Photo Españatambém ensina a duvidar

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The Power of Doubt

Ainda acreditamos que uma fotografia pode ser verdadeira? O que diz um rosto, um retrato ?O PhotoEspaña propõe-se descobrir as respostas em 68 exposições, até 24 de Julho. Lucinda Canelas, em Madrid

Há imagens que ficam na cabeça, por mais banais ou desinteressantes que pareçam aos outros. Muitas vezes nem mesmo nós sabemos explicar porque as guardámos. Depois de uma maratona de 14 exposições no PhotoEspaña, "Self-Immolation in Afghanistan: A Cry for Help" é certamente uma imagem que se instala na memória. Saída de uma série de 2005 em que a fotojornalista norte-americana Stephanie Sinclair documenta a imolação de mulheres vítimas de violência doméstica no Afeganistão, a fotografia que o comissário Gerardo Mosquera escolheu para "Face Contact", uma das 68 exposições deste festival, causa uma sensação estranha.

Sabemos que Zahara, aquela mulher que ateou fogo a si própria e agora está deitada num precário hospital público de Herat, rodeada de outras que também escolheram o suicídio, está em sofrimento, mas parece serena. A gaze sobre a cara, usada para impedir que as moscas infectem as queimaduras que lhe cobrem o corpo, transforma-a num espectro e torna bela e misteriosa esta imagem que, como as restantes da reportagem de Sinclair, foi feita para incomodar, para denunciar. O que faz esta fotografia numa das principais exposições deste festival centrado no retrato?

"Hesitei muito em incluí-la porque receei que não se enquadrasse no tema do festival, "Interfaces: Portrait and Communication"", explicou ao Ípsilon Gerardo Mosquera, 66 anos, o comissário geral do PhotoEspaña. "Mas depois cheguei à conclusão de que ela se encaixa perfeitamente nesta ideia do retrato como ferramenta de comunicação, sendo ao mesmo tempo dura, espiritual e muito feminina."

"Face Contact", "1000 caras/ 0 caras/ 1 rostro", "The Power of Doubt" e "Peso y Levedad" formam o pequeno roteiro que o Ípsilon lhe propõe se, até 24 de Julho, visitar Madrid (o festival tem também extensões em Cuenca, Alcalá de Henares e Lisboa). As duas primeiras abordam directamente o tema do retrato nas suas múltiplas valências e suportes, ao passo que as outras duas devem o seu enquadramento aos respectivos comissários e mostram o trabalho de áreas geográficas distintas: "The Power of Doubt" explora as possibilidades de questionamento da arte que tem a fotografia como modelo de percepção a partir de obras da Ásia, de África ou da Europa de Leste; "Peso y Levedad" reúne 15 artistas de seis países latino-americanos que trabalham a violência do narcotráfico ou a solidão quase poética de El Crucero, um "pueblo" na Nicarágua onde tudo parece possível.

Muitas caras ou nenhuma?

Pedro Motta é brasileiro e foi um dos escolhidos pelas comissárias de "Peso y Levedad", que avaliaram quase 400 portfólios em viagens a Manágua e a Cartagena, procurando trabalhos que reflectissem os problemas sociais, políticos e ambientais da América Latina e, em paralelo, obras que tivessem um certo optimismo humanista capaz de funcionar como uma possibilidade de redenção.

A sua obra não tem a fragilidade dos corpos viciados em "paco", uma droga barata das ruas de Buenos Aires (Myriam Meloni, Itália-Argentina), nem a brutalidade dos cadáveres nus atirados para o chão ou para as bancadas de uma morgue popular em Caracas (Juan Toro, Venezuela), mas também serve de instrumento de denúncia. Neste caso, diz o artista nascido em Belo Horizonte em 1977, "da falência do progresso moderno brasileiro, que desrespeita a natureza e impõe agressões atrás de agressões".

Na série que trouxe ao PhotoEspaña, exposta no Instituto Cervantes, Motta mostra depósitos de água isolados na paisagem. Começou a coleccioná-los no interior de Minas Gerais em 1999 e só parou de o fazer em 2006. O que faz, explica, é fotografar as estruturas e depois apagar digitalmente o que as suporta, criando figuras impossíveis que desafiam a nossa percepção imediata (o "erro" não se percebe logo). "Sou formado em artes plásticas e a fotografia veio suprir o meu desejo de trabalhar com o desenho. Ao eliminar estes elementos precários, eu estou a desenhar uma nova estrutura." Um desenho em negativo, já que se baseia no acto de apagar.

O trabalho do artista alemão Thomas Ruff, uma das estrelas do festival, ao lado da norte-americana Cindy Sherman, também se baseia numa anulação, desta vez da expressão e da individualidade das pessoas retratadas em "1000 caras/ 0 caras/ 1 rostro", a exposição com que Gerardo Mosquera, comissário que sucede ao português Sérgio Mah, quer pôr o público a pensar no que pode um rosto e nas suas infinitas capacidades de transformação.

O trabalho de Ruff - retratos de grandes dimensões em que o mesmo enquadramento, o fundo neutro e a iluminação que se repete constituem uma estratégia de padronização do rosto que o priva das suas particularidades - é mostrado ao lado de duas das mais famosas séries de Sherman - "Bus Riders" (1976-2005) e "Murder Mystery" (1976-2000) - e de 23 fotografias de um mexicano (quase) desconhecido: Frank Montero Collado.

Reunir os três na mesma exposição, diz ao Ípsilon Mosquera, permite lançar o debate sobre a moldura conceptual do festival - o retrato como meio de comunicação e como ponto de partida para criar outros interfaces - e pôr o público a pensar no que vale, e no que pode, um rosto.

"A cara tem um valor semântico imenso mas, mesmo assim, artistas como Ruff conseguem reprimir subjectividades a tal ponto que a reduzem a quase nada. Sherman mascara-a para criar mil rostos, mil personagens. E Frank Montero mostra-nos o tempo a passar por um corpo."

Na primeira sala, a série "ABDCE", que Sherman fez em 1975, parece estar a provocar os grandes retratos inexpressivos de Ruff, muitos deles da colecção portuguesa da Fundação Ellipse. Ao centro estão as 23 fotografias de Montero Collado, tiradas entre 1855 e 1925, sempre com legendas exactas, numa letra miudinha. Nelas aparece na qualidade de seminarista, professor de filosofia e espanhol, cantor lírico, escritor (esta de 1906, com um magnífico quimono), peregrino, vice-presidente da federação espírita ou monge.

"Sabemos muito pouco sobre ele", diz Mosquera. "Mas é muito interessante ver como encena com tanto cuidado a sua própria vida. Sherman cria personagens a partir da pesquisa que faz na rua, fotografando com a sua Polaroid, como aconteceu na série do autocarro. Torna-se outra. Frank Montero é uma Cindy Sherman de si mesmo."

A arte da dúvida

Hou Hanru, o comissário de "The Power of Doubt", não está interessado em mostrar a fotografia em si mesma, mas em reunir uma série de obras que partam dela como modelo de percepção do que está à nossa volta. A exposição que criou para este PhotoEspaña inclui fotografia, é verdade, mas também vídeo, instalação e até desenho.

Na manhã em que o Ípsilon a visitou, Hanru andava de um lado para o outro com o seu blazer amarrotado que tinha no bolso uma edição francesa de "Carta ao Pai", de Franz Kafka, e explicava aos jornalistas, de forma mais ou menos caótica, o que o levara a escolher o trabalho de Thierry Fontaine ou dos Solakov (pai e filho). Mais tarde, ao telefone dos Estados Unidos, onde tem casa desde 2006, o crítico e curador chinês sistematizava: "Quis partir do tema dos interfaces, mas do seu significado de múltiplas possibilidades de comunicação. Escolhi obras de artistas que nasceram em países que passaram por profundas mudanças sociais e políticas e que, por isso, estão habituados a olhar para a arte como um território em que se fazem perguntas, em que se duvida."

"The Power of Doubt" tem quase 70 obras criadas entre 1998 e 2011 por 16 artistas. Vêm de países em que a contemporaneidade é "pós" - pós-comunismo, pós-socialismo, pós-colonialismo - e são "transnacionais" (circulam muito ou vivem mesmo na Europa ou nos Estados Unidos).

"Estes artistas têm ou tiveram de responder a mudanças sociais dramáticas e são permanentemente confrontados com modelos de felicidade que nada têm a ver com os seus referentes culturais, que têm raízes no capitalismo ocidental." São estes artistas que nos chamam a olhar para a realidade duvidando, questionando a verdade oficial e desmistificando-a, explica Hanru.

Estão lá as fotografias provocadoras do argelino Adel Abdessemed; as novas torres de babel do chinês Du Zhenjun, mais apocalípticas do que nunca; o conflito do Afeganistão filmado por dois soldados australianos sob a orientação de Shaun Gladwell; o cliché hollywoodesco da guerra segundo o vietnamita Dinh Q Lê, as crónicas de crime encenadas do malaio Wong Hoy Cheong. E em todas, ou quase todas, a tecnologia e a manipulação digital têm um papel fundamental. "Gosto de explorar esta tensão entre a verdade jornalística e a verdade que há na encenação de uma situação, o que há de verdadeiro na manipulação. O trabalho de Wong Hoy Cheong faz isso, parte de uma imagem quase cinematográfica para recriar cenários de crime que são já lendas populares urbanas."

Nesta exposição, como em tantas outras desta 14.ª edição do PhotoEspaña, a fotografia não é apenas um meio de expressão artística, é uma maneira de olhar o que se passa em volta. Apesar da manipulação a que as novas tecnologias dão acesso, Hanru anda acredita que as pessoas procuram nela a verdade, mesmo que seja para duvidarem sempre.

O Ípsilon viajou a convite do TurEspaña

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