope com a morada de um banco. É sempre bom saber onde o devedor tem conta, não venha a ser preciso penhorá-la.
Ninguém tem apenas uma dívida. Quando um processo chega à fase da penhora, o executado já está, por regra, a contas com vários credores. Os créditos foram sendo contraídos para pagar outros, até se chegar a um momento de ruptura - já não se consegue pedir mais. É um ciclo que geralmente dura anos e cujo término é quase sempre o empréstimo da casa.
Nos últimos anos, desde a falência do Lehman Brothers e a crise do subprime americano, em 2008, o agravamento da crise traduziu-se em Portugal num aumento das dívidas. É o seu efeito mais sensível, ao nível concreto, das famílias e das empresas.
O crédito fácil, designadamente à habitação (Portugal é dos países europeus onde mais pessoas vivem em casa própria), elevou os níveis de endividamento acima dos limites do sustentável. Bancos e empresas financeiras emprestaram indiscriminadamente, sem análise nem garantias, e agora que os salários baixam, o desemprego e a carga fiscal aumentam, o incumprimento multiplica-se.
Segundo dados da Associação dos Profissionais de Empresas de Mediação Imobiliária, os portugueses entregaram aos bancos, nos primeiros três meses deste ano, 2300 imóveis, por não conseguirem pagar os respectivos créditos. Uma média de 19 casas entregues por dia, mais 74% do que em igual período do ano passado. Mas há mais de 140 mil famílias em incumprimento.
No que respeita à totalidade dos créditos, houve no primeiro trimestre deste ano mais 27.822 famílias que não os conseguem pagar. Uma média de 306 novos casos por dia. Há quase 700 mil pessoas com o crédito vencido, a maior parte dos casos no crédito ao consumo, embora seja no da habitação que o aumento é maior.
Quanto às Finanças, nos primeiros cinco meses do ano venderam 12.787 casas penhoradas e têm 2586 prestes a serem vendidas, num total previsto de 36 mil casas até ao fim do ano, o que representará um aumento em relação aos anos anteriores. Em 2010, alienou 27.117 e 28.460 em 2011. Além de venderem 95 casas por dia, as Finanças já fizeram mais de 25 mil execuções, só entre Janeiro e Março. Doze por hora. No total, foram realizadas no ano passado 92.402 execuções, segundo dados do Instituto dos Registos e do Notariado. Em 2009, tinham sido 75.566.
Segundo a Lista Pública de Execuções (LPE), há 21.263 devedores crónicos, que não pagaram as suas dívidas a instituições financeiras, fornecedores, créditos ao consumo, arrendamentos, água e electricidade, telecomunicações, etc., e não têm forma de as pagar. Valor total das dívidas por cobrar, desde 2009: 332 milhões de euros, a maioria das quais por particulares.
No início deste ano, 100 mil portugueses tinham os salários penhorados, e os pedidos de ajuda ao Gabinete de Apoio ao Sobreendividado, da Deco, aumentaram 55% em relação ao ano passado. Desses pedidos, 90% vêm de cidadãos que já estão em incumprimento. Mas isto são apenas números.
Os bancos sabem que as prestações do crédito à habitação são as últimas que as pessoas deixam de pagar. Antes incumprem com as prestações do carro, os créditos ao consumo, as facturas de telemóvel, de água e electricidade. Tudo isso é considerado menos importante do que a casa, que tem um valor identitário e uma função de esteio e referência. Enquanto estão na posse da sua casa, as pessoas ainda acreditam que podem lutar.
"A casa é a identidade", diz à 2 Ana Moniz, psicóloga e psicoterapeuta que tem acompanhado vários casos de pessoas com problemas criados por dívidas. "A casa é mais do que o lugar físico. É também as escolhas que fazemos, o que decidimos pôr lá dentro, a decoração. Representa geralmente a emancipação, depois de se sair da casa dos pais. Perder a casa significa um regresso a essa condição anterior. Significa perder a autonomia como indivíduo."
A penhora da casa não se equipara portanto à de outros bens, ainda que fossem mais valiosos. Raramente, aliás, se perde uma casa que já está paga, o que significa que, efectivamente, só se possui dela uma pequena parte, ou nenhuma. Mas não é o valor material que está em causa. "Se se perder a casa num terramoto, a estratégia de comportamento é completamente diferente." Se se perder a casa por não a conseguir pagar, "o problema é que se perde a capacidade de controlo de problemas".
Caso Mané. Bairro da Cidade Sol, Santo António da Charneca, terça, 12, meio da tarde. Mário consulta o processo. É um caso típico. Teodósio contraiu um empréstimo de 60.700 euros para aquisição de uma casa. Logo a seguir contraiu outro, de 3 mil euros, sob a hipoteca do mesmo imóvel. Depois deixou de pagar. Com os juros, a dívida ascende a 92.400 euros.
A casa foi penhorada e vendida ao próprio banco por 55 mil euros. Teodósio foi despejado, mas ficou ainda com uma dívida de 43 mil euros.
A situação está longe de ser rara, embora haja quem a considere ilegal. Um juiz em Portalegre emitiu uma sentença que pode vir a fazer jurisprudência. No caso julgado, o banco ofereceu ao seu cliente que não conseguia pagar a casa 70% do valor patrimonial do imóvel, que estava fixado em 117 mil euros. O banco quis comprar a casa por 82.250 euros, ficando o cliente obrigado a pagar o resto. O que o juiz decidiu foi que o devedor não teria de pagar mais do que os 117.500 euros. O banco não pode, no momento em que o vai comprar, avaliar o imóvel por um valor inferior ao da avaliação que serviu de base ao empréstimo, sob pena de incorrer no delito de enriquecimento sem causa.
Teodósio não passou por este juiz e são 43 mil euros que Mário tem de o fazer pagar. "Vou cair-lhe em cima", pensou. Avançou primeiro com uma penhora de ordenado, mas ele já não trabalha na empresa. Não há mais imóveis, não há veículos. Apenas uma nova morada, detectada nos dados das Finanças. Talvez haja lá bens.
É um prédio velho, num bairro habitado quase só por africanos. Rui toca a todas as campainhas. Nada. No terceiro andar, apanha uma mulher à porta de casa. "Quem mora ali é um homem a quem chamam o Mané, mas há quase dois anos que não o vejo." O vizinho de baixo diz que agora vive lá outra família e que o Mané foi para França.
Mário Santiago já não tinha muita esperança neste caso. Com 43 mil euros de dívida, sem trabalho nem rendimentos e depois de ter perdido a casa, o que levaria o Mané a ficar ali à espera do agente de execução?
Bobadela. Dia 12, fim da manhã. "Venho penhorar tudo o que o senhor aqui tem."
"Oh diabo. Isso é que é mau", responde o dono da gráfica, que, diz ele, já faliu. Não há pessoal a trabalhar, mas as máquinas ainda estão lá. "Quanto vale esta máquina de impressão?"
"Custou 140 mil euros", diz o homem. Mário aponta: 5 mil euros. "E esta? Quarenta mil? Então vale 2 mil." O homem fica incrédulo. Diz apenas: "Quanto mais depressa levarem tudo, melhor. Estou aqui há 20 anos e nunca ganhei nada com isto. Vinte anos perdidos." Mete-se no carro e sai.
"Apanhámo-lo por sorte", comenta Rui. "Esta foi à tangente."
Rui Almeida foi durante anos vendedor de automóveis, até Mário o ter convidado para trabalhar com ele. A carreira surgiu-lhe por acaso, mas agora está satisfeito. "A minha família não gosta do que eu faço. Chegaram a dizer-me que não tenho coração. Mas eu não conseguiria fazer outra coisa", diz ele. "Todos os dias me levanto feliz por vir trabalhar."
Põe um sentido de justiça na profissão. Acha que os credores têm direito a receber e os devedores a defenderem-se. No fundo, a missão dele é pôr as partes a comunicarem, para se entenderem.
Rui gosta de conversar. Alto e avantajado, deve ser assustador como um abutre para quem tem dívidas e o vê entrar porta dentro. Mas depois é ele que desanuvia o ambiente. Diz piadas que de início parecem ofensivas. Mas quem o pode levar a sério com aqueles dentes superiores salientes e aquele ar de rapazola? "É que nem ginjas!", diz ele da facilidade com que faz as penhoras.
Parece que não tem deferência pelas pessoas, mas não a tem é pelas dívidas. Elas são o que são e têm de ser pagas, mas às pessoas é devido sempre o mesmo respeito. Assim sente o funcionário forense Rui Almeida.
Picapau Amarelo. Dia 11, meio-dia. "Venho aqui penhorar isto tudo. E dentro de dias trago o camião para carregar os bens."
"Sem problemas", responde a mulher que explora o café, de avental e tatuagem no pescoço.
"Quer que faça isto com discrição, para que os clientes não se apercebam?" Mário sempre duro, mas sempre agarrado às suas regras éticas. A um canto, três clientes jogam dardos. Numa mesa, outros quatro assistem ao jogo. Na parede, um papel diz: "Lê com atenção: se entraste a pensar em ficar a dever, podes sair. Aqui não se serve sem dinheiro. Muito obrigado. A gerência."
"Não se preocupe. Faça à vontade o que tem a fazer", responde a mulher. "As mesas e cadeiras são da Delta. A máquina de café também."
Rui faz a lista. Uma tostadeira: 5 euros. Um micro-ondas: 10 euros. Uma torradeira, uma arca frigorífica, uma bancada inox, uma caixa registadora. "Aquela televisão mede quantos centímetros? Uns 80": 100 euros.
"Tudo em mau estado, não vale nada", constata Mário. "Às vezes penhoramos, não para vender os bens, mas para fazer pressão sobre as pessoas." Ou seja, o objectivo não é que o exequente ganhe alguma coisa, mas que o executado perca.
Neste caso, a dívida é de 25 mil euros, que aquele equipamento velho e gorduroso nunca pagará. "É jogo de cintura", comenta Rui. A mulher que agora explora o café paga uma renda (ilegal) à filha da verdadeira executada, que portanto nada sofrerá com a penhora.
Caso Titanic. Terça-feira, 12 de Junho, meio-dia, bairro da lata da Quinta da Lagoa, ao lado do enorme edifício da igreja do Ministério Internacional Batista em Chamas, em Santa Marta do Pinhal, Corroios. Rui já aqui veio. A última vez à procura de uma mulher chamada Tina Turner, que não encontrou. O bairro é um emaranhado de barracas, entre ruelas de terra com os esgotos a correr. Tudo é clandestino, não há água canalizada e a electricidade vem das puxadas ilegais que se enovelam nos pinheiros e dispersam pelas antenas parabólicas da MEO instaladas nos telhados de tábuas e zinco.
As barracas têm números sem qualquer ordem, pelo que seria impossível encontrar a morada de Sara se o marido não viesse ter com os agentes ao largo do cabeleireiro Rosinha. Eles seguem-no por entre garagens de farrapos, e ruelas de entulho, com jovens com ar de poucos amigos especados nas esquinas (embora Rui, numa consulta prévia na esquadra da PSP mais próxima, tenha ficado a saber que esta é uma hora segura, pois os elementos dos gangs ainda dormem).
O homem chega à barraca onde está a mulher e um filho, de vinte e tal anos, a ver televisão. Um enorme ecrã plasma com excelente som, sintonizado na TV Record, da IURD. Manda entrar.
"Eu estou muito mal do coração", diz Sara imediatamente. "Eu estava em Cabo Verde, não estava cá. Não sei nada de que se trata."
Rui e David Dias, o outro funcionário forense que veio com ele, olham para os papéis. O devedor é o Clube Internacional do Livro. Em 2005 vendeu a Sara um conjunto home cinema intitulado Titanic, por 1589 euros, em 30 prestações. Sara não pagou nenhuma. A dívida vai em 2400 euros. O sistema de televisão e colunas de som foi entregue em 2006, diz no processo.
"Não sabemos de nada", diz Sara. O marido foca-se no pormenor da morada. Não está correcta, diz ele. Ali é o 149A, não o 129A. "Fiquei muito comovido quando vi o número aí escrito. Não pode ser, não é a mesma pessoa."
Sara levanta voz: "Eu não matei ninguém!" E o filho, até aí calado, levanta-se do sofá para vir exigir o número do processo. Sara vai buscar o passaporte para confirmar, com os carimbos, que estava em Cabo Verde em 2005. "Alguém assinou o papel em meu nome. Os vizinhos aqui ficam com as cartas uns dos outros." Só pode ser isso. O filho, que estava no país em 2005, já voltou para o sofá, interessado em seguir no canal da IURD uma reportagem sobre o crime no Brasil. Não há mais nada na barraca para além do gigantesco ecrã e das duas colunas pretas com seis altifalantes cada. Dir-se-ia tratar-se do home cinema Titanic.
Sara recusa-se a assinar a citação, perdendo por isso o direito de contestar a execução. Nem precisa de o fazer. É fácil desaparecer no labirinto anónimo do bairro da lata. A ilegalidade e a miséria são um refúgio, uma protecção.
Caso do Infantário, manhã de 11 de Junho. Santa Marta do Pinhal, não longe do bairro da Quinta da Lagoa. "Eu já não sou gerente, o dono teve um AVC..." diz a mulher que vem abrir a porta. As crianças estão a acordar da sesta. "Não sei que dívida é essa. Isso foi no ano em que a minha sobrinha morreu, talvez por isso não me lembre. E já não sou gerente desde o mês passado. Mais uma coisa em cima de mim."
A dívida são 1500 euros, explica Mário. O credor é uma empresa de camionagem, que levou uma vez as crianças à praia. O infantário nunca pagou.
"Tenho de lhe penhorar os bens." Mário fica no escritório e Rui vai fazer a lista. Onze mesas pequenas. Nove berços em banda. Um micro-ondas. Um televisor com um leitor VHS.
Ao lado do leitor estão cassetes com os filmes Pigi e A Princesa. Rui passa pela sala onde as crianças brincam, espreita para a casa de banho. As mini-sanitas são difíceis de levar. Na cozinha há um frigorífico. Em cima estão duas caixas com as sandes do lanche já feitas.
A penhora dos bens está feita. Dentro de dias um camião virá carregá-los.
Loures. Terça, 12, 9h30 da manhã. Desta vez, Mário e Rui chegam com um advogado, o proprietário do imóvel e um serralheiro. A porta da garagem está fechada. O inquilino, que deve 13 mil euros de rendas, desapareceu sem entregar a chave.
Não basta arrombar a fechadura, porque há uma corrente de ferro por dentro. Com uma serra eléctrica, o serralheiro abre um buraco na chapa da porta. Que estará lá dentro? Algum bem para penhorar?
O objectivo da acção é entregar o imóvel ao senhorio, António Botelho Leal. Mas se houver bens, serão convertidos para pagamento da dívida.
Mas há apenas lixo e mau cheiro. As paredes estão escavacadas até ao tijolo, a canalização e instalação eléctrica foram arrancadas. O contador da EDP está pendurado do tecto, por um fio.
O chão está coberto de excrementos de cão, pedaços podres de roupa e sapatos, uma carteira de senhora. No meio do caos, há um espelho pendurado na parede, a denunciar uma vida que ali persistiu, já depois de toda a degradação. No andar superior, ficaram dois colchões de criança. O inquilino trabalhava na garagem como mecânico e vivia no andar de cima com a mulher e duas filhas. O negócio não corria bem e esteve cinco anos sem pagar renda.
Mas agora não é possível cobrar-lhe as dívidas, porque estava tudo em nome da firma, que faliu. O homem trabalha agora noutra garagem, no bairro de Miraloures. O senhorio foi lá tentar falar com ele, apenas para ser corrido com ameaças. António Botelho Leal tem 70 anos e pouca saúde. Já fez sete operações, custa-lhe andar e não pode enervar-se.
Comprou este prédio há 40 anos. Era um lagar de azeite, depois transformado em fábrica de mobílias, depois em fábrica de peças de automóvel. Para poder habitar o edifício, António fez obras. Instalou vigas e placas, tudo ilegal, porque a câmara não autorizou. Obteve mais tarde a legalização, depois de 30 contos de gorjetas e subornos. "Hoje seriam necessários 300", diz ele. Resta-lhe agora tentar vender o prédio. Não será fácil, no estado em que se encontra. Foi vandalizado pelo próprio inquilino.
É uma situação frequente, diz Mário. Encontra muitas vezes casas, abandonadas pelos antigos proprietários ou inquilinos, a que foram arrancadas torneiras, interruptores, madeira do soalho. Até as janelas e caixilhos de alumínio foram levados, num caso de que se recorda.
O motivo óbvio é levar o máximo, para fazer dinheiro. Mas em algumas situações há apenas destruição, sem pilhagem. O motivo aí só pode ser a raiva.
Ainda mais difícil de entender é quando, pelo contrário, não levam nada. Mário e Rui já entraram em casas em que os proprietários deixaram bens pessoais, roupa, utensílios de cozinha, livros, após a penhora e despejo. Abandonaram até objectos de valor, como uma colecção de canetas ou de isqueiros.
Já viram camas por fazer, com a roupa espalhada, meias e sapatos no meio do quarto, na sala a mesa posta, os pratos ainda com restos de comida. Dir-se-ia que as pessoas tiveram de sair à pressa, ou foram trabalhar e no regresso encontraram a casa fechada. Mas não foi isso. É inexplicável.
"Talvez, quando chegou o momento de irem embora, tivessem querido cortar com todo o passado", é a explicação de Mário. "Talvez quisessem partir para uma nova vida, sem nada que os ligasse à anterior."
Já não é fácil espantar o agente de execução Mário Santiago e o seu funcionário forense Rui Almeida. Viram de tudo, sofreram pressões, ameaças, tentativas de aliciamento. No momento da penhora ou do despejo, as pessoas têm formas diferentes de reagir. Um homem voltou-se para Mário, apontou para o chão, à entrada de casa, e disse: "Está a ver este risco? Daqui o senhor não passa." No despejo, uns recusam-se a sair. Outros fingem não perceber. "O que há de errado com a minha casa?", perguntou um jovem, antes de Mário lhe responder: "O senhor vai ser desalojado neste momento."
Um caso difícil foi o de uma família cigana num bairro que já fora vendido e ia ser demolido. Na primeira visita, Mário e Rui foram recebidos pelo pai de família, de caçadeira em riste. "Ou desaparecem daqui ou faço-lhes o mesmo que fiz ao Martins", disse ele. Que teria acontecido ao Martins? Os agentes optaram por dar meia volta e regressar dias depois com o corpo de intervenção da PSP. "Eu tiro-os daqui, mas vai haver sangue", disse o comandante. Deram-lhes então um prazo de dez dias, após os quais a família ainda lá estava, mas com os camiões carregados, prontos a partir. Mário tinha a certeza de que se reinstalariam no dia seguinte, e por isso levou os caterpillars, que, mal a família saiu, arrasaram tudo.
Noutro caso de despejo, na Amora, a família também se recusou a sair. Era um casal de octogenários, cuja casa estava registada em nome da filha. Esta pediu um empréstimo para fazer obras na cozinha, que não pagou. A casa foi penhorada e vendida, e como o casal se recusasse a sair, Mário apareceu com a polícia.
"A casa é minha! Fora daqui!", gritou a mulher, antes de cair redonda e ser levada pelo INEM. O marido sentou-se a chorar. "Eu que toda a vida trabalhei na fábrica de cortiça, agora sou escorraçado como um cão da minha própria casa." Surgiu o neto, de um metro e noventa, aos gritos e pontapés às portas. Foi levado pela polícia. A vizinhança veio toda ver. Foi um dia inteiro a carregar camiões com o mobiliário. O casal ficou a viver com uns vizinhos, meses depois o homem morreu. A dívida era de 12 mil euros.
Quando os processos chegam às mãos de Mário Santiago, já expressam uma fase muito avançada do drama humano. Uma fase em que já não há garantias, nem para o exequente, nem para o executado e não fazem sentido pruridos ou cerimónias. Foram ultrapassadas as barreiras da urbanidade. É entrar por ali e tirar o que se pode.
Já aconteceu arrombar-se uma porta, e só quando já todos os móveis estavam removidos se perceber que, por trás de uma porta, num pequeno quarto, havia uma mulher a dormir. Abriu os olhos, viu polícias, advogados, serralheiros, perguntou: "O que aconteceu?"
"A senhora está a ser despejada."
Há o caso de um homem que é simultaneamente exequente num processo e executado noutro. Mário recuperou 3 mil euros que lhe deviam, mas não lhos entregou porque ele os devia a outro. E há a história daquele homem a quem Mário já despejou três vezes.
As áreas geográficas mudam, bem como as classes sociais, mas, quando se entra na zona da degradação e da perda, o comportamento humano não diverge muito, quer se esteja num sexto andar sem luz do bairro da Jamaica, quer numa vivenda com piscina da Sobreda.
"Uma vez fomos despejar um tipo que vivia num apartamento de luxo em Lisboa", conta Rui Almeida. "A renda era de 2 mil euros por mês, mas ele não pagava há um ano. Tocámos, ele não abriu a porta. Só veio quando ouviu o som da broca na fechadura. Era um tipo dos seus 50 anos, sozinho. Estava divorciado, a mulher e os filhos tinham ido embora. Já tinha perdido o carro, a água estava cortada."
Mediante a ordem de despejo, meteu alguma roupa num saco e saiu. Mário e Rui ficaram a revistar a casa, buscando bens para penhorar. Abriram os armários e as gavetas e só encontraram material pornográfico. Revistas e filmes, uma vagina de borracha, duas bonecas de encher. Havia também um ecrã plasma e um cadeirão em frente. "Ele passava ali os dias a ver filmes pornográficos. Completamente abandalhado, derrotado pela vida", concluiu Rui. Mas o que o mais impressionou foi a árvore de Natal. Ainda estava montada, apesar de a quadra ter passado há muito. "Uma árvore de Natal com as luzinhas a acender e a apagar, em pleno Verão."
"As dívidas provocam algumas das emoções mais agressivas que se podem experimentar: vergonha, culpa e medo", diz a psicóloga Ana Moniz. Significam mais do que as perdas materiais que realmente se sofrem, e muitas vezes são vividas como um drama mais grave do que realmente é. Porque "a vergonha, a culpa e o medo impedem a pessoa de se confrontar com as situações. A estratégia é antes esconder, evitar, encolher-se. Não se reage, não se resolve, não se fala com quem poderia ajudar".
A vergonha, a culpa e o medo "são imobilizantes". Quando está dominada por esses sentimentos, "uma pessoa não consegue ser criativa. O pensamento divergente e a criatividade desaparecem".
Desaparece também, portanto, a capacidade de lidar com as situações, e resolvê-las. "O sentido de auto-eficácia diminui muito. Baixam as expectativas do que se pode conseguir. Uma pessoa ganha medo de falhar, e não arrisca. É um pouco como aquelas crianças que, na escola, nunca põem o dedo no ar. Têm medo da reacção dos outros se falharem. Por isso vão ficando para trás, tornam-se realmente maus alunos, e esse sentimento de falhanço pode acompanhá-los a vida toda."
A casa significa uma ligação ao território e à comunidade. É um vínculo, uma corrente que garante o sentido de pertença. Perdê-la ou senti-la em perda faz as pessoas sentirem-se usurpadoras no seu próprio mundo. É como perder o pé e a gravidade, pedalar em falso, caminhar no vazio.
Cacém, meados de Junho. Joana sente algum conforto quando vê o pai agarrado ao livro preto. É um daqueles cadernos de merceeiro, com capa dura e as páginas divididas em colunas de deve&haver. Desde que o comprou, José Carlos trata-o como um fetiche. O "livro do pai" - é como o objecto é conhecido em casa. Joana e Marta sabem que é um livro de contas e experimentam uma certa segurança com a sua existência. Representa o controlo que o pai ainda detém sobre a situação.
Depois de ter perdido o emprego numa grande empresa, há dois anos, José Carlos atravessou um período de desorientação. "Não sabia o que fazer", diz ele. Percebeu logo que, com 45 anos, não encontraria trabalho no mesmo ramo, e gastou a indemnização recebida no arranque de vários negócios que falharam um a um.
Curou uma depressão, depois abriu uma loja. Mas raramente vende o suficiente para pagar a renda. A mulher, Raquel, 39 anos, é professora, mas tem um terço do salário penhorado. Marta, 15 anos, frequenta o Secundário, Joana, 19, a faculdade. Contas feitas, a situação é insustentável. Mas ainda não quebraram.
As contas deles: compraram um apartamento, em 2005, na zona do Cacém, por 95 mil euros. O banco emprestou a totalidade do valor, e mais, sob a hipoteca do mesmo imóvel, um montante de 25 mil euros "para obras", que na realidade foi gasto na compra de um carro e uma série de electrodomésticos. Ficaram com uma prestação mensal de cerca de 600 euros. Na altura, José Carlos ganhava, líquidos, cerca de 1000 euros por mês, e Raquel 1100. A prestação da casa correspondia a uma taxa de esforço inferior a um terço dos seus rendimentos.
Quando decidiram, há pouco mais de um ano, investir na loja, pediram 30 mil euros de empréstimos de curto prazo a juros elevados a duas empresas financeiras. Ficaram com mais uma prestação de 500 euros mensais, para honrar esses créditos. Só a poderiam pagar se a loja facturasse, o que não sucedeu.
Após vários meses de incumprimento, as empresas de crédito avançaram com acções judiciais, que resultaram na penhora do salário de Raquel. De acordo com a lei, a penhora não pode incidir sobre mais de um terço do ordenado e o trabalhador não pode receber menos de um ordenado mínimo nacional.
O que Raquel recebe agora não chega a 700 euros, dos quais 600 se destinam à prestação da casa. Teoricamente, José Carlos pode, todos os meses, ter uma grande encomenda na loja. Na prática, vende cada vez menos. Em resultado, ficam por pagar prestações da casa, meses a fio. O banco envia cartas com ameaças.
A família reduz drasticamente as despesas. Só produtos dos mais baratos no supermercado, a conta-gotas, zero de extras, zero de férias, zero de hobbies. A angústia é o passatempo familiar.
É aí que entra em cena o livro preto. Tudo é apontado, gastos e receitas, com obstinada minúcia. São listas de números, que José Carlos submete a muitas horas nocturnas de cálculos e projecções, até chegar ao valor necessário para, cada mês, equilibrar a balança. É o valor que terá de facturar na loja e, na maior parte dos meses, não factura.
Nos últimos dois anos, José Carlos encheu-se de rugas e cabelos brancos. Raquel adquiriu uma expressão revoltada, segundo a filha Joana, cuja irmã, Marta, deixou de ter boas notas nas disciplinas do 9.º ano. Joana pressente que, a qualquer momento, pode ter de deixar a faculdade. O pai nunca lho disse, mas ela bem o ouve, à noite, chorar.
"O meu pai está a ficar uma pessoa muito nervosa, eu acho que ele não vai aguentar." O livro preto é uma espécie de arma, um mapa de estratégia e simultaneamente uma prova de inocência. É a relação exaustiva de tudo o que pode ser feito. Garante que não há nada de errado na vida de José Carlos e a sua família. Nem um deslize, uma prevaricação. Não foi gasto um tostão com um bem supérfluo. Está tudo ali escrito, a mostrar que se não houve crime, não pode haver castigo. Tudo irá correr bem.
José Carlos foi ao banco tentar uma solução. Prolongar o prazo do crédito, consolidar a dívida, integrando os empréstimos de curto prazo no contrato de crédito à habitação.
Impossível, responderam-lhe. O prazo já está no limite e o valor da hipoteca da casa não cobre um aumento do empréstimo. Segundo os valores de hoje, aliás, o apartamento será avaliado em menos de dois terços do seu preço de há sete anos, razão pela qual entregar a casa ao banco também não resolveria o problema. Depois de leiloada, José Carlos ainda ficaria a dever ao banco mais de 30 mil euros (além dos 30 mil que deve à outra empresa, a qual, segundo o contrato, praticamente só recebeu juros, sem nenhuma amortização do capital, durante os primeiros anos). Entregar o andar não é solução e no entanto chegará o dia em que lho virão tirar.
Joana acorda regularmente durante a noite, com ruídos estranhos. Percebe que o pai anda pela casa, atormentado de insónia, do quarto para a sala, da sala para a cozinha, chocando contra as paredes e os móveis como um fantasma exposto e desapossado. Por vezes ouve-o falar com a mãe, com voz desesperada. Distingue-lhe as palavras, sempre as mesmas, proferidas no sussurro estridente de quem está a sufocar um grito: "Não dá! Não conseguimos! Não chega!"
Uma parte dela acha que o pai exagera. Aquilo não pode estar a acontecer com a sua família. "Não fizemos nada de mal." Tem de haver um engano. O pai vai conseguir resolver as coisas. Ele tem as contas controladas, no seu livro. Estamos em segurança. Tudo está escrito no livro preto.
Fogueteiro, 6 da tarde. A família junta-se para representar o seu próprio psicodrama. Para além da dívida que não podem pagar, também têm a renda da casa em atraso, apesar de a Segurança Social já lhes ter pago três meses. "Em breve o senhor estará aqui outra vez por causa desta casa", diz Manuela a Mário.
A situação é confusa. Os problemas estão entrelaçados uns nos outros e as dívidas também. Viviam em Sá da Bandeira, Angola, todos os sete irmãos, mais o pai que trabalhava numa fábrica e a mãe que fazia bolos. Voltaram em 1975, depois da independência. Foram alojados pelo IARN, o instituto de apoio aos retornados, até conseguirem comprar uma casa nas Paivas, Cruz de Pau.
A mãe separou-se do pai, juntou-se com outro homem e comprou outra casa. Viveram lá todos até a mãe se ter separado do novo companheiro e ter deixado de pagar as prestações. Acumulou dívidas, a casa foi penhorada, a família despejada. Os filhos ainda solteiros foram viver com a mãe para uma casa arrendada. Deixaram atrasar os pagamentos. Um dia receberam ordem de despejo e a mãe foi a casa de Manuela contar-lhe o que se passava. Saiu de lá às 6 e meia da tarde a queixar-se de uma dor no peito. Às 7 morreu de ataque cardíaco.
Os irmãos foram despejados da casa arrendada. Herlander ficou desempregado, e arrendou com a irmã Leonor esta casa, o irmão Fernando arrendou outra para ele, com Leonor fiadora. Ninguém paga rendas. Herlander, de sapatos rotos, revela que, graças à bondade do patrão, já gastou adiantado o subsídio de férias do seu emprego de electricista.
Mário Santiago faz um telefonema. Explica em surdina à advogada do credor que não encontrou bens. Decide-se encerrar o processo. Leonor está de novo a chorar e Mário anuncia-lhe que perdoou a dívida. "Faço-o por si. Já que a senhora só ganha 200 euros, e o seu irmão 400..." Leonor agradece, mas corrige: "O meu irmão ganha 500 euros."