Os filhos de Fritzl estão cá fora. E agora?
A Áustria ainda está em choque com o caso de incesto da cidade de Amstetten. Enquanto isso, numa clínica guardada pela brigada antiterrorismo, há uma família
a aprender a viver num mundo a três dimensões
a Esta não é a pergunta mais importante, mas é uma pergunta pertinente: quem é o protagonista do filme de terror da vida real que Josef Fritzl rodou ao longo de 24 anos numa cave de Amstetten, a 130 quilómetros de Viena, na Áustria?Fritzl ele próprio? A filha Elisabeth, que manteve prisioneira numa masmorra guardada a oito chaves (não são sete, como se costuma dizer, porque no bunker havia oito portas), e que foi violada ano após ano? Ou os sete filhos (um acabou por morrer três dias depois de nascer) fruto da relação incestuosa que empurrou a Áustria para um estado de choque profundo e ainda sem fim à vista?
Sobre Fritzl já se disse tudo - ou quase tudo. Que é um "monstro" - e este até é dos qualificativos mais brandos; que vestiu a pele de "avô-Deus-pai" (expressão inventada pela escritora austríaca Elfriede Jelinek) para construir "um reino" onde só ele entrava ; que os mundos paralelos em que viveu ao longo de mais de duas décadas são tão grotescos, tão calculados, que ultrapassam a capacidade de entendimento humano.
Sobre Elisabeth também já se disse muita coisa - mas muita coisa está ainda no segredo das paredes da clínica psiquiátrica para onde ela e os filhos foram transferidos assim que terminou o cativeiro. Como é, afinal, esta mulher de 42 anos, que viveu os últimos 24 confinada a uma masmorra construída debaixo da casa dos pais, com cerca de 60 metros quadrados, 1,70 metros de pé direito e três divisões apenas? A imprensa já lhe chamou de tudo - citamos apenas "sobrevivente" e "mãe-coragem".
E os filhos? Escolha-se a família que se escolher - a "do andar de cima", para onde foram conduzidas três das crianças; e a da cave, onde ficaram as restantes três -, há uma verdade indesmentível: o desmoronar do mundo de faz-de-conta, versão hardcore, de Fritzl teve para os filhos um "efeito devastador", analisa Augusto Carreira, do Colégio de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Ordem dos Médicos. E as consequências da catástrofe nas vidas de Kerstin (19 anos), Stefan (18), Lisa (15), Monika (14), Alexander (12) e Felix (5) serão visíveis como são visíveis as consequências de um tsunami: dia após dia, descobrir-se-ão mais problemas debaixo dos escombros.
Para os devidos efeitos, declaramos que escolhemos como protagonistas deste texto os filhos-netos de Fritzl.
Bomba-relógio
O rewind seria quase desnecessário, mas aqui fica, para memória futura. Teria sido um sábado como outro qualquer na pacata cidade de Amstetten (cerca de 22 mil habitantes) - não fosse o caso de, a 26 de Abril passado, o país ter anoitecido com uma bomba-relógio na mão. O engenho acabou por explodir no dia seguinte e os estilhaços caíram sem aviso sobre o mundo inteiro. Josef Fritzl, 73 anos, tinha sido detido por suspeitas de ter raptado e violado, durante mais de duas décadas, a filha Elisabeth. E tudo ali mesmo, à mão de semear: na cave da sua casa.
Dos 24 anos de cativeiro que impôs a Elisabeth, levada para a masmorra aos 18, Fritzl conseguiu o que mais tarde veio a admitir: ter sete filhos e, com isso, constituir uma segunda família. Ali mesmo, downstairs.
A farsa de Josef Fritzl foi desmontada por um (in)feliz acaso. A filha-neta mais velha, Kerstin, estava gravemente doente. Atendendo às súplicas de Elisabeth, Fritzl levou-a ao hospital. Kerstin apresentava um quadro de infecção que, segundo os médicos, seria compatível com casos de incesto. Seguiu-se um apelo do corpo clínico na televisão para que a mãe se apresentasse no hospital. O pedido chegou à cave e Elisabeth conseguiu convencer o pai a levá-la. Os clínicos terão desempenhado um papel fulcral no desfecho da história: a suposta denúncia anónima que levou à detenção de Fritzl pode ter vindo de algum dos médicos que assistiram Kerstin.
Aquele foi o primeiro dia do resto da vida de Elisabeth. E dos seus filhos. Como num passe de magia, o mundo deles foi virado do avesso. Com a garantia de que não voltariam a ver o pai (ou pai-avô), foram conduzidos à clínica de Amstetten-Mauer, para iniciarem o processo de adaptação ao mundo fora da concha. Foi-lhes atribuído um apartamento de 80 metros quadrados na unidade de saúde (vigiada pela brigada antiterrorismo austríaca), onde foram recriadas algumas das condições da masmorra. A luz solar, por exemplo, é filtrada, para que os olhos deles se habituem, aos poucos, à luminosidade.
A recuperação vai ser longa e difícil. O médico Max Friedrich, que acompanhou Natascha Kampusch, sequestrada numa cave ao longo de oito anos, disse que Elisabeth e os filhos poderão precisar de quatro a oito anos para se habituarem ao mundo da luz, dos sons, dos cheiros - das pessoas até.
É fácil perceber porquê: os 24 anos que passaram na cela provocaram-lhes danos físicos e psicológicos. Elisabeth é uma mulher pálida (o jornal britânico The Guardian diz que tem a pele "quase transparente"), com o cabelo totalmente branco e sem dentes; ainda ninguém sabe a gravidade das lesões que o "défice de oxigénio" provocará a Kerstin; Stefan apresenta problemas de visão e de audição; e Felix, apesar de poder andar, preferirá gatinhar, devido aos condicionamentos de espaço da masmorra - os problemas de postura e equilíbrio também afectarão os irmãos.
Para além disso, todos têm um sistema imunitário deficitário e insuficiência de vitamina D. Fritzl terá dado aos prisioneiros suplementos vitamínicos e instalado lâmpadas de raios ultra-violeta na masmorra, para minorar os efeitos da falta de luz solar. Não bastou: os dentes de Elisabeth terão apodrecido precisamente por não haver sol na vida dela.
A discussão sobre as consequências para a família de anos de privação tem sido longa. Um médico citado na imprensa austríaca disse que manter crianças em cativeiro pode impedir o cérebro de se desenvolver, o que afecta a visão, a audição, a fala e as capacidades de socialização; outro defendeu que os danos podem ser semelhantes aos causados por acidentes vasculares cerebrais.
Dialecto próprio
O jornal The Observer diz que esta família foi "enterrada viva" e refere que, à custa disso, viveu anos enfiada num universo digno das páginas mais negras dos contos dos irmãos Grimm. As crianças, encaixadas à força num mundo saído da imaginação do pai, habituaram-se a viver nele. Terão até desenvolvido um dialecto próprio. "Dizer que as crianças falam é dizer apenas parte da verdade. Usam uma mistura de sons, grunhidos quase", descreveu Leopold Etz, inspector da polícia austríaca. Augusto Carreira acha "natural" que Kerstin (continua em coma induzido), Stefan e Felix tenham criado uma forma de expressão própria. "É preciso um vínculo afectivo e emocional da palavra para a linguagem se desenvolver", diz.
Uma vastíssima equipa de psiquiatras, neurologistas, terapeutas da fala e fisioterapeutas trabalha com a família, que tem pela frente um admirável mundo novo. Quando saíram da cave, de olhos esbugalhados e boca aberta, os dois rapazes pensavam que estavam no céu - porque a mãe lhes teria dito que o céu era lá em cima. Elisabeth, aliás, terá feito das tripas coração para atenuar o sofrimento dos filhos. Contava-lhes histórias de contos de fadas, com princesas e piratas; tentou decorar a cave, para tornar o ambiente menos hostil: na casa de banho estava pintado um caracol amarelo, um polvo lilás, uma flor e um peixe - tudo coisas que os filhos tinham visto apenas pela televisão; e ter-lhes-á ensinado algumas noções básicas de leitura e de escrita.
Áustria no divã
Berthold Kepplinger, director da clínica de Amstetten-Mauer, jura a pés juntos que, apesar de difícil, a adaptação de todos tem corrido bem. Referindo-se ao primeiro encontro entre os dois braços da família, adiantou que a reunião de Elisabeth com os filhos que foram criados com Fritzl e a mulher, Rosemarie, foi "impressionante" de tão fácil. "Interagirem naturalmente", assegurou Kepplinger. Augusto Carreira tem algumas dúvidas de que as coisas tenham sido um mar de rosas. "Há testemunhos que dizem que aquelas crianças são simpáticas e que reagiram bem ao embate. Custa-me a crer que passem por uma coisa tão devastadora e reajam bem", comenta.
Felix, de cinco anos, será o que tem mais hipóteses de recuperar melhor do choque - exactamente por ter sido o que menos tempo passou na masmorra. Terá sido também o que ficou mais entusiasmado com o mundo tal como ele é - um mundo a três dimensões. Ficou fascinado com o sol e a lua, quando viu uma vaca pela primeira vez não parou de bater palmas e deliciou-se com o bolo da festa dos doze anos do irmão Alexander (gémeo do outro filho de Elisabeth e Fritzl, que morreu três dias depois de nascer).
A imprensa estrangeira ainda não acertou agulhas quanto a um ponto fundamental: há jornais que referem que Elisabeth terá contado aos três filhos da cave que tinham mais três irmãos; outros dizem que não, que lhes terá tentado passar a ideia de que a vida deles era normal.
"Para percebermos como será a vida daquelas crianças daqui para a frente, é muito importante sabermos quais as qualidades daquela mulher como mãe. Que capacidades teve ela para proteger os filhos, para lhes proporcionar uma sensação mínima de conforto?", indaga Augusto Carreira. E para ilustrar o que diz invoca o filme A Vida é Bela, de Roberto Benigni. "Aquele pai teve uma capacidade notável para, numa situação extrema, poupar o filho de alguns horrores de um campo de concentração."
Augusto Carreira entende que "o futuro destas crianças", as da cave e as do andar do cima, "é tão preocupante quanto o seu passado". "Para onde quer que vão, serão sempre filhas do incesto para o resto da vida, será impossível passarem incógnitas." - e por isso acha que "dificilmente" poderão ter uma vida normal.
"Não temos todos os dados, temos de fazer algumas reservas. De qualquer forma, há um conceito muito importante da Psicologia que temos que tomar em atenção: a resiliência", diz o médico. E depois explica que este conceito traduz "a capacidade que algumas crianças têm para suportar embates sem ficarem destruídas". "Há umas que resistem melhor aos traumatismos e que são capazes de agarrar aquelas que no futuro vão ser as boas experiências", concretiza.
Ninguém pode dizer como será o futuro das crianças Fritzl, mas Augusto Carreira acredita que não será "muito tranquilo". "O principal drama" será quando "a família se mostrar ao mundo". "O traumatismo maior que antevejo é o que vai acontecer a seguir", diz.
A Áustria (que, depois da explosão da bomba-relógio chamada Fritzl se transformou "num país do divã", como escreveu um jornal espanhol) e o mundo inteiro aguardam pelos próximos episódios.