O embaixador de Paris é um conservador de património em Lisboa
Há uma nova monografia sobre o Palácio de Santos que o faz entrar, ao lado do Palácio Farnese, de Roma, para uma colecção já com nove volumes sobre as residências oficiais francesas. O embaixador Pascal Teixeira da Silva faz visitas guiadas ao palácio como se fosse um director de museu.
Naquela noite de 1981 Pascal Teixeira da Silva não foi ao jardim nem à sala das porcelanas Ming. Assim, na sua primeira visita ao Palácio de Santos, a embaixada francesa, não viu o rio nem a pirâmide que se transforma em poço no tampo espelhado da mesa desenhada por Hubert Le Gall. "Deste jardim o Tejo parece o mar", diz o embaixador de Paris em Lisboa, a viver na cidade desde Setembro de 2010. "Não há muitas salas de visita com esta vista."
Aos 54 anos, e a poucos dias do lançamento de uma monografia sobre o Palácio de Santos, escrita por Jean-Pierre Samoyault, um especialista dos museus de França, Pascal Teixeira da Silva transforma-se por duas horas num conservador de património, caminhando pelas salas e corredores do palácio, parando para chamar a atenção para uma tapeçaria da Manufactura dos Gobelins, do século XVII, para uma mancha na parede causada por infiltrações ou para as obras de Maria Helena Vieira da Silva (1982-83), que nos surpreendem ao entrarmos na sacristia da pequena capela coberta de pinturas, talha dourada e azulejo. "Parte da minha missão é esta: proteger um palácio que o Estado francês comprou há mais de 100 anos, mas que é património de Portugal e que tem um lugar importante na sua história. É um privilégio viver ao pé de tudo isto."
E para proteger, nada melhor do que conhecer. A obra de Samoyault que é hoje apresentada na embaixada, às 18h30, "é o estudo mais completo" sobre o palácio ( Le Palais de Santos - o anterior, de Hélder Carita, é mais breve e saiu em 2007, também em edição bilingue) e faz parte da colecção Résidences de France, do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, já com nove volumes. "É um livro muito completo que traça a evolução do palácio - funções, arquitectura e interiores -, e que ao mesmo fala dos protagonistas que aqui viveram ou que o visitaram, dos reis aos nobres de Portugal, passando pelos ministros de França e pelos embaixadores. Ter na mesma colecção o Palácio de Santos e o Palácio Farnese [embaixada em Roma], com os seus frescos de [Annibale] Carracci, é muito significativo. Nós temos uma colecção de pratos "azul e branco" com mais de 400 anos", diz o diplomata. " Unique ", faz questão de acrescentar, sorrindo e deixando para trás o português que herdou do avô e que só começou a falar depois dos 20 anos.
Cavaleiros e armadores
No edifício que hoje vemos, já pouco resta do que foi a residência real nos séculos XV e XVI. Por ali passaram, entre outros monarcas, D. Manuel I e o jovem D. Sebastião, que, dizem, tomou no jardim a sua última refeição antes da partida para o Norte de África, onde acabou por desaparecer (a mesa de pedra em que o terá feito, olhando o Tejo, ainda lá está, no meio do jardim).Mas, antes do convento que deu origem ao palácio, foi construída naquela colina uma pequena capela para honrar os três irmãos que morreram às ordens do imperador Diocleciano há 1700 anos - Máxima, Júlia e Veríssimo -, que viria a crescer no tempo dos visigodos, sendo mais tarde destruída pelos mouros. Foi preciso esperar por D. Afonso I e pela tomada de Lisboa, em 1147, para que o templo fosse reconstruído e passasse de capela a igreja. Quase 50 anos depois, D. Sancho I doa-a, com as terras que a rodeavam, à Ordem de Santiago de Espada, fundamental à reconquista. Mas os cavaleiros não ficam por ali muito tempo, deixando o edifício às suas viúvas e filhas.
Samoyault explica que, apesar de viverem num ambiente religioso, estas mulheres, muitas vindas da mais alta nobreza, podiam casar-se. Mas no final do século XV também elas se mudaram para um novo mosteiro, que ficou a ser conhecido como Santos-o-Novo, e este foi alugado pela primeira vez, a um banqueiro. Foi das mãos de Fernão Lourenço, armador e um dos grandes financiadores da Expansão, que passou para as de D. Manuel e se tornou residência real, com obras de adaptação a cargo de um dos grandes arquitectos do reino, João de Castilho, e até teve honras de boda real (foi ali que o monarca se casou com D. Isabel de Aragão). "Era uma residência de recreio em cima do rio", explica o embaixador. "Se imaginarmos que o Tejo quase batia nos muros do jardim naquela altura, é fácil acreditar que D. Manuel gostava de aqui estar."
D. João III (1502-1557), que, quando era ainda criança, quase morreu ao cair de uma das varandas do palácio, não partilhava o entusiasmo do pai pela casa e, por isso, afastou-se dela. As primeiras referências à família Lancastre e à sua ocupação do palácio são deste período. Luís de Lancastre (c. 1505-1574) e o monarca eram primos - o seu pai, Jorge, era um dos filhos ilegítimos de D. João II, primo de D. Manuel I, seu sucessor. "O brasão dos Lancastre é muito semelhante ao de Portugal por causa disso", explica o embaixador.
D. Sebastião (1554-1578), O Desejado , voltou a transformar o palácio em residência real e foi depois de uma missa em Santos-o-Velho que partiu para a sua trágica campanha no Norte de África, em Junho de 1578. Nesta cruzada em que Portugal perdeu um rei e boa parte da nobreza de corte morreram três Lancastres e outro foi feito prisioneiro. Luís, neto de Jorge Lancastre, regressou de Marrocos depois de pago um avultado resgate e comprou o palácio às religiosas de Santos-o-Novo (até aí, os reis pagavam-lhes renda), embora o negócio só seja definitivamente aceite pela coroa em 1629, 16 anos depois da sua morte, quando era já o seu filho Francisco Luís o senhor de Santos-o-Velho.
Uma família
Os Lancastres viveram no palácio quase 300 anos e são obra sua algumas das principais jóias arquitectónicas e artísticas. A capela, por exemplo, foi mandada construir por José Luís de Lancastre e pela sua mulher, Filipa de Vilhena, e é por isso que os brasões das duas famílias ladeiam o altar neste espaço marcado por pinturas em que são evidentes, por exemplo, a Ressurreição e Ascensão de Cristo."Gosto de lhe chamar oratório porque é um espaço pequeno, intimista", diz Pascal Teixeira da Silva, apontando para o novo sistema de iluminação, patrocinado por duas empresas francesas (a Cegelec e a Henner), primeiro projecto de mecenato do Palácio de Santos. "Os custos de manutenção de um edifício como este são muito elevados", diz, sem querer falar em números. "Poder recorrer a empresas é fundamental. Hoje as coisas são muito mais rigorosas do que no passado - não posso pegar no telefone e ligar para Paris a pedir dinheiro para trabalhos de restauro constantemente. Tenho de encontrar outras formas de financiamento."
A última grande campanha de restauro e conservação aconteceu em meados dos anos 90, sempre a cargo dos Monumentos de França. Mas, desde então, muitos foram os trabalhos adicionais no edifício, na maioria das vezes motivados por infiltrações que levaram, recentemente, a que se alterasse o coberto vegetal do jardim.
"Este palácio é como um organismo vivo, sempre a envelhecer - quando acabamos de um lado, temos de começar do outro." Na Sala da Música, que impressiona pelos espelhos, mobiliário e pintura de temas mitológicos de Pedro Alexandrino de Carvalho (1804-05), há paredes a precisar de uma intervenção por causa da humidade que vinha das buganvílias que antes cobriam uma das fachadas que dá para o jardim. Dentro de uma semana ou duas, Pascal Teixeira da Silva conta começar o levantamento das prioridades de trabalho nesta residência diplomática que começou a ser alugada por Paris em 1870 e foi comprada em 1909. "As pinturas da Sala da Música serão das primeiras, não tenho dúvidas, mas também é preciso substituir portas e janelas, e mexer nas fachadas exteriores."
Colecção única
Onde não é preciso intervir, pelo menos para já, é na Casa das Porcelanas, espaço privilegiado do palácio onde o embaixador escolhe almoçar quando os convidados são poucos. Olhando para o tecto piramidal, encontramos parte da valiosíssima colecção de porcelanas Ming dos Lancastres, com 261 pratos, muitos deles raros, dos séculos XVI e XVII. Na monografia Le Palais de Santos , Samoyault cita Daisy Lion-Goldschmidt, autora de um estudo aprofundado da colecção: "A quantidade numérica, a qualidade e a diversidade das peças do século XVI [ali reunidas] constituem um facto inigualável."Para Teixeira da Silva, a colecção de porcelanas dos Lancastres, que segundo um inventário de 1704 era bem mais vasta (tudo o que não estava preso ao tecto desapareceu do palácio), é ainda um "documento" da presença de Portugal no mundo. "Naqueles séculos os navegadores e comerciantes portugueses eram fundamentais aos contactos entre a Europa e o Oriente. Muito do exotismo que chegava até nós através de bens de exportação vinha através deles."
O embaixador gosta de arte e, tendo raízes familiares em Castelo de Paiva (o avô que se instalou em Bordéus), interessa-se particularmente pela História de Portugal e, sobretudo, pelos Descobrimentos. No seu escritório tem a reprodução de um mapa-mundo do século XVI que o acompanha sempre: "Em primeiro lugar agrada-me como objecto, mas gosto que tenha sido feito por um cartógrafo chamado [Domingos] Teixeira e que seja uma das primeiras visões do Novo Mundo."
O interesse do embaixador pelo património que a França possui em Portugal passa também pela Igreja de S. Luís, perto do Coliseu dos Recreios. Fundada em 1552, segundo o Dicionário da História de Lisboa , sofreu grandes danos no terramoto. Treze anos mais tarde, e por encomenda de Luís XV, a igreja onde todos os domingos ainda se reúne a comunidade católica francesa recebe três altares de mármore criados pelo mestre genovês Pasquale Bocciardo. "As pinturas estavam muito danificadas, as das paredes e os quadros", explica Manuel Pourtales, vice-presidente da Fábrica da Igreja, que gere o espaço, apontando para uma representação da cidade de Lisboa pré-1755, que já viajou para exposições da Europália (Bruxelas) e da Smithsonian Institution (Washington). Pourtales acompanhou o complexo processo de restauro que terminou no ano passado e envolveu obras profundas, com técnicos de Paris e mecenato português e francês. "Poucos conhecem esta igreja em Lisboa e ela vale mesmo a pena, sobretudo quando o órgão de Aristide Cavaillé-Coll está a tocar."