O fado de valter hugo mãe na FLIP
valter hugo mãe tornou-se no "xodó" da Feira Literária de Paraty. Baixou no terreiro entre actores nus, chorou ao ouvir Elza Soares ao vivo, viu Arnaldo Antunes ir até ele. E até cantou O fado de cada um, num barco na baía
E tudo terminou em Macumba Antropófaga. O espectáculo do Teatro Oficina Uzyna, uma mistura de ritual, declamação de textos, música e improvisação, encerrou a 9.ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, dedicada ao escritor e poeta Oswald de Andrade, que fundou o movimento antropofágico em 1920.
Num terreiro havia fogo. Os actores que interpretavam o escritor Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral bebiam, comiam (carne crua) e fingiam que "transavam". Num ecrã gigante iam passando imagens associadas à obra do escritor e à antropofagia, como o quadro Abaporu, de Tarsila do Amaral, ou excertos de Macunaíma, de Mário de Andrade. A célebre frase "Tupi or not Tupi" ecoou pela tenda repetidas vezes. Vinte e dois actores, nus ou vestidos como índios, iam dando ordens ao público, por exemplo, pedindo que se despissem e se juntassem à cena. Muitos passaram a fazer parte do espectáculo que durou umas lentas quatro horas. No público, alguém dizia: "É a primeira vez que vejo Zé Celso e espero que seja a última." O escritor português valter hugo mãe estava divertidíssimo a ouvir as conversas (picantes) sobre a anatomia dos actores e do público que entretanto se despiu. No final, houve frutas e vinho para ajudar ao bacanal.
Eram quase oito da noite de domingo (o espectáculo começou às 16h30) quando três dos autores que participaram na FLIP entraram no terreiro da Macumba vestidos com uma capa de plástico, acompanhados pelo curador da edição deste ano, Manuel da Costa Pinto. Leram excertos dos seus livros de cabeceira. A argentina Pola Oloixarac leu Fogo Pálido, de Nabokov; valter hugo mãe leu A Metamorfose, de Kafka; e o poeta gaúcho Eduardo Sterzi recitou um poema de Jorge de Sena, Em Creta com o Minotauro. Mais tarde viu-se também um homem nu, em cima de um banquinho, a declamar Florbela Espanca.
O "xodó" da FLIP
Era o momento de zarpar. E assim fez valter hugo mãe, parado pelo caminho por muitas fãs que lhe diziam que tinham esperado aquelas horas todas para o ver. O escritor português tornou-se o "xodó" (o amorzinho) da FLIP, por onde passaram nestes dias 20 a 25 mil pessoas. Depois da sua participação na mesa onde emocionou a plateia e foi aplaudido de pé, ficou quatro horas e meia a dar autógrafos e o seu livro a máquina de fazer espanhóis foi o primeiro a esgotar na Livraria da Vila. As fãs dão-lhe bilhetinhos com o endereço de email, oferecem-lhe livros, pedem-lhe que não mude, querem fotos, querem tocar-lhe e também querem ter um filho com ele.Na conferência de imprensa que encerrou o evento, Manuel da Costa Pinto elogiou o que lhe parece estar a ser uma "tradição na FLIP": a "comoção" causada por autores portugueses. "No ano passado, foi o [António] Lobo Antunes", recordou.
Andar ao lado de valter hugo mãe pelas ruas de Paraty é tarefa difícil. É reconhecido e parado em cada esquina. "Olha o Victor Hugo!", "Olha o Mãe!", numa referência ao seu nome e também à história que contou sobre o desejo de ter um filho, desejo que passou para o protagonista do seu próximo romance, um homem que chega aos 40 anos e é confrontado com o seu relógio biológico. Durante estes dias na FLIP, valter hugo mãe decidiu qual vai ser o título desse livro: O filho de mil homens. Será "com maiúsculas e tudo", acrescenta o seu editor português, Alexandre Vasconcelos e Sá, da Objectiva, que veio acompanhar o autor ao evento. Por cá passaram outros portugueses, o administrador-delegado do grupo Leya, Isaías Gomes Teixeira, e a editora Maria João Costa, da Leya.
O escritor está tão "comovido com tudo" o que lhe está a acontecer no maior evento da literatura no Brasil que precisa por vezes de se fechar no seu quarto. Logo no primeiro dia concretizou um sonho: foi levado ao camarim de Elza Soares antes do espectáculo de abertura da festa que fez com José Miguel Wisnik e Celso Sim. Depois sentaram-no na primeira fila: "Chorei como menino sentado na primeira fila vendo Elza Soares cantar. Sou dela. Pode levar. A minha capacidade de resistir é nenhuma. Sabia, com tantos anos de ouvir os seus discos e amar a sua voz, que ao vivo tinha de ser como presenciar o milagre. Essa voz dela é um milagre." A equipa do blogue da editora brasileira de hugo mãe, a Cosac Naify, fez um vídeo do momento em que valter foi cumprimentar a cantora que entrou no palco amparada e cantou sentada, envolta num casaco de peles branco, por ter sido recentemente submetida a uma intervenção cirúrgica e estar constipada. "Vou passar a vida a rever o vídeo para rir do meu jeito tonto e procurar acreditar que aconteceu, cumprimentei mesmo a absoluta Elza Soares", diz o escritor no blogue.
Nenhuma pedra
Mas a emoção não parou por aqui. No sábado à noite, todos queriam entrar na festa mais badalada de todas as festas da FLIP-Festa Literária Internacional de Paraty onde o escritor Luiz Ruffato lançava a antologia Oswald de Andrade: A alegria é a prova dos nove e Arnaldo Antunes, ex-Titãs, dava um concerto. Enquanto cantava "Onde é que eu fui parar?/Aonde é esse aqui?/Não dá mais pra voltar/Por que eu fiquei tão longe?/Longe.../Onde é esse lugar?/Aonde está você?/Não pega celular/E a terra está tão longe/ Longe..." Nesta referência que cai como uma luva em Paraty, onde os telemóveis não funcionam e a noção de banda larga ainda não chegou, Arnaldo Antunes desceu do palco e andou entre a multidão até se dirigir a valter hugo mãe para o cumprimentar. Não o fez com mais ninguém. Os dois conheceram-se há semanas, em Lisboa, quando o escritor português apresentou o DVD do músico, Ao Vivo Lá em Casa.Poucas horas antes, a Cosac Naify organizou um cocktail num barco atracado na baía de Paraty, para celebrar a participação dos seus autores Péter Esterházy e valter hugo mãe na FLIP. Pediram a valter hugo mãe para cantar um fado e ele, mesmo estando rouco de tanto falar, cantou. Não por acaso escolheu O fado de cada um, que depois do que viveu estes dias em Paraty adquire mais significado.
Para o ano há mais e o autor homenageado pela FLIP será Carlos Drummond de Andrade. "Tinha pensado em Graciliano Ramos para a décima FLIP, mas as pedras de Graciliano têm muitas arestas e as de Drummond, mais arredondadas, são certamente mais apropriadas a celebração", explicou Manuel Costa Pinto, brincando com as pedras que existem nos caminhos de Paraty, numa alusão ao famoso poema de Drummond no meio do caminho tinha uma pedra. Para valter hugo mãe não houve pedras no meio do caminho, em Paraty.