Pompeia está a cair, outra vez
O primeiro-ministro desculpa-se com falta de dinheiro, a opinião pública italiana e a Unesco alertam que Itália não está a saber cuidar dos seus monumentos arqueológicos. No final do ano passado, várias estruturas de Pompeia desabaram. Esta semana, foi a vez de o Coliseu de Roma passar para as mãos de privados.
Ruínas antigas, mas não só. Pompeia é um pedaço fundamental da história europeia, uma história que atravessou séculos para chegar aos dias de hoje. Cada caminho, cada casa, cada fresco conta essa história que agora parece mais ameaçada do que nunca. O que restou de Pompeia, na região italiana de Nápoles, sobreviveu à fúria vulcânica do Vesúvio em Agosto de 79 d.C., mas sobreviver ao homem contemporâneo está a tornar-se tarefa complicada.
O desabamento no final do ano passado de um edifício e alguns muros com mais de dois mil anos na cidade soterrada e redescoberta no século XVIII atraiu a atenção não só da imprensa como também dos investigadores na área, que lutam agora por preservar o sítio arqueológico.
O assunto não é novo em Itália e o Governo tem sido alvo de duras críticas por, aparentemente, não investir nos monumentos arqueológicos. A falta de dinheiro é a principal justificação de Berlusconi, que começa agora a abrir as portas à negociação com privados. O Coliseu de Roma é exemplo disso. Esta semana, o primeiro-ministro italiano anunciou a privatização do monumento. O Governo de Berlusconi estabeleceu um acordo com Diego della Valle, dono da marca de sapatos Tod"s, no qual o empresário pagará 25 milhões de euros pelas obras de restauro do Coliseu, beneficiando durante 15 anos prolongáveis dos direitos de imagem do monumento. Para Pompeia não se conhecem planos, mas o jornal económico italiano Il Sole 24 Ore lançou a ideia: "Para a Pompeia que cai aos pedaços precisaríamos não de um concurso de ideias, mas de fundos e um patrocinador, que pague e em troca ponha o seu carimbo colorido ao longo da Via da Abundância." O acontecimento, considerado por muitos como um assunto político, tem corrido jornais em todo o mundo, lançando o alerta para a situação. Estaremos a perder Pompeia?
Foi a 6 de Novembro de 2010 que a Schola Armaturarum Juventus Pompeiani, mais conhecida como a Casa dos Gladiadores, desabou. Era um edifício com uma área de oito metros por dez, e seis metros de altura, na Via da Abundância. Um dos momentos altos da visita a Pompeia, com turistas de todo o mundo a admirar os frescos pintados nas paredes, narrativas sobre a história daquele espaço, onde os gladiadores se reuniam e muitas vezes treinavam antes de entrarem nas lutas mortais no anfiteatro da cidade. A verdade é que ficou reduzido a escombros e agora essa história só poderá ser contada nos livros e através de fotografias. Não é a mesma coisa. "Não existe nada igual a Pompeia no mundo todo", garante João Paulo Oliveira e Costa, coordenador do curso de Arqueologia da Universidade Nova de Lisboa.
Três semanas depois, ruiu o muro que cercava a Casa do Moralista, uma edificação que dista vinte metros da Casa dos Gladiadores. No dia seguinte, tombaram mais dois ao longo da Via Stabiana, uma das principais ruas da cidade. Num mês, foram quatro os desabamentos. Apesar do pouco valor arqueológico, a situação deixou a descoberto uma crescente degradação que está a colocar em risco um dos principais complexos arqueológicos do mundo e uma das principais atracções turísticas de Itália, classificada, em 1997, como Património Mundial da Unesco.
A humilhação
Na altura dos desabamentos, Sandro Bondi, então ministro da Cultura italiano, explicou que nada fazia prever o desastre, atribuindo a culpa dos incidentes às fortes chuvadas que se fizeram sentir. Mas os arqueólogos não concordam e garantem que o Governo foi avisado. "De alguma forma, até temos tido sorte com os colapsos, porque não foram edifícios realmente importantes, têm sido pequenas coisas mas isto que tem acontecido é só um aviso e uma pequena amostra do perigo que Pompeia está a correr", disse, em entrevista à radio italiana Vatican Radio, Andrew Wallace-Hadrill, arqueólogo da Universidade de Cambridge que trabalhou em Pompeia e na cidade vizinha de Herculaneum, também soterrada pela mesma erupção do Vesúvio. "Claro que as chuvas e a infiltração da água são um problema, mas é apenas um de muitos. O primeiro começa na falta de manutenção do sítio", acrescentou o arqueólogo quando questionado sobre as justificações de Sandro Bondi. E garantiu: "Vão ruir mais monumentos."Mas Daniela Leone, do departamento de comunicação da Soprintendenza Archeologica di Pompei, nega que a situação seja essa. "Entendo que esta seja a visão que o mundo tem de Pompeia, mas as escavações são regularmente controladas. Temos que nos lembrar que estamos a falar de uma área arqueológica com dois mil anos, que obviamente tem os problemas normais que qualquer complexo assim enfrenta", explicou ao P2 a responsável.
Justificações que parecem não se reflectir naquilo que realmente está a acontecer à cidade. Ainda antes de tudo acontecer, em Outubro, o jornal italianoCorriere dela Sera dedicou o editorial, assinado por Sergio Rizzo, a Pompeia. Sob o título A Humilhação de Pompeia, o jornalista criticou e denunciou o estado da cidade, assegurando que os responsáveis não fazem nada e por isso a cidade está votada ao abandono. "A verdade é que esta área arqueológica, única no mundo, é símbolo de todo o desleixo e ineficácia de um país que perdeu o bom senso e não consegue mais encontrá-lo", pode ler-se no artigo. "A indiferença política está à vista de todos", conclui o jornalista.
Com o desencadear da polémica, a oposição do Governo de Silvio Berlusconi não foi branda, acusando Sandro Bondi de ignorar as necessidades de preservação do valioso património cultural do país. Os alertas para a ruína iminente de outros edifícios históricos têm-se multiplicado e o Presidente da República, Giorgio Napolitano, descreveu os acontecimentos como uma "vergonha para a Itália". No entanto, Bondi defendeu não existirem motivos para essa vergonha. "Têm sido feitos vários trabalhos no terreno, a culpa do que está a acontecer não é minha. Se sentisse que tinha responsabilidade nos desabamentos, abandonaria o cargo de ministro da Cultura", disse ao jornal britânico The Telegraph em Novembro.
Mas a história deu uma reviravolta. No início de Março, Sandro Bondi anunciou que queria demitir-se. Será um assumir da responsabilidade? O italiano garante que não e, numa carta enviada ao jornal Il Giornale, explicou que o motivo que o levou a tomar a decisão foi a falta de apoio do Governo. "Não tenho apoio de ninguém, nem mesmo quando mais precisei", escreveu Sandro Bondi na carta, referindo-se à polémica dos desabamentos. A demissão, que foi aceite por Berlusconi há duas semanas, lançou mais uma vez a discussão e virou as atenções para Pompeia. No Conselho de Ministros da altura, Berlusconi não só deu a conhecer o substituto de Sandro Bondi, Giancarlo Galán, o actual ministro da Agricultura, como anunciou o aumento dos recursos financeiros do Ministério da Cultura. Gianni Letta, braço direito do primeiro-ministro italiano, explicou à Agência France Presse (AFP) que, através do aumento de um ou dois cêntimos no preço da gasolina, o Governo vai poder ceder mais dinheiro à Cultura. "É um pequeno esforço que os italianos vão ter que fazer", disse, exemplificando que ganharão 20 euros por ano em cada veículo. Do total desse dinheiro, 80 milhões serão destinados a tutelar e a recuperar Pompeia, permitindo à gestão do sítio a contratação de mais pessoal.
Mas afinal o que se está a passar em Pompeia e que riscos corre esta cidade? "O que se passa é que, quanto maior é o valor, maior é a tormenta", disse ao P2 Vergílio Correia, director do Museu Monográfico de Conímbriga. "Pompeia é apenas o exemplo daquilo que se passa um pouco por toda a Europa, inclusive Portugal. É muito difícil convencer as tutelas políticas a investirem no património arqueológico. Muitas vezes, é mais fácil arranjar dinheiro para um projecto novo do que para a manutenção de um sítio arqueológico", explicou Correia, acrescentando que gerir um sítio como Pompeia "deve ser um pesadelo".
Com uma área de cerca de 12 km², Pompeia é o maior complexo românico no mundo, atraindo por ano quase três milhões de turistas. Características que tornam o sítio especial, mas que se revelam as suas verdadeiras fraquezas. "É questionável se o número de pessoas que passam todos os dias por Pompeia é o indicado para o sítio", disse Manuela Martins, presidente da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, explicando que não é desejável que tal aconteça. "Não nos podemos esquecer que Pompeia é um sítio muito frágil e está constantemente submetido a uma grande pressão." Ideia partilhada por João Paulo Oliveira e Costa, que acredita que existe uma procura exagerada. "É demasiada gente para andar por lá", assegurou o professor, destacando, no entanto, que é muito difícil poder fazer alguma coisa para mudar a situação actual. "As pessoas querem e têm o direito de ver, e por isso não se pode simplesmente proibir os acessos. Há uma clara contradição entre o número de visitantes e aquilo que o espaço aguenta", defende, sugerindo que só um estudo aprofundado do sítio poderá dar as respostas aos problemas. "É preciso perceber a verdadeira dimensão e as possibilidades das ruínas."
Nesse mesmo sentido, uma equipa da Unesco já esteve no terreno a avaliar os estragos e o actual estado de conservação da cidade, de forma a identificar possíveis formas de melhorar a protecção deste património da humanidade, incluindo uma nova forma de gestão. "Podemos aconselhar e trabalhar com eles, mas, em última análise, a responsabilidade é das autoridades italianas", explicou num comunicado a porta-voz da Unesco.
"A Unesco não pode fazer grande coisa. Ser classificado como património da humanidade não dá recursos a quem os gere. O máximo que a organização pode fazer é retirar a classificação, o que terá, obviamente, um efeito moral no país. Afinal, é um acontecimento mau para qualquer Governo que se preze", explicou Vergílio Correia.
Resultados em Junho
Para Andrew Wallace-Hadrill, é função da Unesco neste momento alertar as pessoas para tudo o que está a acontecer na Itália. "A Unesco não tem recursos financeiros para poder fazer alguma coisa, mas seria importante que dialogasse com os políticos e lhes explicasse a gravidade da situação", disse o arqueólogo.Contactada pelo P2, a Unesco não quis prestar declarações, explicando apenas que está a decorrer uma investigação e por isso ninguém está autorizado a falar. Em Fevereiro, as autoridades italianas puseram nove pessoas sob investigação por negligência na gestão das ruínas de Pompeia. Numa fase inicial, a investigação vai incidir sobre os envolvidos na gestão da cidade antes da mudança de comissário em 2008, quando Marcello Fiori assumiu funções. No entanto, para o seu mandato, que termina em Julho, foi pedido um estudo financeiro para perceber a aplicação do dinheiro no espaço. Sob investigação estão Pietro Giovanni Guzzo, superintendente de Nápoles e Pompeia, Valério Papaccio, director de serviços técnicos, a arquitecta Paola Rispoli e Antonio Varone, director da empresa que supervisionou a impermeabilidade da Casa dos Gladiadores (chuvas torrenciais tornaram o solo instável, provocando pequenas derrocadas). Ao P2, a Unesco garantiu que o relatório final destas investigações sairá em Junho e aí tudo poderá ficar esclarecido.
"Pompeia é uma cidade demasiado importante para ser perdida", garantiu Manuela Martins, defendendo que, apesar de estas investigações estarem a decorrer, é urgente que se comece a renovar o espaço. "O facto de Pompeia ser o maior complexo românico significa que a cidade foi quase toda escavada e por isso está exposta a tudo e nem sempre uma boa gestão garante a qualidade das ruínas. Pompeia tem que ser mantida e para isso precisa de investimentos elevados", explicou a professora, para quem a solução não passa apenas por estudos e investigações.
Para evitar o colapso das ruínas, que já sobreviveram dois mil anos, Pompeia necessita de um plano de intervenção com urgência.
"É um sítio turístico de primeira linha. Não existe nada assim no mundo. Pompeia é a única cidade onde podemos realmente vivenciar o que era uma cidade romana há séculos. É quase como uma máquina do tempo", concluiu João Paulo Oliveira e Costa.