o público de ópera é, por definição, reaccionário

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Der Ring, a tetralogia de Wagner que o São Carlos apresentou entre 2007 e 2009, com encenação do britânico Graham Vick, transformou o palco do teatro para falar de economia, petróleo e corrupção. Na página à esquerda, Gérard MortierC(h)oeurs, de Alain Platel, estreou-se a 12 de Março no Teatro Real, em Madrid, envolto em polémica Susana Vera/Reuters

A frase é de Gérard Mortier, o director artístico do Teatro Real, em Madrid, que acredita ser necessário responder com firmeza às resistências do público de ópera à criação contemporânea. A palavra de ordem é "desejo", mesmo que isso vá contra o estatuto social que esse público quer perpetuar e os valores que diz defender

As duas mulheres olharam para ele hesitando falar-lhe. Foi com a desculpa de uma festa no cão que ganharam coragem. E então disseram-lhe: "Já tínhamos ouvido falar de si, nunca tínhamos visto o seu trabalho, mas não gostámos." A frase foi dita assim, a seco, mas ele, o coreógrafo Alain Platel, não podia responder senão a sorrir. Já o tinham avisado de que a rispidez espanhola escondia uma afabilidade irresistível. Não foi preciso muito para perceber de que falavam. Dias antes, no fim do mês de Março, Platel havia estreado no Teatro Real, em Madrid, a peça C(h)oeurs que, sequenciando aberturas de óperas e sinfonias de Verdi e Wagner, falava também, e sobretudo, de indignação, desejo de revolta e utopia. "Não achamos que seja esse o papel de um teatro de ópera. Não leve a mal, não é consigo. Gostamos muito do seu cão e o seu sorriso é muito bonito."

C(h)oeurs estreou-se no Teatro Real sete anos depois de ter sido pensado para o New York City Opera, a convite de Gérard Mortier, então a pensar a programação da instituição norte-americana, que entretanto abandonou. "É natural que não tenham gostado", diz-nos Mortier depois da estreia, orgulhoso por C(h)oeurs ter deixado de ser "o espectáculo que todos temiam" para ser "o espectáculo de que toda a Europa fala". Orgulho de "um utópico", diz ele, evitando o nome que lhe chamamos: crente. "Nem visionário. Visionários são os artistas, que prevêem o mundo", diz, defendendo um espectáculo difícil de catalogar, nem ópera nem coreografia, nem manifesto nem entretenimento. "O que ainda não percebemos pela força dos sentidos, a arte antecipa e compreende. É isso que todos receiam."

As palavras não são escolhidas por acaso, e a história que Platel nos contou, Mortier ouviu-a antes, como, antes desta estreia, ouviu sobre muitas das propostas da sua programação. Em Madrid, em Paris (onde esteve entre 2004 e 2009 à frente da Ópera), ou em Bruxelas, onde dirigiu o La Monnaie entre 1981 e 1991, ou em Salzburgo, onde esteve entre 1990 e 2001 e, claro, em Nova Iorque, onde não chegou a iniciar o contrato assinado em 2007. Chegou a Madrid há três anos e foi "olhado de lado". "A minha fama precede a opinião sobre o meu trabalho. Deve fazer parte, não o recuso, por que haveria de o fazer?"

Mortier não gosta de polemizar, define-se como conservador - "sim, não sou um avant-guardista" -, mas diz também que as circunstâncias mudam os contextos das criações contemporâneas, "quando não mesmo o seu significado". E, divertido, fala de como isso pode devolver à ópera o seu papel social e ao público a responsabilidade de o interpretar, "em vez de, simplesmente, pagar o seu bilhete e assistir à perpetuação do que já sabia".

É isso que tem experimentado com a capital espanhola e este C(h)oeurs, sete anos depois, representa para o director artístico do Teatro Real um longo trabalho de reflexão sobre os modos de intervenção "muito concretos" que cabem a um teatro de importância mundial. Diz-nos, tomando como exemplo o encontro de Platel com as duas senhoras nos jardins em frente ao teatro: "Madrid está a mudar. Tem um público muito conservador que vivia com a ideia de que o Teatro Real era um teatro para pessoas ricas. Na ópera, as pessoas gostam de acreditar na renovação, corrijo, no reencontro com valores antigos. Será por isso que existem tão poucas criações contemporâneas", admite, para logo a seguir dizer que o público de um teatro de ópera é, por definição, "reaccionário".

"Desde que C(h)oeurs foi pensado, houve a falência da Lehmann Brothers, a queda do capitalismo, ainda não tinha acontecido a revolução árabe e a Europa não imaginava a sua desintegração. Parece-lhe pouco? Imagine o que não terá sido para Monteverdi escrever L"incoronazione di Poppea [A Coroação de Pompeia] em 1642 para a república veneziana."

Terá sido sempre assim, diz, chamando a atenção para a dimensão política das óperas "que podemos não querer ouvir, mas então, porque comprámos um bilhete?". "Devemos lutar sempre pelo lado político do teatro, não por causa de uma ideologia, não importa se é de esquerda ou de direita, mas porque, para além de poder ser um objecto de entretenimento, também deve reflectir sobre a sociedade."

"As pessoas esquecem-se de que Verdi era muito político, esquecem-se da raiva contida nas sinfonias de Beethoven e esqueceram-se também que D. Giovanni [de Mozart] antecipou a modernidade." E é por isso que recusa a ideia de elite se, por elite, se alimentar a ideia de privilegiados, opondo a possibilidade de transformação da sociedade a partir dos exemplos que a ópera pode dar. Mortier fala do maestro Riccardo Muti, que, dias depois da estreia de C(h)oeurs, haveria de apresentar em Madrid Il Due Figaro, de Marcadante. Muti, recorde-se, foi, em Março do ano passado, o rosto de um protesto, "simbólico e ao mesmo tempo cheio de significado político". Muti, conhecido por nunca ceder aos pedidos de encores, voltou ao palco do La Scala depois da interpretação de Nabucco e impôs uma condição. "Va pensiero sim, mas se todos cantarem. Para que aqueles senhores ouçam." Va pensiero é a famosa ária de Nabucco e os senhores, o Governo de Berlusconi, "que deveria representar Itália e a sua cultura". E todos, das galinheiras à primeira fila, de pé como o coro, cantaram os versos: Va, pensiero, sull"ali dorate;/ va, ti posa sui clivi, sui colli,/ ove olezzano tepide e molli/ l"aure dolci del suolo natal!" O Governo de Berlusconi cairia pouco depois.

"Ouvimos estes versos, ficamos comovidos, mas esquecemos que eles de poético têm apenas o facto de falarem do sofrimento dos escravos", lembra Gérard Mortier. "Onde ficam esses espectadores? Entre o prazer abstracto da música ou a exigência de acção pedida pela letra?"

"Há quem queira ver La Bohème esquecendo-se de que, para além da música, e todo o lado boémio que a ópera mostra, há uma realidade social muito mais amarga", diz Mortier, para quem programar uma ópera "é avançar sobre o tempo". Mas, precavendo-se, reforça a ideia: "Não é ser-se político, mas alertar para a sua dimensão política." Por política fala de uma "reinscrição que só pode ser activada com a presença do espectador", como se quisesse perguntar "por que fazemos" em vez de "o que vamos fazer e como o vamos fazer". "Na ópera, como no resto, aliás, devemos perguntar por que o fazemos." "É preciso desejar", resume. Essa é a palavra de ordem e "a chave" para perceber o que se passou com uma relação entre quem via e o que se apresentava, e onde a recepção a C(h)oeurs é só um exemplo.

Jorge Calado, crítico de ópera no semanário Expresso, dá outro: ouviu, há tempos, A Casa dos Mortos, de Janacek, encenada por Patrice Chéreau no Metropolitan e, no fim, "o silêncio podia medir-se em minutos". "Há muito que não presenciava nada assim, ideologicamente e emocionalmente impressionante." Isto significa, acredita, que a contemporaneidade da ópera pode muito bem ser construída a partir de factores externos, "como acontece com óperas que, ao longo dos tempos, são reavaliadas e recuperadas". O que é preciso, diz, é experimentar, "porque é aos poucos que as coisas podem mudar". Contudo, tal não significa necessariamente uma descaracterização da essência do que foi escrito e composto. Há uns anos, recorda, viu uma La Bohème onde a tuberculose era substituída pelo vírus da sida. "Não é por isso que se vai perceber melhor a história."

Jorge Calado certamente não se incomodaria se o apelidássemos de crente. Os seus textos são, invariavelmente, alertas para um patamar de excelência pelo qual se deveria pautar um circuito de apresentação operático. "A ópera é como os textos de Shakespeare, está lá tudo: todos os dramas, todos os sentimentos" e, quando escreve, fá-lo porque quer levar "os leitores a relacionar diferentes coisas". "Muitas vezes a menorização do espectador é uma gratuitidade" e cita, de cor, uma frase que ouviu do encenador Luís Miguel Cintra: a ópera, quando é boa, é muito melhor que o teatro.

Gérard Mortier diz que "há um contexto social que se reproduz, imutavelmente, desde o século XIX, emulando-o e aos seus preconceitos". E então lembra-se de "um senhor, muito bem posto", estava Mortier à frente da Ópera de Paris, que lhe disse que "na ópera não se deve rir". "Pecava por excesso", diz. "Achava que se se risse, perdia-se o sentido."

"Mas o que é isso do sentido?", devolve-nos a pergunta, ao mesmo tempo que não espera pela resposta: "A ópera é uma arte popular e deve falar sobre a realidade, quem quer reduzir a ópera a um fait-divers quer, no fundo, controlar o seu sentido e tem medo de crescer." Como espectador, logo, como cidadão. Os espectadores que não o fazem, acredita, "vivem num mundo difícil, do qual querem guardar valores mas, ao mesmo tempo, reduzi-los a uma simplificação. E a simplificação, sabemo-lo bem, está sempre do lado dos fascismos. Isso não é de direita nem de esquerda, tem a ver com autoritarismos ideológicos que são contrários à elevação que as partituras pedem, mesmo as que foram escritas a partir de realidades políticas e sociais concretas". Mortier poderia dar vários exemplos, como faz com Der Ring, a tetralogia de Wagner que o Teatro Nacional São Carlos apresentou há uns anos, com encenação do britânico Graham Vick, e que transformou o palco do teatro para falar de economia, petróleo e corrupção. Repete: "A ópera deve ser popular e também falar sobre a realidade."

António Pinho Vargas, compositor, chama a si outro exemplo: quando passavam 25 anos sobre o 25 de Abril, Os Dias Levantados estreou-se no São Carlos, em Lisboa, com libreto de Manuel Gusmão. Pinho Vargas, autor, ficou surpreendido por "não estarem de modo nenhum fechadas as feridas do 25 de Abril e se ter manifestado uma reacção de incómodo perante a presença da temática num teatro de ópera", levando ao cancelamento, por parte da Rádio Renascença, da campanha de promoção inicialmente prevista. "Mas não é para questionar o presente que se produzem óperas", pergunta o compositor, que partilha da ideia de Mortier sobre o conservadorismo do público de ópera.

Mas para António Pinho Vargas as razões do problema são bastante mais profundas. "A tradição canónica musical do Ocidente está fixa, mesmo que não esteja completamente fechada, há cerca de cem anos." E, no caso da ópera, Pinho Vargas, cita um livro co-assinado por Slavoj Zizek e Mladen Dolar, intitulado The Second Death of Opera (Routledge, 2001), onde os autores afirmavam que "o repertório de ópera se circunscrevia a cinquenta obras e se geria, imutável, em torno dessas cinquenta obras", indo ao encontro de uma afirmação do compositor e maestro Pierre Boulez, que teria dito que a ópera, enquanto género, teria morrido nas décadas de 1950 e 1960.

A morte aparece aqui em sentido figurado, já que o repertório perpetua uma confirmação assente, sobretudo, em quatro autores: Verdi, Mozart, Puccini e Wagner, começa por dizer Pinho Vargas, mas "a crise da música contemporânea" merece discussão mais vasta. O compositor diz que o público "opõe o prazer do reconhecimento ao desafio da descoberta de uma coisa que nunca foi ouvida". A desconfiança a que é sujeita uma obra contemporânea "é uma dificuldade que, instalada logo à partida, torna mais difícil a sua aceitação", e, reportando ao caso português, há, ao mesmo tempo "uma posição de ambígua rejeição que faz parte dos vícios profundos das elites culturais portuguesas, que rejeita um autor por ser português". Di-lo com a experiência de quem compôs quatro óperas que nunca foram reencenadas e de quem observa o que vai sendo prática um pouco por todo o lado. "É um ciclo vicioso do qual não parece haver saída", diz. "A prática histórica de repertório é regulada pela apresentação sucessiva, ano após ano, das mesmas óperas", explica, falando de uma "ideologia de programação" que "dá primazia à estreia. O que as instituições fazem é pagar encomendas, o que até é importante para os compositores, mas, por melhor que seja a obra, embate nessa ideologia que descarta a peça depois de ela existir". Pinho Vargas dá o exemplo do compositor norte-americano Philip Glass, que este ano, 20 anos depois, verá remontada a sua ópera, Einstein on the Beach, assinada com Robert Wilson. O que só foi possível em Nova Iorque, porque em Londres a peça fará parte das Olimpíadas Culturais [por ocasião da programação dos Jogos Olímpicos].

O Metropolitan Opera, onde Einstein será apresentado, "estreia apenas uma ópera do século XX por ano e sempre de um compositor norte-americano", lamenta Pinho Vargas. "Alguém que compôs 25 ou 26 óperas, que é um compositor pós-moderno incontornável, vê assim quebrado um ciclo de recepção" que lhe seria fundamental. Os efeitos dessa ausência poderão explicar o reaccionarismo do público, ao qual se juntam factores de ordem económica e social.

Jorge Calado explica que, em oposição ao modelo europeu, onde o Estado considera importante o financiamento público da ópera, no sistema norte-americano os investimentos são privados e pessoais, com contribuições que podem chegar aos dois milhões de dólares (aproximadamente 1,5 milhões de euros). "É uma casa conservadora" que apresenta sete espectáculos por semana para quatro mil pessoas. Até a Grécia, em plena crise, mandou construir um novo teatro de ópera. Jorge Calado cita uma frase do teatrólogo Jerzy Grotowski para falar do tempo que as mudanças precisam: "A democracia em teatro não é apresentar uma peça para mil pessoas, mas fazer mil apresentações para mudar uma pessoa."

O problema é, por isso, profundo, e Gérard Mortier acusa o toque. Fala da dificuldade de gerir as expectativas de um público, do papel institucional que cabe a um teatro de ópera e do desejo de intervenção dos próprios artistas: "Há quem queira reduzir a ida à ópera a algo semelhante a irmos a uma pastelaria comer um bolo de chocolate. Recuso isso como se fosse uma exigência pessoal, um princípio de resistência que enforma as minhas programações, que não consideram a ópera senão como uma obra livre." E, por isso, ao falar de política, fala de revolução, "mas de uma revolução em continuidade". "Fazer sonhar as pessoas", diz, usando as expressões francesas réveiller [acordar] e veille [véspera]. "O sonho tem a ver com o sol. À noite, ao desconhecimento, segue-se o dia, a luz, a descoberta."

Mas como se pode dar essa descoberta sem que o potencial criativo seja afectado? António Pinho Vargas define-se como "um artista localizado no tempo e no espaço, forçado a uma espécie de auto-ilusão que lhe permite compor uma peça sem se deixar paralisar pelas condições que, à partida, sabe irem marcar o destino da peça". Fala da ausência de remontagens, da insuficiência que significa a gravação e posterior edição de uma ópera - como acontecerá este ano com Outro Fim, com libreto de José Maria Vieira Mendes e estreada na Culturgest em 2008 -, e do diálogo entre as instituições. Sobre este aspecto é peremptório: "As grandes instituições culturais portuguesas são marcadas fundamentalmente pelos produtos que o centro irradiador, que se vê a si próprio como universal, distribui pela periferia, mas que, nessa circulação, não inclui a troca cultural." Está a falar de Portugal mas poderia estar a falar de qualquer outro país, dando o exemplo de A Casa dos Mortos, do checo Janacek, que primeiro foi traduzida para alemão e só recentemente viu estreada a sua versão original, em checo. A isto acresce o facto de a composição contemporânea ocupar pouco espaço nas programações. "É um problema de língua e de linguagem", resume. "É também um problema de adaptação dos públicos", diz Mortier, voltando a falar da "perpetuação de códigos" quando se refere "ao poder concreto que a ópera tem", numa altura em que "se deu o triunfo do consumismo e a arte evoluiu para uma cultura do entretenimento, retirando à fruição de um espectáculo de ópera a sua dimensão de questionamento da sociedade". "As pessoas vêem como se fossem ver um quadro no museu, olhe para o Covent Garden, onde é mais importante o foyer do que o espectáculo. É como se soubessem que, se prestassem atenção, teriam de temer pelas suas posições." E isso torna-as conservadoras.

Regressando ao exemplo das reacções a C(h)oeurs, fala de raiva, mais do que uma discussão intelectual sobre "o potencial utópico, onde também cabe a nostalgia" construído por Alain Platel. "Eu vejo, eu vi, a raiva nos olhos das pessoas", conta, para falar dos protestos que alimentaram as apresentações de C(h)oeurs, "muitas anónimas, essa nova forma de protesto, cobarde, sem rosto e extremista". "Não aceito a falta de coragem. O mundo ocidental sobreviveu a duas guerras, o capitalismo pode ter tomado conta das nossas vidas de um tal modo presunçoso que se acha capaz de tudo e a Europa prometida depois da queda do Muro de Berlim pode não ter sido plenamente atingida, mas é preciso limpar as ruas dessa merda anónima que a ocupa e começar a construir um novo futuro que nos mude também." Parecerá uma inevitabilidade que hoje, qualquer conversa sobre a criação contemporânea seja invadida por uma reflexão sobre o que se vai passando à nossa volta, mas Mortier não parece surpreendido. "Os sinais vêm de todo o lado e tenho de reagir a isso. A única forma de o fazer, o único poder que tenho, é não desistindo de lutar contra os hooligans da ópera, que também os há, essas crianças autoritárias que insistem em vir para o interior dos teatros passar o tempo e que confundem o popular com o populista e o prazer com o pecado."

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