Príncipe, uma editora com música nobre
Há uma nova editora portuguesa que considera urgente resgatar "o que está mais abandonado": a música de subúrbio, do gueto, que prolifera à volta de Lisboa. Para já, deu-nos dois magníficos EP de vocação dançante, de DJ Marfox e Photonz. Vítor Belanciano
No início eram duas editoras. Uma liderada pelos Filho Único, Pedro e Nelson Gomes, que nos últimos anos se têm dedicado à produção de concertos e ao agenciamento de artistas, e a outra uma ideia dos Escravos do Zonk, um duo de agitadores e DJ formado por José António Moura e Márcio Matos, também ligados à loja de discos Flur. Da união dos esforços de ambas acabou por nascer a Príncipe, através do lançamento de dois máxi-singles, da autoria de DJ Marfox e dos Photonz, acabados de editar. "Achámos que seria bom fazermos uma cooperativa. Gostamos do trabalho uns dos outros, respeitamo-nos, e fazia sentido um projecto em conjunto", esclarece Pedro Gomes, com José António Moura a acrescentar que o contexto actual também ajudou: "Há muitas coisas que vale a pena divulgar."
A Príncipe é uma editora que nasce por imperativo, da urgência de impulsionar um momento que acham particularmente activo e criativo. "Todo o trabalho que fazemos nos Filho Único tem a ver com necessidade. Aqui também. Já existe música de dança incrível a ser feita aqui há alguns anos, mas fora de alguns contextos muito específicos ninguém a conhece." Pedro Gomes fala em particular de alguma música (kuduro, batida, funaná, kizomba) maioritariamente criada nas zonas que circundam a cidade de Lisboa. "Queremos destapar essa música de forma ética. Essa vai ser uma parte do nosso trabalho, provavelmente a mais surpreendente", diz.
A matriz identitária da editora irá estar em aberto, mas tudo indica que a música de vocação dançante irá predominar, pelo menos nos próximos tempos. Mais uma vez, é a realidade do momento que conta. "O B Fachada, os Gala Drop ou os Tropa Macaca, essa gente de que gosto está toda orientada. O que está mais abandonado nesta terra é a música de subúrbio, do gueto. Música de dança urbana feita em Lisboa. É disso que se trata. É isso que queremos trabalhar: olhar para o que é mais urgente e não tem qualquer veículo para chegar às pessoas."
O nome da editora - Príncipe - remete precisamente para essa ideia de que é possível identificar qualquer tipo de nobreza "mesmo onde ela não é normalmente visível, ou não é tida em conta como tal", diz José António Moura.
Um Timbaland português
A indústria tradicional da música, e as editoras em particular, passam por momentos delicados, mas esse facto não intimida a Príncipe. "Nunca vi as coisas tão bem", argumenta Pedro Gomes, "acho bem que acabe a mama para imensa gente, pessoal dependente do Estado ou de fundações, e exista mais espaço para gente que trabalha a sério. As editoras já não dão dinheiro, os discos também não. A viabilidade disto assume uma escala realista. A maior parte do dinheiro que se fará não será de discos físicos, mas sim dos discos digitais, trabalho de licenciamento e de agenciamento dos artistas que vamos passar a representar."Mas a grande motivação advém do trabalho de divulgação que pode ser feito. "Há gente que faz música em Portugal, ainda muito escondida, e que não faz ideia de como as coisas funcionam. Vamos explicar a essas pessoas, que têm um trabalho de mérito brutal, e que não fazem ideia de que podem ter uma carreira, que podem fazer da música a sua vida. Até hoje nem uma pessoa saiu do gueto português para fazer música do gueto e se safou a nível profissional e vivencial."
A Príncipe irá ser uma editora interessada em captar a realidade Local, mas de vocação global. Para já, existe um acordo de distribuição europeu e um outro para os EUA com "a mais histórica e importante distribuidora americana, a Forced Exposure, uma casa com varias décadas", adianta Pedro Gomes. Mas a grande novidade poderá vir do gigante mercado da América Latina, com a Príncipe a operar em conjunto com o chileno Matias Aguayo - uma das principais figuras da música de dança actual, responsável pela editora Cómeme - para erguer uma nova realidade naquele mercado. "A ideia é criar uma dinâmica de distribuição para aqueles territórios que não existe ainda. Estamos a inventar com a Matias e a Avril [Ceballos], que trabalha com ele na Cómeme, essa nova realidade."
Para já, na Príncipe, existe a música de Marfox e dos Photonz. A do primeiro, no EP de quatro temas "Eu sei quem sou", parte das arritmias serpenteantes do kuduro para uma linguagem electrónica personalizada, criada fora dos espaços tradicionais. "Eu e o Nelson tomamos contacto, em 2007, com uma realidade que não sabíamos que existia: música afro-portuguesa feita no quarto dos putos, música de bairro feita por miúdos que não hip-hop. O que nos deixou banzados foi existir gente a trabalhar kuduro, batida, kizomba ou funana de uma forma modernizada, electrónica e independente. E uma das pessoas que conhecemos nessa altura foi o Marfox. Quando ele nos mostrou o que fazia, vimos logo que era brilhante. Era uma espécie de Timbaland português com 19 anos, altamente influente nos bairros junto de miúdos com menos de 25 anos. Ali toda a gente sabe quem é. Mas falta os outros saberem quem é", explica Pedro Gomes.
O outro EP, dos Photonz, chama-se "Weo": duas longas faixas, electrónica de cariz dançante de excelente efeito. "As faixas dos Photonz não seriam fáceis de editar noutro sítio", reflecte José António Moura, chamando a atenção para o facto de a Príncipe querer ser uma plataforma para que projectos já conhecidos possam mostrar outras facetas. "Eles acabam por dar continuidade à música de dança portuguesa dos anos 90, de editoras como a Kaos. De forma particular, reciclam esse espírito para uma nova abordagem que acaba por já não ter nada a ver com o que era feito então. E quando tem é uma citação, uma homenagem."
A aposta na dimensão local da música que vão editar não acontece, aliás, por acaso. "Cada vez mais é preciso haver uma humanização do trabalho, uma personalização maior do produto, controlo de qualidade", aponta Pedro Gomes. Isso só é possível numa relação de proximidade com os envolvidos, sejam os músicos, o engenheiro de som que tem a seu cargo a masterização - o histórico Tó Pinheiro da Silva - ou os responsáveis pela vertente artística, das excelentes capas dos discos (Márcio Matos) aos vídeos. "É importante ver as coisas com os nossos olhos" conclui Pedro Gomes, "da mesma forma que é tocar, ouvir, sentir mesmo."